Considerações sobre o Projeto de Lei 582/2015 e o crime militar de assédio sexual
- Jorge Cesar de Assis
- 22 de set.
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A Câmara dos Deputados em sessão do dia 13.08.2025, aprovou projeto de lei que tipifica o crime de assédio sexual no Código Penal Militar, definindo também um Protocolo de medidas protetivas e de prevenção desse assédio nos ambientes profissionais. A proposta foi enviada ao Senado para apreciação. As medidas previstas no texto valerão tanto para os militares das Forças Armadas, das polícias militares e dos corpos de bombeiros quanto para as pessoas sob sua jurisdição administrativa ou disciplinar, independentemente do local em que se encontrem. O texto aprovado no Plenário da Câmara é um substitutivo da relatora, deputada Coronel Fernanda (PL-MT), ao Projeto de Lei 582/2015, de autoria do falecido deputado e senador Major Olímpio, e que buscou estabelecer um protocolo de garantias específicas para a proteção de militares vítimas de assédio sexual, reconhecendo as assimetrias de poder e os obstáculos estruturais presentes no ambiente militar.
Em um primeiro momento iremos comparar o novel tipo penal militar proposto com seu correlato no Código Penal comum, e em seguida analisaremos as garantias específicas para o atendimento do assédio sexual em ambiente castrense previstas no Protocolo.
1 - Comparando o assédio sexual na legislação penal comum com a militar
Vejamos, portanto, o quadro comparativo da previsão típica para os dois códigos:
Código Penal | Código Penal Militar |
Assédio sexual (Incluído pela Lei nº 10.224, de 15 de 2001)
Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. (Incluído pela Lei nº 10.224, de 15 de 2001)
Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos. (Incluído pela Lei nº 10.224, de 15 de 2001)
Parágrafo único. (VETADO) § 2o A pena é aumentada em até um terço se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
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Assédio Sexual (PL 582/2015 aprovado vai ao Senado)
Art. 232-A Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente de sua condição de superior hierárquico ou de sua ascendência:
Pena - detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.
Parágrafo único. A pena é aumentada em até 1/3 (um terço): I – se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos; II – se a conduta se dá com emprego de violência física; III – se a conduta é realizada por superior imediato.” |
Conquanto tenha como vítimas frequentes as pessoas do sexo feminino, da forma como está previsto na norma, o assédio sexual [constranger alguém] tanto pode ser cometido por homens como por mulheres, tendo igualmente por vítimas homens ou mulheres, desde que a conduta praticada se enquadre na previsão típica. Há um lapso temporal considerável entre as duas previsões porque no CP comum a previsão típica é de 2001, enquanto no CP Militar a proposta de inclusão vem cerca de 25 anos depois.
De plano se percebe que o nomen iuris é idêntico (assédio sexual) para os dois códigos, assim como a descrição do tipo, com a observação que a redação do art. 216-A do Código Penal é mais específica em relação à “ascendência”[1] do assediador(a), já que deixa claro que esta ascendência é inerente ao exercício de emprego, cargo ou função, que a proposta para o CPM não possui, mas há que se entender implícita na relação assediador(a) versus assediada(o).
Em relação à pena, aquela proposta para o Código Penal Militar (detenção de 2 a 4 anos) é exatamente o dobro da prevista no Código Penal comum (detenção de 1 a 2 anos). Qual seria a justificativa para tal discrepância não ficou consignado no projeto, mas parece ser o fato dos militares estarem na condição de garantes da defesa da Pátria e pela preservação da ordem pública, uma categoria especial de servidores públicos lato senso.
Há, nas duas figuras penais comparadas, uma circunstância de especial aumento de pena (majorante), de 1/3, quando a vítima é menor de 18 anos (§ 2º, do art. 216-A, do CP e; inciso I, do parágrafo único do art. 232-A proposto para o CPM). A previsão é por deveras importante, haja vista estarem os menores de 18 anos garantidos pela proteção integral que lhes confere o Estatuto da Criança e do Adolescente[2], e envolve a possibilidade do cometimento de assédio sexual nos Colégios Militares, onde a presença de crianças e adolescentes na qualidade de alunos é permanente.
Na proposta do PL 582/2015, incidirá, ainda a circunstância de especial aumento de pena se a conduta se dá com o emprego de violência física (inciso II do parágrafo único), e, também, se a conduta é realizada por superior imediato (inciso III do parágrafo único).
Com a devida vênia, parece, s.m.j. que descabe a majorante do inciso II acima referido, isto porque se o assédio sexual for praticado com emprego de violência física, a conduta se transfere para a figura do estupro[3]. Da mesma forma, a previsão de aumento de pena quando o crime for praticado por superior imediato também é contraditória. Com efeito, na vida militar, superior imediato tanto pode ser aquele que está um degrau acima na escala hierárquica (hierarquia vertical), p.ex., o cabo é superior do soldado, o 1º tenente do 2º, etc., como aquele que em virtude da função (hierarquia funcional), exerce autoridade sobre outro de igual posto ou graduação (art. 24, do CPM).
Assim, a previsão do inciso III do parágrafo único do Projeto de Lei já aprovado na Câmara dos Deputados é desnecessária, isto porque conforme o caput do previsto artigo 232-A, o assediador sempre estará prevalecendo-se de sua condição de superior hierárquico ou de sua ascendência [circunstância elementar do tipo]. Nos termos em que foi proposto o inciso III do parágrafo único, a pena de um(a) chefe de seção (2º tenente) que assediasse outro(a) militar (sargento) do mesmo local de trabalho (mesma seção), portanto sendo seu superior imediato, seria maior que o caso em que o assédio partisse do Comandante do Batalhão (tenente-coronel) contra a mesma vítima que não trabalharia com ele na mesma sala, o que não teria sentido, gera discussão sobre sua aplicabilidade e contraria o objetivo da norma, sendo, portanto, desnecessário o dispositivo. Para a caracterização do assédio sexual militar basta a condição de superioridade hierárquica ou de ascendência, do assediador sobre a vítima, não havendo espaço para aumento de pena por esta mesma condição.
2 - Conveniência e oportunidade do tipo penal militar aprovado pela câmara
Temos que o proposto art. 232-A para o Código Penal Militar é de todo desnecessário. Com efeito, o projeto original data de 2015 e este marco temporal deve ser levado em consideração, pois à época em que foi apresentado, em termos de crime militar tínhamos a clássica distinção entre crimes militares próprios e impróprios, sendo os primeiros aqueles que somente poderiam ser cometidos por militares e estivessem previstos apenas no CPM e os segundos aqueles com igual definição tanto na lei penal militar como na comum.
Acontece que com o advento da Lei 13.491, de 2017 [dois anos após o PL 582/2015), veio ao cenário jurídico uma terceira categoria de crimes militares, que preferimos denominar de crimes militares por extensão e que Cícero Coimbra denomina de crimes militares extravagantes.
A diferença é apenas de terminologia adotada, a Lei 13.491/2017 foi de uma precisão cirúrgica, alterando apenas o inciso II, do art. 9º, do Código Penal Militar, para passar a dizer que, consideram-se crimes militares, em tempo de paz: (...) II - os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados em uma das hipóteses que o referido inciso contempla[4]. Ou seja, desde que praticado em uma das hipóteses do inciso II do art. 9º, desde 2017, qualquer crime da legislação penal comum transforma-se em crime militar por extensão [extravagante], inclusive o crime do art. 216-A, do Código Penal (assédio sexual), sendo, portanto, desnecessária a previsão de um novo art. 232-A para o Código Penal Militar.
A Lei 13.491/2017 era suficiente por si só para ampliar a competência da Justiça Militar e evitar indesejado concurso aparente de normas e, com ele, a interposição de recursos procrastinando a regular marcha do processo. Tome-se por exemplo a Lei 14.688, de 2023, proclamada como aquela destinada a compatibilizar o CPM com a Constituição Federal e com o CP comum, promovendo uma mini reforma na lei penal castrense, incidindo no mesmo erro desnecessário de trazer tipos penais comuns para a lei penal castrense, alguns ensejadores de Ação Direta de Inconstitucionalidade [ADI 7.555[5]], além de outros tipos penais comuns trazidos a toque de caixa para o CPM deixando claro que a pretendida compatibilização não ocorreu[6].
3 - Prevenção, acolhimento, proteção e responsabilização em casos de assédio em ambiente militar
Para além da Alteração Legislativa com a inclusão do desnecessário art. 232-A (Capítulo VII), o texto aprovado estabelece importante Protocolo que dispõe sobre a prevenção, o acolhimento, a proteção e a responsabilização em casos de assédio sexual em ambiente militar, estabelecendo as Disposições Preliminares e Âmbito de Aplicação (Capítulo I); as Definições (Capítulo II); o Direito à Escuta Qualificada (Capítulo III); as Medidas Protetivas de Urgência (Capítulo IV); o Afastamento Funcional Provisório (Capítulo V) e; as Medidas de Prevenção ao Assédio Sexual no Ambiente Militar (Capítulo VI), que devem ser implementadas pelas autoridades militares com poder de mando e decisão.
A parte protetiva do projeto de lei é bem-vinda. As medidas seguem um padrão atual de conscientização que floresce na sociedade como um todo alcançando as Forças Armadas e Forças Auxiliares, e que se pode verificar em publicações importantes como a pesquisa de Mariana Aquino e Rodrigo Foureaux sobre as 10 medidas contra o assédio sexual[7]; a Cartilha elaborada pelo Ministério Público Militar “Assédio na Caserna – Dizer não não é insubordinação”[8], além da Cartilha “Conhecendo a proteção jurídica à Mulher Militar”, editada pelo Superior Tribunal Militar[9].
Nos termos do art. 1º, do PL aprovado na Câmara, a Lei dispõe sobre a prevenção, o acolhimento, a proteção e a responsabilização em casos de assédio sexual no ambiente militar, aplicando-se aos militares em todas as situações em que estejam no exercício de suas funções e às pessoas sob a jurisdição administrativa ou disciplinar de autoridade militar, independentemente do local em que se encontrem (art. 2º). Quando se refere às pessoas sob a jurisdição administrativa ou disciplinar da autoridade militar, há que se entender incluídos nesta categoria os servidores civis, os alunos dos colégios militares e seus professores, que também são civis.
No campo das definições, dentre as medidas de acolhimento (art. 3º, I) é de se destacar a referência à escuta qualificada, definida como acolhimento técnico, ético e humanizado da vítima, conduzido por profissional capacitado, com o objetivo de garantir a escuta atenta, empática, não revitimizante e confidencial, de forma a assegurar o registro fiel dos fatos e o encaminhamento adequado da reclamação, respeitados os direitos da vítima e os protocolos legais e institucionais aplicáveis (art. 3º, VI), tratada com detalhes em um capítulo específico (III), a partir do art. 4º do PL aprovado que consagra o Direito à Escuta Qualificada, dos militares e das pessoas sob a jurisdição administrativa ou disciplinar de autoridade militar que sejam vítimas de assédio sexual no exercício de suas funções ou em área sob jurisdição militar receber atendimento imediato e integral pelos órgãos competentes, civis ou militares. Cabe, aqui, um adendo para referir que a escuta qualificada do assédio sexual militar guarda similitude com a escuta especializada e depoimento especial, previstos pela Lei 13.431, de 04 de abril de 2017, que em seu art. 7º define escuta especializada como o procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade, enquanto o art. 8º define depoimento especial como o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária. Por óbvio, que se a vítima do assédio sexual em ambiente sob Administração Militar for criança ou adolescente, a norma protetiva específica deverá igualmente ser observada.
O PL aprovado refere também (art. 4º, III) ao direito de acesso imediato à ouvidoria militar, com atendimento realizado por oficial capacitado especificamente para esse fim, assegurados o sigilo, a proteção contra retaliações e a tramitação célere dos procedimentos.
O Projeto de Lei fala em Ouvidoria Militar, e, por isso interessante diferenciá-lo da Corregedoria. Sabe-se que a ouvidoria é um canal direto de comunicação e diálogo entre o cidadão e a instituição, que recebe sugestões, reclamações, denúncias e elogios, encaminhando aos setores responsáveis, visando a promoção da participação da comunidade destinatária do serviço público e sua melhoria. Já a corregedoria é um órgão de controle interno e fiscalização, responsável por investigar irregularidades e infrações disciplinares de servidores e agentes públicos, apurando faltas e aplicando sanções.
Como referido anteriormente[10], ao que consta, todos as Unidades da Federação possuem suas Ouvidorias destinadas a avaliar a qualidade de todos os serviços públicos prestados à coletividade, inclusive o de segurança pública. Esse sistema de controle pode se apresentar sob uma forma centralizada com ação sobre vários órgãos do sistema de segurança pública (Corregedoria-Geral, Ouvidoria Geral etc.)[11] ou descentralizada, buscando especialidade no controle de uma atividade específica, a exemplo das corregedorias das polícias e dos corpos de bombeiros militares. O fenômeno das corregedorias das polícias militares e corpos de bombeiros militares não tem ocorrido de forma uníssona, havendo Estados que preferem corregedoria autônoma, enquanto outros há que buscam a correção da atividade policial civil e militar, por órgão único, em regra denominado corregedoria de polícia. Há unidades da Federação, inclusive, que sobrepõem camadas de controle interno, como ocorre em São Paulo, onde há corregedorias distintas para a Polícia Militar e para a Polícia Civil, ao mesmo tempo em que há a ouvidoria de polícia[12], que congraça o controle de ambas as instituições.
Comum em relação às instituições militares estaduais, caberá às Forças Armadas, no entanto a instalação de suas Ouvidorias, realidade que ainda não aconteceu e da qual ainda não se tem notícia. Mas que o PL aprovado prevê como essencial.
O mesmo art. 4º já garantiu, dentre outras medidas, o acompanhamento psicológico e assistência social prestados por profissionais com capacitação específica no atendimento a vítimas de violência sexual (I); a transferência de unidade, setor ou função, a pedido da vítima, quando identificado risco à sua integridade física ou psicológica ou para interromper o vínculo hierárquico com o reclamado (II), que são medidas que chamam a atenção por colocarem a vítima em estado de acentuada fragilidade, contrastando com a própria natureza de um serviço em que mesmo o risco de vida é aceito solenemente pelos militares sejam eles homens ou mulheres.
O projeto de lei aprovado na Câmara, assegura, ainda atendimento preferencial e prioritário em todas as fases do inquérito e do processo administrativo ou penal (garantia semelhante à estendida aos idosos[13] e portadores de deficiência[14]), asseguradas a escuta qualificada e a não revitimização do reclamante (V).
Quanto à garantia de não revitimização do reclamante, não se pode esquecer que a Lei 14.321, de 31 de março de 2022, alterando a Lei nº 13.869, de 05 de setembro de 2019 - Lei de Abuso de Autoridade (LAA), passou a tipificar o crime de violência institucional, incluindo na LAA o art. 15-A, verbis:
Art. 15-A. Submeter a vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade: (Incluído pela Lei nº 14.321, de 2022)
I - a situação de violência; ou (Incluído pela Lei nº 14.321, de 2022)
II - outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização: (Incluído pela Lei nº 14.321, de 2022)
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. (Incluído pela Lei nº 14.321, de 2022)
§ 1º Se o agente público permitir que terceiro intimide a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena aumentada de 2/3 (dois terços). (Incluído pela Lei nº 14.321, de 2022)
§ 2º Se o agente público intimidar a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena em dobro. (Incluído pela Lei nº 14.321, de 2022)”
O Ministério Público, defensor dos direitos sociais e individuais indisponíveis, deve manter-se atento. Conforme o art. 2º da Resolução 243/2021 do Conselho Nacional do Ministério Público, as unidades do Ministério Público deverão implementar, gradualmente e de acordo com sua autonomia administrativa, Núcleos ou Centros de Apoio às Vítimas, levando em consideração a gravidade, a magnitude e as características do fato vitimizante, e a consequente violação de direitos, sendo orientados pelos princípios da dignidade, da igualdade, do respeito, da autonomia da vontade, da confidencialidade, do consentimento e da informação, sem prejuízo do atendimento rotineiro das vítimas pelo órgão ministerial competente.
Também destacar as seguintes conclusões decorrentes do 9º Encontro do Colégio de Procuradores de Justiça Militar, levado a efeito em Brasília/DF, em 02 de dezembro de 2021:
Enunciado 9: Recomenda-se aos membros do Ministério Público Militar que, com base no artigo 3º, alínea a, do CPPM, zelem pelo cumprimento das comunicações previstas no §2º do artigo 201 do CPP: “O ofendido será comunicado dos atos processuais relativos ao ingresso e à saída do acusado da prisão, à designação de data para audiência e à sentença e respectivos acórdãos que a mantenham ou modifiquem”
Enunciado 10: O Ministério Público Militar deve criar um grupo de trabalho para estabelecer a política institucional de proteção integral e de promoção de direitos e de apoio às vítimas de crime militar, visando elaborar um protocolo de atuação.
Enunciado 11: Recomenda-se aos membros do Ministério Público Militar que pleiteiem, quando do oferecimento da denúncia, a fixação do valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido, com base no disposto no artigo 387, inciso IV, do CPP, c/c artigo 3º, alínea a, do CPPM.
Enunciado 12: Recomenda-se aos membros do Ministério Público Militar, nos casos de delitos militares extravagantes previstos na Lei nº 13.869, de 05 de setembro de 2019 (Lei de Abuso de Autoridade), que procedam à notificação da vítima, antes do oferecimento da denúncia, para que se manifeste quanto ao contido no inciso I do artigo 4º da citada Lei.
O PL aprovado também prevê em seu art. 5º, um capítulo das medidas protetivas de urgência, dentre as quais a de afastamento do reclamado da unidade ou do setor de trabalho e sua designação para trabalhar em outro local, com preservação da remuneração e sem prejuízo do andamento do processo administrativo ou judicial (I) e a garantia da transferência funcional, a pedido da vítima, para unidade, setor ou área distinta, sem prejuízo de direitos e progressões funcionais a que faça jus (IV) além de determinação de acompanhamento psicológico e terapêutico ao reclamado, conforme avaliação da autoridade sanitária competente (VI).
Há, nesse tópico, inegável semelhança com as medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha[15] [sempre defendemos a possibilidade de aplicação das medidas previstas na LMP nos casos envolvendo casais de militares], mas algumas medidas do PL 582/2015 suscitam uma reflexão em face da especificidade da vida castrense. É a determinação da restrição de contato, por qualquer meio, entre o reclamado e a vítima, inclusive por canais hierárquicos ou institucionais (II) e a proibição do acesso do reclamado aos locais frequentados pela vítima, inclusive eventos ou treinamentos obrigatórios, conforme a avaliação de risco e o previsto no plano de proteção (III), a primeira por ensejar uma afastamento do local de trabalho onde se encontre o agente do assédio e sua vítima e, a segunda por se referir inclusive a eventos ou treinamentos obrigatórios em que as partes envolvidas devam participar. Já a permissão do inciso V, de acompanhamento da vítima por pessoa de sua escolha para atos administrativos ou processuais, quando por ela solicitado causa uma certa surpresa já que, em princípio estamos nos referindo a pessoas absolutamente capazes para os atos da vida civil, e que sempre poderá estar acompanhada de um Advogado.
O § 3º, do art. 5º, determina que a adoção das medidas protetivas [pela autoridade militar] deverá ser comunicada de imediato ao Ministério Público Militar [melhor seria referir-se apenas ao Ministério Público já que o MPM é ramo do Ministério Público da União, atuando apenas em nível federal], à ouvidoria militar competente e, quando for o caso, à autoridade judicial. A ressalva de comunicação ao juiz quando for o caso não condiz com a realidade. Se estamos tratando de assédio sexual, independentemente de qualquer apuração disciplinar, haverá necessariamente que ser instaurado um inquérito policial militar, e todas essas medidas deverão ser comunicadas ao Juiz das Garantias, que é quem atua na fase da investigação criminal.
Já o § 6º prevê a violação do dever funcional, em caso de atraso deliberado na adoção das providências previstas nesta Lei ou o descumprimento injustificado delas pela autoridade militar competente, quando tiver conhecimento dos fatos e meios para agir.
O § 7º prevê que o descumprimento de qualquer medida protetiva por parte do reclamado caracterizará a recusa de obediência, prevista no art. 163 do Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 (Código Penal Militar), independentemente do processo em face do assédio sexual.
Pode-se abrir um parêntese para lembrar que a Lei Maria da Penha, Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, tem um tratamento severo, criminalizando o descumprimento das medidas protetivas de urgência previstas na norma legal:
Art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei: (Incluído pela Lei nº 13.641, de 2018)
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 14.994, de 2024)
§ 1º A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu as medidas. (Incluído pela Lei nº 13.641, de 2018)
§ 2º Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança. (Incluído pela Lei nº 13.641, de 2018)
§ 3º O disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis. (Incluído pela Lei nº 13.641, de 2018)
Por sua vez, o art. 6º do PL trata do afastamento funcional provisório do militar acusado de assédio, ressalvando a declaração de inocência ou insuficiência de provas no âmbito do devido processo legal, ocasião em que o afastamento provisório será extinto e o militar acusado inicialmente poderá reassumir sua função. A sentença condenatória transitada em julgado transformará o afastamento funcional em movimentação e impedirá o autor do crime de assédio sexual de trabalhar em unidade em que tenha ascensão funcional em relação à vítima por um período de 4 (quatro) anos.
Em seu art. 7º, o projeto de lei prevê as medidas de prevenção contra o assédio em ambiente militar, verbis:
Art. 7º As instituições militares deverão adotar medidas permanentes e sistemáticas de prevenção ao assédio sexual em seus ambientes organizacionais, assegurados, no mínimo a:
I – inclusão de conteúdos sobre ética profissional, limites da hierarquia e enfrentamento do assédio sexual nos cursos de formação, de capacitação e de promoção de carreira;
II – realização periódica de campanhas institucionais de sensibilização, com linguagem acessível e foco na prevenção à violência sexual e na promoção de um ambiente de respeito mútuo e dignidade profissional;
III – criação ou fortalecimento de canais internos de escuta qualificada e de reclamação, com garantia de sigilo, proteção contra retaliações e acompanhamento da vítima por pessoa capacitada;
IV – instituição de protocolos claros de encaminhamento das reclamações, com prazos definidos e vedação expressa de interferência hierárquica indevida;
V – realização periódica de diagnósticos institucionais sobre cultura organizacional, clima de assédio e percepção de segurança entre os militares, com base em métodos que garantam o anonimato e a transparência;
VI – adoção de critérios objetivos de distribuição de pessoal e definição de comandos, de forma a evitar alocações funcionais que possam gerar risco de coerção, intimidação ou reiteração de condutas inadequadas;
VII – previsão, nos regulamentos internos, de responsabilização administrativa para superiores hierárquicos que tiverem ciência de situação de assédio sexual e deixarem de agir com a devida diligência para interrompê-la ou apurá-la.
§ 1º As medidas previstas neste artigo deverão ser implementadas de forma contínua, com supervisão de órgão de controle interno, e auditadas anualmente por instância independente da estrutura de comando.
§ 2º A inobservância reiterada das medidas preventivas poderá configurar omissão institucional e sujeitar os responsáveis à apuração de responsabilidade administrativa ou disciplinar.
Por fim, o art. 9º, do PL, determina que o sigilo a que a vítima tem direito enquadra-se, no mínimo, na classificação reservada prevista no art. 24 da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011 (Lei de Acesso à Informação)[16]. Vale lembrar o art. 17-A, da Lei Maria da Penha, incluído pela Lei nº 14.857, de 2024, segundo o qual o nome da ofendida ficará sob sigilo nos processos em que se apuram crimes praticados no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Em que pese o assédio sexual ser crime contra a dignidade sexual (Título VI, do Código Penal e as legislações penais devem estar em conformidade), a ele não se aplica o tratamento rigoroso das questões de sigilo envolvendo a identificação do réu, e que se encontra previsto no art. 234-B, do Código Penal comum[17].
4 – CONCLUSÃO
A conclusão a que se chega, ressalvado entendimento contrário e de todo respeitado é a de que a previsão do novo tipo penal militar para o art. 232-A, do CPM é desnecessária, em face da possibilidade de caracterização do art.216-A, do CP comum como crime militar por extensão [extravagante] ao enquadrar-se o fato delituoso em uma das hipóteses do inciso II do art. 9º. Ademais, a previsão para o Código Penal Militar tem sua pena estipulada em dobro, além da previsão, descabida, de circunstância de especial aumento de pena se a conduta se dá com o emprego de violência física (inciso II do parágrafo único), e, também, se a conduta é realizada por superior imediato (inciso III do parágrafo único).
A parte positiva do Projeto de Lei, traduzida em um Protocolo de garantias específicas para a proteção de militares vítimas de assédio sexual, reconhecendo as assimetrias de poder e os obstáculos estruturais presentes no ambiente militar deve ser louvada, mas mesmo ela pode ser aperfeiçoada em face das peculiaridades do ambiente castrense.
Jorge Cesar de Assis é Advogado inscrito na OAB-PR. Membro aposentado do Ministério Público Militar da União. Integrou o Ministério Público paranaense. Capitão da reserva não remunerada da Polícia Militar do Paraná - PMPR. Sócio Fundador da Associação Internacional de Justiças Militares-AIJM. Membro correspondente da Academia Mineira de Direito Militar e da Academia de Letras dos Militares do Estado do Paraná – ALMEPAR. Coordenador da Biblioteca de Estudos de Direito Militar da Editora Juruá. Administrador do site: www.jusmilitaris.com.br
NOTAS
[1] Ascendência. Em que pese referir-se também ao parentesco com os pais e outros antepassados, no tipo penal, ascendência tem o significado de influência, predomínio, de uma pessoa em relação à outra, o professor em relação ao aluno; o patrão em relação ao empregado; o comandante ou superior hierárquico em relação ao militar subordinado.
[2] Lei 8.069, de 13 de julho de 1990 – ECA. Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente
[3] Estupro. CP, art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009) Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.(Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009). Vide previsão do estupro do art. 232, do Código Penal Militar.
[4] CPM, art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz: I (...); II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados: (Redação dada pela Lei nº 13.491, de 2017) a) por militar da ativa contra militar na mesma situação; (Redação dada pela Lei nº 14.688, de 2023) b) por militar da ativa, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva ou reformado ou contra civil; (Redação dada pela Lei nº 14.688, de 2023) c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil; (Redação dada pela Lei nº 9.299, de 8.8.1996) d) por militar, durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva ou reformado ou contra civil; (Redação dada pela Lei nº 14.688, de 2023) e) por militar da ativa contra o patrimônio sob a administração militar ou contra a ordem administrativa militar; (Redação dada pela Lei nº 14.688, de 2023) f) revogada. (Redação dada pela Lei nº 9.299, de 8.8.1996)
[5] STF, ADI 7.555/DF, Relatora Min. Carmen Lucia. Decisão: O Tribunal, por maioria, a) converteu o exame da medida cautelar em julgamento de mérito; b) julgou procedente o pedido exposto na presente ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade do § 3º do art. 232 do Código Penal Militar, incluído pela Lei n. 14.688/2023, com eficácia ex nunc a contar da data da publicação da ata de julgamento; c) julgou procedente o pedido formulado em arguição de descumprimento de preceito fundamental, para declarar a não recepção dos incs. I a III do art. 236 do Código Penal Militar, com eficácia ex nunc a contar da data da publicação da ata de julgamento; e d) aplicou ao crime de estupro de vulnerável praticado por militar no exercício de suas funções ou em decorrência dela e/ou em lugar sujeito à administração militar, após a publicação da ata deste julgamento, toda a disciplina normativa prevista no Código Penal para o crime de estupro de vulnerável praticado por civis, tratando-se do caput e dos §§ 1º a 5º do 217-A do Código Penal, por expressa determinação do inc. II do art. 9º do Código Penal Militar, no qual consta que, na ausência de previsão legal de crime na legislação militar, aplica-se a legislação penal ordinária em tempos de paz. Tudo nos termos do voto da Relatora, Ministra Cármen Lúcia, vencidos os Ministros Cristiano Zanin, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e André Mendonça, que julgavam improcedente a ação direta, mas acompanhavam a Relatora no ponto relacionado à modulação dos efeitos da decisão. Plenário, Sessão Virtual de 5.9.2025 a 12.9.2025.
[6] ASSIS, Jorge Cesar de. A Lei 14.688/2023 e a pretendida compatibilização (mas nem tanto) do CP militar com o CP comum disponível em: https://jusmilitaris.com.br/sistema/arquivos/doutrinas/A_LEI_14.688,_DE_2023_E_O_CPM1.pdf acesso em 27.08.2025.
[7] AQUINO, Mariana; FOUREAUX, Rodrigo. Assédio sexual nas instituições de segurança pública e Forças Armadas, contendo as 10 medidas contra o assédio sexual, apoio do site Atividade Policial, disponível em https://atividadepolicial.com.br/8-propostas-campanha-nacional-das-10-medidas-contra-o-assedio-sexual/ acesso em 27.08.2025
[8] MOTA, Helena Mercês Claret da; FERREIRA, Rosana de Cassia Faro e Mello. Assédio na caserna: dizer não é insubordinação / Projeto Proteção Jurídica da Mulher Militar. 1ª Procuradoria de Justiça Militar em São Paulo, São Paulo: Movimento, 2024.
[9] AQUINO, Mariana; ASSAD, Camila Barbosa. Conhecendo a Proteção Jurídica à Mulher Militar, 2ª edição, Brasília/DF, Superior Tribunal Militar, 2022.
[10] Assis, Jorge Cesar de. Curso de Direito Disciplinar Militar – da simples transgressão ao processo administrativo, 7ª edição, Curitiba: Juruá, 2024, pp. 468.
[11] Dentre outras, possuem corregedorias específicas, as Polícias Militares de São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Alagoas.
[12] Iniciativa pioneira no Brasil, a Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo foi criada pelo Decreto nº 39.900, em 1º de janeiro de 1995 e reconhecida pela OEA. Desde 1997 está regulamentada pela Lei Complementar 826, de 20 de junho. A Ouvidoria da Polícia é um órgão do governo do Estado que tem como atribuições ouvir, encaminhar e acompanhar denúncias, reclamações e elogios feitos pela população sobre a atuação policial. Ela não investiga as denúncias recebidas, mas as encaminha para a Corregedoria e acompanha a apuração, trabalhando para que ela seja rigorosa e imparcial.
[13] Lei 10.741, de 1º de outubro de 2003, art. 71. É assegurada prioridade na tramitação dos processos e procedimentos e na execução dos atos e diligências judiciais em que figure como parte ou interveniente pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, em qualquer instância.
[14] Lei 10.048, de 08 de novembro de 2000, art. 1º As pessoas com deficiência, as pessoas com transtorno do espectro autista, as pessoas idosas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, as gestantes, as lactantes, as pessoas com criança de colo, os obesos, as pessoas com mobilidade reduzida e os doadores de sangue terão atendimento prioritário, nos termos desta Lei. (Redação dada pela Lei nº 14.626, de 2023)
[15] Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, artigos 18 a 21. A Lei Maria da Penha cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal, e dá outras providências.
[16] Lei nº 12.527/2011, art. 24. A informação em poder dos órgãos e entidades públicas, observado o seu teor e em razão de sua imprescindibilidade à segurança da sociedade ou do Estado, poderá ser classificada como ultrassecreta, secreta ou reservada. § 1º Os prazos máximos de restrição de acesso à informação, conforme a classificação prevista no caput, vigoram a partir da data de sua produção e são os seguintes: I - ultrassecreta: 25 (vinte e cinco) anos; II - secreta: 15 (quinze) anos; e III - reservada: 5 (cinco) anos.
[17] CP, art. 234-B, Os processos em que se apuram crimes definidos neste Título correrão em segredo de justiça. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009) § 1º O sistema de consulta processual tornará de acesso público o nome completo do réu, seu número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) e a tipificação penal do fato a partir da condenação em primeira instância pelos crimes tipificados nos arts. 213, 216-B, 217-A, 218-B, 227, 228, 229 e 230 deste Código, inclusive com os dados da pena ou da medida de segurança imposta, ressalvada a possibilidade de o juiz fundamentadamente determinar a manutenção do sigilo. (Incluído pela Lei nº 15.035, de 2024) § 2º Caso o réu seja absolvido em grau recursal, será restabelecido o sigilo sobre as informações a que se refere o § 1º deste artigo. (Incluído pela Lei nº 15.035, de 2024) § 3º O réu condenado passará a ser monitorado por dispositivo eletrônico. (Incluído pela Lei nº 15.035, de 2024)
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