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A jurisprudência do Supremo na aplicação do princípio da insignificância aos crimes militares

Fernando Galvão

1. Introdução

 

Na Justiça Militar há uma tendência fortemente conservadora que se mostra refratária ao desenvolvimento das potencialidades funcionais da teoria da imputação objetiva. É muito comum, por exemplo, o entendimento simplificador de que, em se tratando de crimes militares, não é cabível o princípio da insignificância. No entanto, o tema da imputação objetiva não pode ser tratado de maneira simplista e, nos crimes militares, desafia maior reflexão dos operadores do direito sobre o significado social da conduta que se deva considerar como crime militar. A conclusão de que é impossível aplicar o princípio da insignificância nos crimes militares impede o exame judicial sobre a relevância jurídica da conduta examinada e se mostra incompatível com o Estado Democrático de Direito.


O Supremo Tribunal Federal, por diversas vezes, decidiu que é possível a aplicação do princípio da insignificância nos crimes militares. As referências mais importantes estão consubstanciadas nos julgamentos dos Habeas Corpus nºs 92.910/RJ (crime militar de abandono de posto) e nº 94.809/RS (crime militar de posse de substância entorpecente), ambos de relatoria do Ministro Celso de Mello e que, posteriormente, serviram de paradigma para outros julgamentos que também aplicaram o princípio da insignificância em relação aos crimes militares. Nos julgados de referência, foi ressaltado que o princípio da insignificância pode descaracterizar a tipicidade material de condutas formalmente descritas como crimes militares.


Na oportunidade, faço uma breve sistematização critica das ideias que orientam a aplicação do princípio da insignificância e, em especial, no que diz respeito aos crimes militares.

 

 

2. Dogmática penal militar

 

A dogmática penal contemporânea superou as limitações impostas pela perspectiva causal-naturalista e de sua racionalidade cognitiva, que dominou o pensamento jurídico-penal no início do século passado, para consolidar um paradigma de natureza normativa funcional. Na atualidade, os doutrinadores concordam que a construção do sistema jurídico penal não pode trabalhar apenas com os dados ontológicos da causalidade natural. A crítica aos sistemas naturalistas retoma o neokantismo para reconstruir de maneira teleológica os conceitos da teoria do crime, de modo a conferir conteúdo material a todas as suas categorias, atribuindo‑lhes um sentido conforme a missão do Direito Penal.


No novo paradigma normativo os conceitos jurídicos são concebidos sob o prisma de sua funcionalidade para desempenhar um papel determinado no sistema, tendo em vista a produção de consequências consideradas justas e adequadas. O sistema jurídico de índole valorativa funcional é o que melhor atende às necessidades do Direito Penal contemporâneo, em especial por seu caráter aberto e dinâmico que o permite ser permanentemente reconstruído conforme a atualização dos princípios políticos-criminais e dos critérios valorativos utilizados para estabelecer a responsabilização penal.


Nesse sentido, as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal sobre a aplicação do princípio da insignificância ensinam que a mudança de paradigma verificada no Direito Penal Comum também deve refletir no Direito Penal Militar. Ambos os ramos do Direito integram o mesmo sistema normativo e devem ser compreendidos pelo prisma comum do Estado Democrático.


Em essência, não há distinção entre o crime comum e o crime militar. O conceito analítico do crime constitui um modelo de interpretação da realidade que se presta a viabilizar, de maneira adequada, os objetivos sancionadores tanto na seara do Direito Penal Comum como na seara do Direito Penal Militar.

 

 

3. Princípio da insignificância

 

Ressaltando que o crime possui especial significado para a ordem social, Claus Roxin introduziu no Direito Penal a teoria da insignificância da lesão ao bem jurídico, segundo a qual deve ser excluída da incidência típica as condutas que causem lesões insignificantes ao bem jurídico. Entendendo que o Direito Penal somente deve interferir na vida de relações sociais quando tal interferência apresentar-se estritamente necessária, a teoria da insignificância combate a ideia de que o Direito se ocupe dos denominados crimes de bagatela.[1] 


A ideia da descon­si­de­ração dos danos sociais irrelevantes, no entanto, remonta ao Direito Romano, orientado pelo brocardo minimis non curat pretor e, hoje, deve ser entendido como expressão da inadequação social da intervenção punitiva do Direito Penal. Se a lesão ao bem jurídico tutelado pela norma penal é insignificante, socialmente inadequada será a intervenção punitiva do Direito Penal.


O princípio da insignificância orienta a interpretação do tipo penal, de modo a materializar a verdadeira finalidade protetiva da norma jurídica. Para combater uma conduta socialmente danosa com a pena, é necessário que não existam outros meios menos gravosos.


As decisões que no Supremo Tribunal admitiram a aplicação do princípio da insignificância em relação aos tipos incriminadores da legislação repressiva militar consolidaram o entendimento de que

O princípio da insignificância - que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal - tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado - que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada - apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público. (HC 94.809/RS)


       Cabe observar que o princípio da insignificância foi inicialmente concebido para viabilizar um juízo de valor sobre a lesão concreta produzida em desfavor de um bem jurídico. Mas, isto não significa que tenha aplicação unicamente em relação às infrações materiais. O exercício da atividade valorativa que o princípio viabiliza não se refere somente ao resultado naturalístico produzido pela conduta, mas essencialmente à relevância jurídica da conduta para violar a norma protetora do bem jurídico. Somente a conduta institucionalmente relevante viola a norma jurídica incriminadora militar. Nos crimes militares materiais a relevância da conduta se expressa no significado que é atribuído ao resultado material por ela produzido. Nos crimes formais e de mera conduta a significância da conduta não se expressa em termos de alteração da realidade natural, mas somente em termos de relevância da conduta realizada para violar a norma jurídica incriminadora.


Considerando que o crime militar possui especial significado para a ordem institucional, a teoria da insignificância se presta a impedir a tipicidade material da conduta examinada. Segundo a referida teoria devem ser excluídas da incidência típica as condutas juridicamente irrelevantes, seja porque produzem alterações insignificantes na realidade natural ou porque o significado que lhe deve ser atribuído não é capaz de violar a norma que protege o bem jurídico. Nesse aspecto, é necessário superar as iniciais concepções de insignificância como avaliação quantitativa para alcançar as possibilidades de avaliação qualitativa que conduta e, eventualmente, do resultado naturalístico que produz.


A aplicação do princípio da insignificância no âmbito da tipicidade do crime militar sofre a rejeição dos operadores do Direito mais conservadores. No entanto, o Direito Penal Militar contem norma incriminadora que, expressamente, considera o princípio da insignificância para afastar sua incidência. O parágrafo 1º do art. 240 do Código Penal Militar, que descreve o crime militar de furto permite ao julgador considerar a conduta como mera infração disciplinar, se o sujeito é primário e é de pequeno valor a coisa furtada. A hipótese importa em desclassificação, do crime para a infração disciplinar, fundada no princípio da insignificância (fortemente influenciado por uma avaliação quantitativa).

 

 

4. Vertentes consolidadas no Supremo Tribunal Federal para a aplicação do princípio da insignificância

 

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância é fortemente influenciada pela perspectiva de Claus Roxin. A Corte Suprema trabalha a conexão da significância com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal, sendo que os critérios de relevância que identificam o conteúdo material da conduta típica estão essencialmente relacionados à magnitude da lesão produzida ao bem jurídico. Neste sentido, consolidou-se o entendimento de que o Direito Penal só deve se ocupar de condutas cujo desvalor do resultado produzido importe em lesão significativa a bens jurídicos relevantes e, desta forma, represente prejuízo importante ao titular do bem jurídico ou à integridade da ordem social.


Nestes termos, a Corte vem decidindo reiteradamente que, para a aplicação do princípio da insignificância, é necessário observar a satisfação cumulativa dos seguintes requisitos (vetores):


1º) a mínima ofensividade da conduta do agente;

2º) nenhuma periculosidade social da ação;

3º) o re­du­zidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e

4º) a inex­pres­si­vi­dade da lesão jurídica provocada.


O entendimento consolidado pode ser observado a partir do julgamento do Habeas Corpus nº 84412, cuja relatoria também coube ao Ministro Celso de Mello, e orientou os muitos outros que lhe sobrevieram.


O tema da aplicação do princípio da insignificância, contudo, não foi considerado como de repercussão geral no Supremo Tribunal Federal, por ser considerado relativo à matéria infraconstitucional. A questão da repercussão geral foi enfrentada no julgamento do Agravo de Instrumento nº 747522.


Pode-se perceber, contudo, que a orientação jurisprudencial consolidada ainda desafia aprofundar as reflexões quanto aos critérios gerais mais adequados à apuração do significado que se pode atribuir à ofensa ao bem jurídico.

 

 

4.1 Mínima ofensividade da conduta do agente

 

Inicialmente, pode-se notar que não há clara distinção entre o 1º e o 4º critério.  No contexto de um Direito Penal comprometido com a proteção de bens jurídicos, a ofensividade da conduta examinada (1º) deve ser mensurada tomando-se em consideração a ofensa perpetrada contra o bem jurídico[2]. A consideração sobre a ex­pres­si­vi­dade da lesão jurídica provocada (4º), de igual modo, retrata a ofensa perpetrada contra o bem jurídico ou o interesse juridicamente protegido. Se o bem ou o interesse juridicamente protegido é o objeto da tutela jurídica[3], lesão jurídica é lesão ao bem ou ao interesse jurídico. Desta forma, não se pode estabelecer a necessária distinção entre estes requisitos que foram estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal para a aplicação do princípio da insignificância.


Considerando que os requisitos 1º e 4º tratam do mesmo juízo valorativo, a crítica aos parâmetros da mínima ofensividade será desenvolvida no contexto da ex­pres­si­vi­dade da lesão jurídica provocada pela conduta.

 

 

4.2  Nenhuma periculosidade social da ação

 

O segundo requisito, relativo à periculosidade social da ação, não se relaciona ao tema da insignificância. Sua aplicação de maneira coerente com os modelos analíticos desenvolvidos para a identificação do crime e a legislação repressiva nacional desafia maior esforço interpretativo do operador do direito.


Inicialmente, cabe observar que a noção de periculosidade construída pela doutrina penal se refere ao sujeito que realiza a conduta e não ao comportamento em si. Perigoso é o sujeito sobre o qual recai fundado receio de repetição do comportamento socialmente inadequado, e não a conduta que o mesmo realiza. A utilização da periculosidade do sujeito como critério de apuração da insignificância parece estar mal colocada, pois a insignificância afasta a tipicidade material do fato, como reconhece a doutrina[4] e o próprio Supremo Tribunal Federal (Habeas Corpus nº 84412). E a periculosidade é questão própria ao juízo de reprovação da culpabilidade.


Conforme os termos do sistema vicariante[5], acolhido no art. 97 do Código Penal brasileiro, a possibilidade de reiteração da conduta ofensiva que caracteriza a periculosidade somente deve ser considerada em relação aos inimputáveis e fundamenta a aplicação de medida de segurança. Nos termos da legislação repressiva nacional, a periculosidade não constitui tema afeto ao juízo de tipicidade.


A ideia de que a realização do crime constitui um perigo para a sociedade pode ser encontrada em Feuerbach[6] e Romagnosi[7], que, procurando identificar o critério adequado para estabelecer a medida da reprovação penal, sustentaram que a intensidade da pena deve ser proporcional ao impulso criminoso do condenado, porque a maior intensidade do impulso revela um maior perigo para a sociedade.


A noção foi posteriormente desenvolvida pela Escola Positiva, que, no final do século XIX, defendeu a necessidade de se estudar diretamente a pessoa do criminoso.[8] Acompanhando os desenvolvimentos da medicina científica, que passou a ter por objeto de estudos os doentes e a classificar as doenças conforme as suas causas, os positivistas, com base nos dados obtidos pela antropologia, passaram a concentrar atenções sobre a pessoa do criminoso[9], e não sobre os seus crimes. Rafael Garofalo sustentou que a reação ao crime deve levar em conta o perigo que o criminoso representa e, como meio preventivo adequado a remover o perigo, ser idônea em razão do grau de temibilidade. Nestes termos, Garofalo substitui o critério da proporcionalidade da pena pelo da idoneidade de sua atuação preventiva.[10] 


A noção de temibilidade, no entanto, não expressa adequadamente uma característica do homem criminoso. O sentimento de temor pela prática de novos crimes não se encontra no criminoso, mas em suas potenciais vítimas. Por isso, a doutrina posteriormente substituiu a referência à temibilidade por periculosidade, visando expressar mais corretamente o aspecto objetivo da maior possibilidade da ocorrência de outras violações às proibições jurídicas.[11]


Coube a Henrique Ferri, professor da Universidade de Roma, estabelecer a distinção entre a periculosidade social e a periculosidade criminal para os fins de defesa social.[12] A periculosidade social, que interessa à defesa social preventiva e demanda medidas de polícia de segurança, pode ser entendida como sendo a probabilidade de uma pessoa tornar-se autora de crime. A periculosidade criminal, que interessa à defesa social repressiva e demanda medidas de justiça penal, se revela no crime cometido e na probabilidade de cometer outros, em seguida. A periculosidade social é considerada em termos genéricos, enquanto que a periculosidade criminal é considerada em termos específicos do perigo de recidiva.


A identificação do vetor da periculosidade social para a aplicação do princípio da insignificância não parece ter levado em consideração a distinção de Ferri. Não faz sentido apurar o significado da conduta realizada pelo sujeito por meio de análise de questões que se relacionam à defesa social preventiva que se realiza no âmbito das providências policiais. O  vetor estabelecido pela Suprema Corte ora em exame orienta a aplicação do princípio da insignificância com fundamento na noção de periculosidade criminal de Ferri.


O trabalho com a periculosidade do imputável, desenvolvida pela Escola Positiva, substituiu o enfoque objetivo oferecido pela entidade do crime pelo subjetivo, referente à pessoa do criminoso. Na doutrina italiana antiga, o professor Filippo Grispigni, também da Universidade de Roma, chegou a afirmar que a periculosidade criminal ou a capacidade do réu para delinquir constitui critério que inspira todo o ordenamento jurídico penal.[13] Os criminosos foram classificados em categorias antropológicas segundo o grau de periculosidade que lhes foi atribuído, por meio das quais foram identificados desde criminosos passionais até criminosos natos. Para a avaliação da periculosidade criminal (realizada no âmbito judicial), em seu grau provável duração e tendência, a doutrina identificou alguns critérios. Como critérios gerais de avaliação, foram identificados a gravidade do crime, os motivos determinantes e a personalidade do sujeito, incluindo em tal exame a análise sobre a sua vida anterior e o seu comportamento depois do crime.[14] Segundo o Código Penal brasileiro, em seu art. 59, tais aspectos constituem circunstâncias que expressam o grau de culpabilidade necessário para a definição da pena a ser concretamente aplicada.

 

 

4.3  Re­du­zidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento

 

O terceiro requisito, que trata do re­du­zidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento, também considera indevidamente a questão da culpabilidade no âmbito da tipicidade material. Segundo a doutrina amplamente predominante, a reprovação do comportamento constitui a essência do juízo de culpabilidade[15], e não de tipicidade. Cabe registrar, entretanto, a posição peculiar de Jakobs, segundo a qual é necessário trabalhar com o conceito de tipo de culpabilidade que abrange o injusto em sua totalidade.[16] De qualquer forma, o tipo incriminador identifica uma conduta socialmente inadequada que constitui parâmetro abstrato e geral de comportamento reprovável. O exame do caso concreto desafia o juízo de reprovação da culpabilidade, e não da tipicidade.


Para contextualizar o vetor estabelecido pela Suprema Corte com o exame da significância da conduta, seria necessário interpretar a reprovação individual como fator indicativo de relevância para o significado da conduta realizada em esforço de adaptação do vetor à contribuições do paradigma da ação significativa.[17] Neste sentido, o vetor relacionado ao grau de reprovação do comportamento poderia indicar o desvalor da conduta (significado) por meio da reprovação a ser dirigida a quem a realizou.


O esforço interpretativo, contudo, não é suficiente para superar a impropriedade do critério. A imputação objetiva demanda realizar juízo valorativo objetivo de violação da norma proibitiva que não pode receber influência da reprovação subjetiva que lhe tem como pressuposto. O juízo de reprovação do sujeito que realiza a conduta somente se realiza nos casos em que a norma incriminadora é violada. A reprovação pessoal pressupõe a violação da norma, e não o contrário.

 

 

4.4  Inex­pres­si­vi­dade da lesão jurídica provocada

 

No que diz respeito à aplicação do princípio da insignificância para afastar a tipicidade incriminadora, o requisito da inexpressividade da lesão jurídica provocada (ou da ofensividade) tem sido verificado por meio de avaliação meramente quantitativa sobre a extensão do dano produzido ao bem jurídico e que não enfrenta qualquer perspectiva qualitativa.


As decisões dos Tribunais Superiores mencionam o valor econômico da ofensa produzida pela conduta examinada ou, em casos que a ofensa somente pode ser quantificada por outra métrica, as unidades de tal medida.


A métrica da quantidade aplicada ao valor econômico da ofensa ao bem jurídico poderia nos trazer o benefício da segurança jurídica. Mas, mesmo utilizando tal métrica, podemos constatar orientações muito divergentes. No que diz respeito à insignificância da ofensa à ordem tributária, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal considera que é possível reconhecer a insignificância nos casos em que o valor sonegado for igual ou inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais). Conforme registrado na ementa do acórdão que registra o julgamento do Habeas Corpus nº 122029/PR, o princípio da insignificância deve ser aplicado quando o valor sonegado for inferior ao estabelecido pelo art. 20 da Lei 10.522/2002, com as atualizações feitas pelas Portarias 75 e 130, ambas do Ministério da Fazenda. A ementa do acórdão que registrou o julgamento do Habeas Corpus 120096/PR, cujo relator foi o Min. Roberto Barroso, é representativo do entendimento que foi consolidado, muito embora a Suprema Corte tenha percebido que a elevação do valor instituído em Lei por meio de Portaria não seja adequada.


No que diz respeito o requisito da inexpressividade da lesão jurídica provocada, o Superior Tribunal de Justiça não acolheu o entendimento do Supremo Tribunal Federal quanto à possibilidade de atualização, por meio de Portaria, do valor instituído pelo art. 20 da Lei n. 10.522/2002. Como se pode observar da ementa do acórdão que registrou o julgamento do Agravo Regimental interposto no Recurso Especial nº 1.395.052/SP, a Corte entende que é inadmissível alterar Lei em sentido estrito por meio de Portaria, o que ainda causa a instabilidade de se vincular a incidência do Direito Penal aos critérios de conveniência e oportunidade que prevalecem no âmbito administrativo. Nestes termos, o princípio da insignificância poderia ser aplicado quando o valor consolidado dos débitos fiscais for igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais).


A divergência de entendimento que se estabeleceu nos Tribunais Superiores se repete nos demais tribunais.[18] Cabe ainda considerar que a possibilidade de que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios estabeleçam valores diversos para o ajuizamento de execuções fiscais relativas aos seus tributos causa situação de importante insegurança jurídica.


Quanto à utilização de outras métricas para a avaliação quantitativa, pode-se citar como exemplo o julgamento do HC nº 138.134/BA, no qual ficou decidido que a conduta de desenvolver clandestinamente atividade de telecomunicação (art. 183 da Lei 9.472/97) é penalmente insignificante com base na constatação de que o equipamento utilizado possui a potencia de apenas 19 watts.


No entanto, nem todos os casos podem ser compreendidos sob a perspectiva quantitativa. A essência da análise sobre a insignificância é qualitativo e diz respeito à juízo valorativo sobre o significado social do comportamento 


O exemplo da lesão sofrida pelo conhecido atleta de MMA Anderson Silva[19] evidencia a necessidade de realizar um exame qualitativo sobre o significado social da conduta que ofende o bem jurídico e não somente sobre a extensão do dano produzido. No caso de Anderson, quantitativamente a ofensa produzida em sua perna foi de grande extensão. Para a sua recuperação foi necessária a realização de cirurgias e a implantação de prótese. Mas, não se cogitou de caracterizar o crime de lesão corporal porque a conduta que produziu a ofensa é socialmente tolerada e insignificante para os fins do Direito Penal.

 

 

5. Vertentes específicas para os crimes militares

 

Com o evoluir dos casos, o Supremo Tribunal Federal vislumbrou mais dois requisitos para a aplicação do princípio da insignificância especificamente em relação aos crimes militares. Como se pode observar no julgamento do Habeas Corpus nº 107638


O Supremo Tribunal admite a aplicação do Princípio da Insignificância na instância castrense, desde que, reunidos os pressupostos comuns a todos os delitos, não sejam comprometidas a hierarquia e a disciplina exigidas dos integrantes das forças públicas e exista uma solução administrativo-disciplinar adequada para o ilícito. Precedentes.


Os novos requisitos, igualmente, desafiam exame cuidadoso.

 

5.1 Não comprometimento da hierarquia e disciplina

 

Nos termos do paradigma especifico estabelecido para a aplicação do princípio da insignificância às condutas formalmente descritas como crime militar também é necessário constatar que a conduta não tenha comprometido a observância dos princípios da hierarquia e da disciplina, que são exigidas dos integrantes das forças públicas.


O discurso de racionalização da intervenção punitiva especializada militar é fortemente influenciado pela referência aos princípios da hierarquia e disciplina. No entanto, a Constituição da República estabelece que os princípios da hierarquia e da disciplina são pilares organizacionais das instituições militares, que constituem apenas meios para a realização de seus fins institucionais. A carta constitucional, conforme seu art. 142, define de maneira expressa que constituem fins das instituições militares da União a defesa da pátria, a garantia dos poderes constitucionais e a garantia da lei e da ordem. De mesma forma, nos termos de seu art. 144, estabelece expressamente que constituem fins das instituições militares estaduais a preservação da ordem pública, da incolumidade e do patrimônio das pessoas, no contexto do direito fundamental à segurança pública.


Portanto, resta claro que nem mesmo para as instituições militares a hierarquia e a disciplina constituem fins em si mesmos. Tais princípios constituem apenas meios organizacionais peculiares que conferem maior eficiência aos serviços públicos prestados pelas instituições militares para o atendimento de suas missões constitucionais.


O crime militar não se presta unicamente à proteção dos princípios da hierarquia e da disciplina, sendo que Código Penal Militar só tutela os bens jurídicos hierarquia e disciplina em alguns poucos de seus crimes. Especialmente após o advento da Lei 13.491/17, que ampliou o rol de crimes militares, fica muito claro que não se pode instituir como regra geral que a tutela penal militar se preste à proteção de tais princípios. Como explicar um crime militar de trânsito ou um crime militar ambiental como ofensa à hierarquia ou disciplina. Simplesmente não é possível.


 Desta forma, o requisito específico de não comprometimento da hierarquia e da disciplina militar somente é aplicável quando se tratar de crime que ofenda tais princípios. Em outras palavras: somente para o caso de crimes contra a autoridade ou disciplina militar; o serviço militar e o dever militar; a Administração Militar; a justiça e administração militar será adequado constatar a satisfação do requisito específico de não comprometimento da hierarquia e da disciplina militar.

 

5.2 existência de solução administrativo-disciplinar adequada para o ilícito

 

Conforme o paradigma estabelecido pelo julgado proferido no HC nº 107638, para a aplicação do princípio da insignificância às condutas formalmente descritas como crime militar ainda é necessário constatar que exista uma solução administrativo-disciplinar adequada para o ilícito.


O requisito específico pode ser extraído da previsão incriminadora constante dos arts. 209 e 240 do Código Penal Militar, que permite ao juiz considerar a conduta apenas como caracterizadora de uma infração disciplinar. Em tais casos, o reconhecimento da atipicidade penal se fundamenta na insignificância de uma conduta para a qual existe a possibilidade de reconhecimento da caracterização de uma infração disciplinar. Nos termos dos referidos dispositivos estatuto repressivo militar, o reconhecimento da atipicidade penal pode reconhecer a possibilidade de caracterização de uma infração disciplinar. Nestes caso, é necessário que exista previsão em texto normativo próprio de infração disciplinar que possa ser aplicada ao caso.


O juiz, no exercício de jurisdição criminal, não pode aplicar a sanção disciplinar, em tese, prevista para o caso. Como o órgão do Poder Judiciário não possui poder disciplinar sobre o jurisdicionado militar, somente a instituição militar a que pertence o réu poderá aplicar a sanção. Não se pode olvidar do princípio da separação dos poderes do Estado, expressa no art. 2º da Constituição da República. Sendo necessário instaurar processo administrativo disciplinar para a aplicação da sanção disciplinar, é possível que a Administração Militar reconheça a impossibilidade jurídica de aplicação da sanção. A insuficiência de prova sobre a autoria ou a prescrição da pretensão punitiva da Administração constituem exemplos em que juridicamente não será possível aplicar a sanção disciplinar.


Entretanto, as referências constantes do Código Penal Militar não condicionam, para o reconhecimento da insignificância penal militar da conduta examinada, que seja necessário constatar a existência de previsão normativa para a transgressão disciplinar. Os dispositivos apenas estabelecem a possibilidade de que o juiz, não identificando a significância da conduta para fins penais, remeta o caso para  autoridade administrativa.


Cabe observar que a Suprema Corte não faz mesma exigência em relação aos crimes funcionais praticados por civis. Se, por exemplo, um policial civil subtrair uma caneta esferográfica Bic da delegacia em que trabalha, para o reconhecimento da insignificância de sua conduta não será exigido que exista infração administrativa disciplinar que o possa punir de maneira suficiente. Se tal exigência é adequada aos servidores militares, também deveria ser para os servidores civis.


O mesmo princípio da separação dos poderes do Estado indica a inadequação da vinculação estabelecida entre a atipicidade penal e a tipicidade administrativa. A intervenção punitiva do Direito Penal apresenta critérios de adequação próprios e não se pode condicionar o reconhecimento da insignificância penal à significância administrativa que fundamenta a intervenção do Direito Administrativo sancionador.

      

 

6. Conclusão

 

A imputação objetiva do crime militar desafia o operador do Direito ao exercício de atividade valorativa que, certamente, qualifica a intervenção punitiva. Como acontece com o Direito Penal comum, os critérios normativos de relevância não oferecem ao operador do Direito respostas absolutas sobre qual seja o significado da conduta examinada no contexto de atuação das instituições militares. A apuração do significado de adequação ou inadequação de um comportamento para fins de imputação objetiva é tarefa a ser examinada conforme as peculiaridades de cada caso concreto.


As mencionadas decisões proferidas pelo Ministro Celso de Mello na Suprema Corte abriram as portas para o reconhecimento da insignificância de condutas formalmente descritas como crimes militares. Tais decisões ampliaram o horizonte de compreensão dos operadores do Direito quanto às potencialidades de aplicação da teoria da imputação objetiva em relação aos crimes militares.


O tema, no entanto, é doutrinariamente complexo e ainda desafia prosseguir com as reflexões.

 


Fernando Galvão é Professor Titular de Direito Penal da Faculdade de Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Desembargador Civil do Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais, ocupando vaga destinada ao quinto constitucional do Ministério Público.


Referências bibliográficas

 

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[1] ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal, p. 28.

[2]ROXIN, Claus. Derecho Penal, p. 51-52; FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón, p. 471-474; CARRASQUILLA, Juan Fernández. Principios y normas rectoras del derecho penal, p. 312. No mesmo sentido: BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro, p. 91.

[3] ROCCO, Arturo.  El objeto del delito y de la tutela jurídica penal, p. 11-12.

[4] ROXIN, Claus. Derecho Penal, p. 296-297.

[5] TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de Direito Penal, p. 69-70 e RIBEIRO, Bruno de Moraes. Medidas de segurança, p. 9.

[6] FEUERBACH, Paul Johann Anselm Ritter von. Tratado de Derecho Penal, p. 118-121.

[7] ROMAGNOSI, Giandomenico. Gênesis del derecho penal, p. 183-187.

[8] GAROFALO, R. Criminologia, p. 62-63.

[9] GAROFALO, R. Criminologia, p. 65-109.

[10] GAROFALO, R. Criminologia, p. 323-326.

[11] FERRI, Henrique. Princípios de Direito Criminal, p. 274-278.

[12] FERRI, Henrique. Princípios de Direito Criminal, p. 279-294.

[13] GRISPIGNI, Filippo. Derecho Penal italiano, p. 22-23.

[14] FERRI, Henrique. Princípios de Direito Criminal, p. 295-319.

[15] JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal, v. 1, p. 266 e p. 561; ROXIN, Claus. Derecho Penal, p. 798.

[16] JAKOBS, Günther. Derecho Penal, p. 596.

[17] Vale observar que no modelo da ação significativa, Vives Antón sustenta que a teoria do crime não pode ser referenciada aos elementos ontológicos da realidade naturalísta, mas ao significado que é normativamente atribuído a tais elementos. O modelo significativo substitui o referencial utilizado para a teoria do crime. No lugar da conduta humana (substrato material) portadora de sentido proibido, Vives propõe que figure o sentido que se pode atribuir normativamente a uma conduta (sentido do substrato). Partindo de uma pretensão de validez genérica da norma (fazer justiça), Vives concebe os elementos da teoria do crime como formas de expressão da referida pretensão, subdividindo-as em pretensão de relevância, pretensão de ilicitude e pretensão de reprovação. A estrutura do modelo de Vives não é compatível com o discurso da jurisprudência do Supremo para a insignificância. VIVES ANTÓN, Tomás S.. Fundamentos del sistema penal, p. 491-495.

[18] DECOMAIN, Pedro Roberto. Crimes contra a ordem tributária, p. 100-111.

[19] O vídeo que registra momento da lesão está disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=sT1vhW4GX-g> . Acesso em 03 de outubro de 2020.

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