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  • Fernando Galvão

Novos crimes militares de drogas


A alteração produzida pela Lei 13.491/2017 no inciso II do art. 9º do Código Penal Militar introduziu no universo do Direito Penal Militar crimes militares novos em relação aos crimes que já eram previstos no Código Penal Militar. A inserção de tantos e diversificados crimes militares novos desafia os operadores do Direito a resolver possíveis conflitos que aparentemente se estabelecem entre os tipos penais incriminadores novos e os antigos. A dificuldade reside em saber se os tipos novos revogam os tipos antigos ou com eles são compatíveis.


As dúvidas somente poderão surgir quando se tratar da caracterização de crimes impropriamente militares. Os crimes propriamente militares são previstos exclusivamente na Parte Especial do Código Penal Militar e, por isso, não há a possibilidade de conflito com tipos previstos na legislação penal comum. Os conflitos somente poderão ocorrer em relação aos crimes impropriamente militares, para os quais exista previsão concomitante no Código Penal Militar e na legislação penal que lhe é extravagante.


Nos casos em que a descrição típica do novo crime militar apresentar alguma inovação em relação ao crime previsto no Código Penal Militar, deve-se reconhecer que a previsão legal para o crime militar mais novo (estabelecido com a edição da Lei 13.491/2017) revoga a previsão mais antiga constante do Código Penal Militar. A premissa a ser observada é a de que a previsão mais nova expressa o ponto de vista mais atualizado do legislador sobre o desvalor da conduta criminosa e, por isso, deve substituir o ponto de vista anterior. Nesse sentido, o artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (1) – Decreto-Lei 4.657/42 dispõe que a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.


A tipificação dos crimes de drogas, com certeza, se apresentará como um dos mais importantes desafios para os operadores do Direito Militar após a edição da Lei 13.491/2017. No Código Penal Militar, os crimes de uso e tráfico de drogas encontram previsão conjunta no art. 290 do Código Penal Militar. Na legislação penal comum, os crimes de drogas estão previstos nos artigos 28 e 33 da Lei 11.343/2006, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad.


Antes da modificação introduzida pela Lei 13.491/2017, predominou entendimento de que os crimes militares de drogas não estavam sujeitos ao Sisnad. Nesse sentido, o Superior Tribunal Militar editou a súmula nº 14, segundo a qual tendo em vista a especialidade da legislação militar, a Lei nº 11.343, de 23 Ago 06, (Lei Antidrogas) não se aplica à Justiça Militar da União. O Supremo Tribunal Federal, em jurisprudência cambiante, após 2010 passou a decidiu que a Lei 11.343/06 não afastou a incidência do art. 290 do CPM (HC 94.685).


Formalmente, o argumento da especialidade da lei militar sustentou a opção pela punição para os usuários de drogas com base no art. 290 do Código Pena Militar. Materialmente, a motivação que sustentou a aplicação do dispositivo do Código Pena Militar se fundamenta no entendimento de que, no âmbito das instituições militares, a conduta merece punição e não apenas tratamento médico.


O argumento formalmente utilizado da especialidade do Código Penal Militar, por outro lado, sustentou a responsabilização muito mais branda do traficante de drogas que realiza a conduta proibida em lugar sujeito à administração militar. Na operação prática do Direito Militar predominou o entendimento que sustenta a aplicação do art. 290 do CPM, porque permite a punição do usuário de drogas e os crimes de tráfico em lugar sujeito à administração militar são raros.


Com a mudança promovida pela Lei 13.491/2017, o argumento da especialidade não poderá ser mais utilizado e não é possível sustentar que as normas incriminadoras sejam compatíveis entre si. Realizada a conduta em qualquer das circunstâncias descritas nas alíneas do inciso II do art. 9º, do CPM, o que inclui realizá-la em local sujeito à administração militar (alínea “b”), o crime previsto na Lei 11.343/2006 será militar. Não se poderá sustentar a aplicação do art. 290 do CPM com base na especialidade, pois os crimes previstos na Lei 11.343/2006 também são militares. Também não é possível sustentar a aplicação do referido artigo com base em sua “específica” previsão típica de que a conduta deve ser realizada em local sujeito à administração militar, pois esta também é uma das circunstâncias caracterizadoras do crime previsto na Lei 11.343/2006.


No conflito aparente que se estabelece entre as normas incriminadoras militares dos arts. 290 do Código Penal Militar, arts. 28 e 33 da Lei 11.343/2006, deve prevalecer as disposições mais recentes da Lei 11.343/2006. A rigor, não se trata de um concurso aparente de tipos incriminadores, mas de saber que a previsão típica posterior revoga a previsão típica anterior.


Importa ainda notar que a Lei 11.343/2006 instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad, que estabelece a posição mais atualizada sobre o tema das drogas, é manifestamente incompatível com o art. 290 do CPM e que regula toda a matéria sobre drogas. Não é juridicamente possível sustentar a validade do art. 290 do CPM diante da nova realidade jurídica que incorporou, como militares, os crimes previstos na Lei 11.343/2017. Por isso, com base no artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – Decreto-Lei 4.657/42, deve-se concluir que a previsão para os crimes da Lei 11.343/2006 revogaram o tipo incriminador do art. 290 do Código Penal Militar.


A forte rejeição à conduta do usuário de drogas no ambiente militar e expectativa que se consolidou no sentido de sua punição pela Justiça Militar não podem superar a lógica jurídica da sucessão de tipos incriminadores no tempo. não se pode resolver o problema identificado com base no critério de que o art. 290 do CPM estabelece tratamento mais gravoso ao usuário de drogas. Se o uso de drogas em lugar sujeito à administração militar evidencia a necessidade de tutelar criminalmente a disciplina nas instituições militares, tal tutela deve operar-se por meio da caracterização de outro tipo incriminador, como por exemplo o que estabelece o crime de inobservância de lei, regulamento ou instrução (art. 324 do CPM). Por outro lado, nada impede que o militar usuário de drogas que seja flagrado em lugar sujeito à administração militar seja responsabilizado administrativamente pela conduta inadequada e, até mesmo, seja excluído da instituição militar. O Supremo Tribunal Federal já reconheceu que a exclusão da instituição militar do usuário de drogas é possível e expressa medida suficiente para a preservação da hierarquia e disciplina (HC 92.961). A responsabilização administrativo-disciplinar pode tutelar, e com muito mais eficiência do que a penal, os pilares organizacionais das instituições militares.


No que diz respeito o novo crime militar de tráfico de drogas, previsto no art. 33 da Lei 11.343/2006 combinado com o inciso II do art. 9º do CPM, a incriminação ficou sensivelmente mais gravosa. O novo tipo apresenta 18 verbos descritivos de condutas proibidas, acrescentando 7 novas condutas em relação à previsão anterior constante do art. 290 do Código Penal Militar. A pena cominada é de reclusão, de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e multa de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. O tipo previsto no art. 33 da Lei 11.343/2006 é mais completo do que expresso pelo art. 290 do CPM, na medida em que contém todas as condutas descritas no art. 290 e ainda acrescenta outras 7 para formar o complexo de condutas relevantes no que diz respeito ao tema das drogas. A posição mais atualizada em relação ao tráfico de drogas, certamente, é incompatível com a previsão mais branda constante do art. 290 do CPM e, por isso, a revoga.


Não se pode admitir, data vênia, a posição que já aponto na doutrina de que o art. 290 do CPM é compatível com os tipos incriminadores da Lei 11.343/2006, de modo que a incriminação da referida lei somente teria lugar nas hipóteses não previstas no art. 290.(2) Tal entendimento desconsidera a lógica da sucessão de tipos incriminadores no tempo e institui uma terceira forma de incriminação típica, formada em parte pelo tipo constante do Código Penal Militar e em outra parte pelos tipos estabelecidos na Lei 11.343/2006. Tal construção é juridicamente impossível. A interpretação do operador do Direito Penal Militar não pode inovar a legislação incriminadora para criar uma figura típica que atenda às suas expectativas.



NOTAS


1 - A Lei 12.376/2010 determinou que o Decreto-Lei passasse a tratar da Introdução às Normas do Direito Brasileiro.


2 - ROTH, Ronaldo João. Os delitos militares por extensão e a nova competência da Justiça Militar (Lei 13.491/17), p. 32.



Referência Bibliográfica


ROTH, Ronaldo João. Os delitos militares por extensão e a nova competência da Justiça Militar (Lei 13.491/17). In Revista Direito Militar, nº 126, setembro-dezembro de 2017.



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