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José Osmar Coelho

In dubio pro societate

e sua contraposição à Constituição Federal- Convenção Americana de Direitos Humanos - Código de Processo Penal Militar e à jurisprudência do STM



1. Momento Invocativo do In Dubio Pro Societate


É comum na jurisprudência do STM em decisões de habeas corpus trancativo do processo penal militar, invocar o argumento do in dubio pro societate para justificar a manutenção do recebimento da denúncia, no que pese tal princípio não ter guarida constitucional, convencional ou legal.


2. Superando o “nós” contra “eles” - interesse público vs interesse privado


Inicialmente, para que possamos prosseguir no presente artigo é preciso responder à pergunta: existe mesmo um interesse público a contrapor o interesse privado, ou seja, um pro societate contra um pro reo?


Sendo o processo penal militar instrumento a limitar o poder estatal, os direitos e garantias talhados no artigo 05ª da CF/88 são na verdade um direito de toda a sociedade: “As garantias individuais são direitos concretos que prevalecem ante as abstrações (in dubio pro societate), [....]”. (PINHO, Ana Cláudia Bastos de. In dubio pro societate x processo penal garantista.).


Ademais, em matéria penal, todos os interesses em jogo - principalmente os do réu - superam muito a esfera do “privado”, situando-se na dimensão de direitos e garantias fundamentais (portanto, “público”, se preferirem). Na verdade, são verdadeiros direitos de todos e de cada um de nós, em relação ao (ab)uso de poder estatal. (Lopes Jr., São Paulo: Saraiva, 2015, p. 34)


Então, percebe-se que argumentar no início da persecução penal militar que há de se privilegiar a sociedade, mostra-se em desalinho com o ordenamento pátrio.


[....] dicotomia entre in dubio pro reo e in dubio pro societate sugere que os interesses do acusado são contrapostos aos da sociedade, o que é insustentável, ao menos, num sistema de base garantista. Com efeito o princípio in dubio pro reo é um princípio pro societate, porque é um princípio pro garantia individual, pro Constituição, pro Estado Democrático de Direito. Aquilo que se tem como “princípio” in dubio pro societate, em verdade, não tem nada pro sociedade. Ao contrário: é contra a democracia, contra as liberdades individuais, contra, portanto, a própria sociedade. (Brestas, Adriano Sérgio Nunes, Curitiba: Juruá, 2010, págs. 33/34)


Não sendo correto em um Estado Democrático de Direito - que tem o processo como limite de poder - as abstrações e o aforismo do in dubio pro societate para afastar os direitos e garantias fundamentais.


Primeiro essa gazua, em seguida despencando sobre todos, a pretexto da "necessária atividade persecutória do Estado", a "supremacia do interesse público sobre o individual". Essa premissa que se pretende prevaleça no Direito Administrativo --- não obstante mesmo lá sujeita a debate, aqui impertinente --- não tem lugar em matéria penal e processual penal. Esta Corte ensina (HC 80.263, relator Ministro ILMAR GALVÃO) que a interpretação sistemática da Constituição "leva à conclusão de que a Lei Maior impõe a prevalência do direito à liberdade em detrimento do direito de acusar". Essa é a proporcionalidade que se impõe em sede processual penal: em caso de conflito de preceitos, prevalece o garantidor da liberdade sobre o que fundamenta sua supressão. A nos afastarmos disso retornaremos à barbárie. (HABEAS CORPUS 95.009-4 SÃO PAULO- MIN. EROS GRAU- STF)


Resta claro que no processo penal militar não existe esse antagonismo do direito da sociedade em detrimento do direito do indivíduo, pois quando asseguramos o respeito à Constituição Federal é algo que se garante a toda a sociedade.



3. Posicionamento jurisprudencial do STM


Para o momento do recebimento da denúncia a jurisprudência do STM geralmente tende a invocar o in dubio pro societate, para com isso não conceder ordem em habeas corpus trancativo do processo:


No tocante ao processamento de ilícitos penais, o Princípio in dubio pro societate vigora, assegurando, ao dominus litis, a prerrogativa de atuar em benefício da lei e da ordem. Nesse vetor, a APM, regularmente instaurada e conduzida, perfaz o Devido Processo Legal para a elucidação dos fatos imputados ao Paciente, esclarecendo, assim, se a ação configura ou não crime militar. (HABEAS CORPUS Nº 7000502-26.2020.7.00.0000- Ministro Gen Ex MARCO ANTÔNIO DE FARIAS- STM).


Nessas circunstâncias, deve prosseguir a instrução processual, devendo ser privilegiado o Princípio in dubio pro societate, não sendo possível acolher o argumento defensivo da ausência de justa causa, tampouco de inépcia da Exordial Acusatória. (HABEAS CORPUS Nº 7000144-61.2020.7.00.0000- Ministro Ten Brig Ar CARLOS VUYK DE AQUINO) - Grifei


Percebe-se que as referidas decisões invocam o in dubio pro societate em detrimento do constitucionalmente assegurado in dubio pro reo. Entretanto, também é possível encontrar na jurisprudência do referido tribunal o afastamento do argumento do in dubio pro societate em sede de recurso em sentido estrito, entretanto privilegiando a dignidade da pessoa humana.


Inexistindo indícios suficientes que demonstrem a autoria e a materialidade, a Ação Penal Militar não deve ser deflagrada. Ausente, ab initio, o nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso, o Princípio "in dubio pro societate" deve ser harmonizado com o vetor constitucional da dignidade da pessoa humana. A situação remonta aos cânones da justa causa e da razoabilidade, impondo-se a rejeição da Denúncia. (RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 7000336-91.2020.7.00.0000- MINISTRO GEN EX MARCO ANTÔNIO DE FARIAS-STM).


Ressalte-se, ainda, que não se pode aplicar indistintamente o princípio in dubio pro societate quando do juízo de admissibilidade, no tocante à instrução do processo penal, sob pena de causar graves repercussões na vida dos acusados, afrontando, assim, a dignidade da pessoa humana. (RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 7000293-57.2020.7.00.0000- Ministro Ten Brig Ar Francisco Joseli Parente Camelo-STM).


Logo, mostra-se que a jurisprudência da corte castrense em momento privilegia o in dubio pro societate em outros momentos a afasta em razão da dignidade da pessoa humana.



4. (In) Existência de base legal para o in dubio pro societate


O questionamento inicial que deve ser feito é: qual a base legal do in dubio pro societate para que o mesmo seja usado como argumento decisório a suplantar o in dubio pro reo?


Base legal alguma. Inexistente.


Entretanto, o in dubio pro reo encontra guarida - além da Constituição Federal - na Convenção Americana de Direitos Humanos e no próprio Código de Processo Penal Militar.


Na Constituição Federal encontra-se expresso no artigo 5ª, inciso LVII, a qual afirma que “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Já na CADH vem expresso no artigo 8ª, item 2 que “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:”. E no CPPM está insculpido no artigo 439ª, alínea e, “não existir prova suficiente para a condenação;”


Evidente que os standards probatórios são diferentes: o mesmo que se exige para condenar não é o mesmo que se exige para receber a denúncia.


Entretanto não se pode admitir que, no caso de dúvida, seja invocado “princípio” não recepcionado pela CF/88 e pela CADH, para que com isso seja recebida denúncias com acusações infundadas. “Na dúvida, arquiva-se, tranca-se a Ação Penal ou absolve-se (in dubio pro reo), e nunca se processa, pronuncia-se ou condena-se (in dubio pro societate).”. (PINHO, Ana Cláudia Bastos de. In dubio pro societate x processo penal garantista.)


Ocorre que, ao nosso sentir, o princípio in dubio pro societate, na atual conformação das garantias constitucionais, não pode ser chamado a fundamentar tomadas de decisões como no passado, isso em função de um direito fundamental à razoável duração (inciso LXXXVIII do art. 5ª da CF). É dizer, em outros termos, que a opção pela persecução criminal- vg., pela instauração do inquérito policial militar ou pela promoção da ação penal militar- deve ser muito bem pensada, muito bem arrazoada, evitando persecuções descabidas, sem um mínimo conteúdo indiciário, apenas para extrair, a fórceps, um caldo imprestável no curso de uma inquisa ou de um processo. (Neves, Cícero Robson Coimbra- 4ª ed., págs. 124/125.)


Logo, quando o STM em sede de recurso em sentido estrito mantém o não recebimento da denúncia, afastando esse inconstitucional, inconvencional e ilegal “princípio”, o faz de forma acertada, pois em caso de dúvida não se pode macular a dignidade da pessoa humana, já que é fato que simplesmente estar respondendo um processo penal militar já traz consigo grandes maculas e sequelas ao indivíduo.


O chamado princípio do in dubio pro societate não é compatível com o Estado Democrático de Direito, onde a dúvida não pode autorizar uma acusação, colocando uma pessoa no banco dos réus. [...]. O Ministério Público, como defensor da ordem jurídica e dos direitos individuais e sociais indisponíveis, não pode, com base na dúvida, manchar a dignidade da pessoa humana e ameaçar a liberdade de locomoção com uma acusação penal. O só fato de se acusar alguém já impede o exercício de determinados direitos civis e políticos. (Paulo Rangel- 18ª ed., pág. 89)


Principalmente em caso de militares que, pelo simples fato de estarem respondendo a um processo penal militar, já sofrem grandes restrições na carreira.



5. Conclusão


A jurisprudência do STM ainda admite o in dubio pro societate, principalmente em caso de habeas corpus trancativo do processo penal militar. Porém, por vezes em sede de recurso em sentido estrito tem afastado o referido princípio a fim de privilegiar a dignidade da pessoa humana.


É fato que a decisão que recebe ou mantém o recebimento da denúncia não precisa ter o mesmo grau de standards probatórios que uma sentença após toda instrução processual. Todavia, é fato também que em caso de dúvida impõem-se a rejeição da denúncia ou a concessão da ordem do habeas corpus para trancar o processo penal militar. Não se pode invocar o in dubio pro societate como razão de decidir pois o referido “princípio” é inconstitucional, inconvencional e ilegal, bem como não existe essa dicotomia de indivíduo versus a sociedade.


Referencias

PINHO, Ana Cláudia Bastos de. In dubio pro societate x processo penal garantista. Disponível em http://alexandremoraisdarosa.blogspot.com/2009/06/puxada-de-orelha-merecida.html. Acessado 06 de abril de 2021

Lopes Jr, Aury. Fundamentos do Processo Penal Introdução Crítica; São Paulo; Saraiva; 2015.

Bretas, Adriano Sérgio Nunes. Estigma de Pilatos: a desconstrução do mito in dubio pro societate da pronúncia no rito do júri e a sua repercussão jurisprudência. Curitiba; Juruá; 2010

NEVES, Cícero Robson Coimbra. Manual de direito processual penal militar. 4 ed.:São Paulo: Editora JusPODIVM, 2020

Rangel, Paulo. Direito Processual Penal. 18ª Ed.: Rio de Janeiro; Editora Lumen Juris, 2010


José Osmar Coelho, Advogado, especialista em Direito Militar pela Universidade Cruzeiro do Sul, especialista em Ciências Criminais pela Universidade Cândido Mendes, especialista em Direito Constitucional pela Faculdade de Estudos Administrativos de Minas Gerais, FEAD, Especialização em Política e Estratégia pela Universidade do Estado da Bahia, MBA em Gestão da Inteligência Estratégica pela Faculdade Batista Brasileira, com curso profissional em investigação defensiva, Professor de Pós Graduação de Direito Penal e Processo Penal Militar.


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