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Suficiência e necessidade do Acordo de Não Persecução Penal para reprovação e prevenção do crime militar

  • Foto do escritor: Fernando Galvão
    Fernando Galvão
  • 14 de ago.
  • 5 min de leitura

Atualizado: 19 de ago.

O Supremo Tribunal Federal se manifestou expressamente pela possibilidade de aplicação do ANPP no âmbito da Justiça Militar, como se pode constatar das decisões monocráticas proferidas nos Habeas Corpus n° 218489 e n° 218809, bem como na decisão unânime 2ª Turma proferida no julgamento do Habeas Corpus n° 232254. No Superior Tribunal de Justiça o entendimento consolidado também admite a aplicação do instituto negocial, como se pode constatar das decisões monocráticas proferidas nos Habeas Corpus n° 933530, n° 978521 e n° 978586, no Habeas Corpus n° 993.294 da 5° Turma e no n° 988.351 da 6ª Turma.


Neste cenário, penso que devemos dar como superada a questão sobre a possibilidade da aplicação do instituto negocial e avançarmos no aprofundamento da análise sobre como aplicar o instituto nos casos que envolvem agentes públicos que integram o sistema de defesa social estabelecido pelo art. 144 da Constituição da República.


O art. 28-A do Código de Processo Penal, introduzido pela Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime), faculta ao Ministério Público propor acordo de não persecução penal sempre que presentes os seguintes pressupostos legais:

a) não se tratar de hipótese de arquivamento;

b) confissão formal e circunstanciada da infração penal;

c) infração penal sem violência ou grave ameaça;

d) pena mínima cominada inferior a 4 anos;

e) avaliação de suficiência e necessidade da medida para reprovação e prevenção do crime.


Trata-se, pois, de instrumento despenalizador, de natureza negocial, cuja finalidade precípua é o redirecionamento da resposta penal estatal para formas alternativas à imposição da pena privativa de liberdade, desde que não frustrados os objetivos da reprovação e da prevenção estabelecidos para a jurisdição penal.


Cumpre reconhecer que a aplicação do instituto deve ser compatível com a função pública exercida pelo investigado, sobretudo quando se trata de policial, figura que encarna, na prática, a expressão concreta do poder estatal armado.


A aplicação do Acordo de Não Persecução Penal aos agentes de segurança pública deve observar critérios específicos, sob pena de esvaziamento das funções repressivas e preventivas do Direito Penal, com consequente erosão da credibilidade das instituições públicas.


Não se pode perder de vista que o ANPP é instrumento voltado à racionalização da persecução penal, mas não à sua banalização, especialmente quando em jogo está a proteção do bem jurídico segurança pública.


No caso específico dos militares, acresce-se ainda a incidência do regime jurídico-militar, informado pelos princípios constitucionais da hierarquia e da disciplina (CF/88, arts. 42, §1º, e 142, §2º), os quais não se prestam à mera retórica simbólica, mas sim ao funcionamento ordenado das instituições militares e, no caso específico das instituições militares estaduais, preservam a integridade dos serviços essenciais à garantia da segurança pública.


Também importa considerar que a condenação criminal definitiva à pena privativa de liberdade superior a dois anos, nos termos do artigo 92, I, “a”, do Código Penal, viabiliza a perda do cargo público de policiais civis e, nos termos dos artigos 99 e 102 do Código Penal Militar, à perda da graduação e do posto de militares. A exclusão dos quadros da instituição, nesses casos, constitui medida saneadora e restauradora da integridade das instituições encarregadas de garantir o direito fundamental à segurança pública.


A celebração do ANPP obsta a formação de título condenatório judicial, e, com isso, impede eventual análise sobre a decretação judicial da perda do cargo, da graduação e do posto mesmo quando a conduta se revela profundamente incompatível com a permanência na função pública.


A celebração do acordo somente é cabível quando constituir medida suficiente para os fins de prevenção geral e especial. A simples aceitação de condições, sem o crivo de um julgamento público e a imposição de uma pena que expresse a gravidade da conduta ilícita realizada, pode não ser suficiente para reeducar o agente e restaurar a confiança social nele depositada.


Examinando a possibilidade de aplicação do instituto no contexto dos agentes de segurança pública, em especial a suficiência e a necessidade da medida para os fins de reprovação e prevenção do crime militar, é possível estabelecer como pressupostos negativos que impedem a celebração do ANPP os seguintes:


I – imputação da prática de infração penal com abuso da função ou mediante uso de símbolos e instrumentos da instituição, como fardamento, viatura ou armamento;

II – imputação da prática de crime funcional próprio, especialmente os que visam à proteção da probidade, legalidade e eficiência do serviço público (ex: prevaricação, corrupção, abuso de autoridade);

III – existência de vítima vulnerável em razão do poder de polícia exercido pelo agente (ex: pessoa custodiada, abordada ou subordinada hierarquicamente);

IV – imputação da prática de conduta que, embora formalmente subsumida a crime comum, revele conteúdo eticamente incompatível com o exercício da função policial (ex: furtos, fraudes, lesões corporais gratuitas);

V – existência de histórico de sanções disciplinares ou envolvimento reiterado em condutas ilícitas, ainda que sem condenações penais anteriores;

VI – existência de circunstâncias que evidenciem gravidade concreta do crime, tais como concurso de crimes ou de pessoas, dupla sujeição passiva (Administração Pública e vítima civil), maior experiência profissional do agente ou violação de bem jurídico essencial ao funcionamento probo da Administração Militar, de modo a tornar insuficiente a resposta penal negocial para os fins de reprovação e prevenção do crime.


Nos casos em que se reconheça a possibilidade de celebração do acordo com o agente de segurança pública, cabe considerar o estabelecimento de condições adicionais, adequadas às peculiaridades do caso concreto, tais como:


a) afastamento das funções operacionais durante o cumprimento das condições acordadas;

b) submissão a programa de reeducação institucional ou ética profissional, oferecido por entidade pública ou que lhe seja vinculada;

c) anuência expressa à instauração de procedimento disciplinar, não vinculada ao resultado da esfera penal, quando houver transgressão disciplinar residual;

d) prestação de serviço comunitário fora do âmbito da corporação, evitando desvio da finalidade restaurativa da medida;

e) cláusula resolutiva expressa, com revogação do acordo em caso de nova infração penal ou disciplinar durante o cumprimento das condições.


Tais exigências não extrapolam o texto legal, mas o interpretam à luz do princípio da proporcionalidade, do dever de proteção institucional do Estado e da concreta análise da suficiência e necessidade da medida para a reprovação e prevenção do crime, como exige o próprio caput do art. 28-A do Código de Processo Penal.


A finalidade precípua do direito penal não se esgota na mera imposição de uma sanção, mas abrange a função de reafirmar a validade da norma jurídica violada e de desestimular a prática de novos ilícitos. A ausência de um processo penal completo, com a devida publicidade e o reconhecimento formal da culpabilidade, não pode gerar na sociedade uma percepção de irresponsabilidade ou de leniência, comprometendo a credibilidade do sistema de justiça e a integridade das instituições públicas. A resposta negocial, embora célere e desburocratizada, não possui a mesma força simbólica e pedagógica de uma condenação judicial, que serve como um marco de reprovação social e um alerta para a comunidade.


Portanto, embora o ANPP seja um instrumento valioso para a racionalização do sistema de justiça em crimes de menor potencial ofensivo ou de menor gravidade, sua aplicação indiscriminada aos crimes que afetam a estrutura e a moralidade da Administração Pública desvirtua os objetivos de reprovação e prevenção que são atribuídos à pena.

 

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