1. Introdução
O presente estudo tem o desiderato, como o título já adianta, de analisar o que a jurisprudência do Superior Tribunal Militar chama de “minorante inominada”, à luz das disposições constitucionais.
Do ponto de vista acadêmico, a relevância do tema justifica-se a fim de examinar o ordenamento penal e constitucional e determinar a inadequação da decisão judicial que avoca competência atribuída a outro Poder e age como legislador positivo para criar causa de diminuição da pena, rompendo com os limites impostos pelo Estado Democrático de Direito, o que também implica relevância social, haja vista o deficit de segurança jurídica que o ativismo judicial causa, espraiando efeitos em todas as relações sociais, além de, neste caso em específico, ter mesmo o condão de causar impunidade e flagrantes injustiças, como veremos nas linhas a seguir.
No segundo item examinamos a gênese do Direito Penal como forma de controle social que se fundamenta na proteção dos bens jurídicos mais importantes ao convício em sociedade, estabelecendo um marco para este ramo do Direito que rompe com uma equivocada ideia hodierna de que suas disposições devem ser encaradas exclusivamente como garantias individuais em face desta mesma sociedade.
Na sequência estabelecemos premissas doutrinárias em relação a alguns preceitos constitucionais que utilizaremos para examinar as decisões que estabeleceram a indigitada causa de diminuição da pena.
O quarto item é dedicado à exposição de três julgamentos da Corte Superior Castrense os quais, segundo se verifica do repositório disponível na rede mundial de computadores, são os primeiros a veicular a “minorante inominada”.
No quinto e último item antes das considerações finais – onde declinamos nossas conclusões –, analisamos os casos expostos no capítulo anterior à luz das premissas doutrinárias referentes aos preceitos constitucionais estudados, demonstrando que a criação jurisprudencial em análise é atentatória aos mais basilares princípios do nosso Estado Democrático de Direito.
O presente ensaio foi elaborado a partir de pesquisa exploratória por meio da análise de casos em que foi empregada a “minorante inominada” e pesquisa descritiva através de levantamento bibliográfico.
2. Direito penal, a sociedade e a lei
Traçando de uma forma geral – e até mesmo um tanto superficial, pode-se dizer – o Direito Penal tem por fim tutelar o convívio harmonioso em sociedade, o que faz através da proteção de bens jurídicos que este todo social considera ser os mais importantes para a vida em comum e, quando injustamente vulnerados, protege a harmonia por meio da imposição de sanções a fim de recuperar a justa expectativa de respeito à norma posta.
Visto de outra forma, portanto, pode-se dizer que o Direito Penal representa aquilo que de mais importante uma determinada sociedade enxerga em seu modo de viver e existir, seus valores mais preciosos (BITENCOURT, 2023, p. 20).
A fim de atingir esses elevados fins, exige-se uma certa rigidez em suas disposições, somente se permitindo a criação de tipos penais e penas através de lei em sentido estrito, devidamente positivada (lex scripta), precisa (lex stricta), prévia à conduta (lex praevia) e que possibilite juízo de clareza sobre o fato (lex certa), tal qual determinado na Lei Fundamental do Estado Democrático de Direito brasileiro (CFRB, art. 5º, XXXIX e XL).
Sobre o princípio da reserva legal ou estrita legalidade:
Feuerbach, no início do século XIX, consagrou o princípio da legalidade através da fórmula latina nullum crimen, nulla poena sine lege. O princípio da legalidade é um imperativo que não admite desvios nem exceções e representa uma conquista da consciência jurídica que obedece a exigências de justiça, que somente os regimes totalitários o têm negado. Em termos bem esquemáticos, pode-se dizer que, pelo princípio da legalidade, a elaboração de normas incriminadoras é função exclusiva da lei, isto é, nenhum fato pode ser considerado crime e nenhuma pena criminal pode ser aplicada sem que antes da ocorrência desse fato exista uma lei definindo-o como crime e cominando-lhe a sanção correspondente. [...]
Além disso, para aquelas sociedades que, a exemplo da brasileira, estão organizadas por meio de um sistema político democrático, o princípio de legalidade e de reserva legal representam a garantia política de que nenhuma pessoa poderá ser submetida ao poder punitivo estatal, se não com base em leis formais que sejam fruto do consenso democrático (BITENCOURT, 2023, p. 26)
Tal preocupação com a rigidez do sistema punitivo, como pode se observar do excerto destacado, é justificada pelo fato de que este ramo do Direito é (ou deveria ser...) apto a proteger os bens jurídicos mais sagrados à sociedade, o que angaria através da imposição ao delinquente das mais severas sanções previstas no ordenamento jurídico nacional, inclusive com grave afetação de direitos fundamentais do infrator, como a privação de seu status libertatis.
Porém, esta é apenas uma parcela de seu desiderato. Noutra frente, tal princípio assume significativa importância ao servir de prevenção geral em face da sociedade, conclamando-a a não delinquir, valorizando a ética em seu seio, como aliás, teria planejado seu autor. A respeito da gênese de tal princípio, pois, colhe-se:
Observa ROXIN que a primeira formulação do princípio no direito penal se deveria a FEUERBACH, por ocasião da elaboração do Código Penal da Bavária, nos idos de 1813. E, mais. Que o propósito inicial seria o de satisfazer a sua teoria psicológica da pena, visto que a intimidação (prevenção geral negativa) ou a ameaça da pena dependeria do conhecimento prévio da cominação penal ao crime (PACELLI; CALLEGARI, 2015, p. 98)
Sob outro prisma, a estrita legalidade se presta a assegurar alguns dos preceitos mais importantes de nosso ordenamento jurídico visto sob uma perspectiva mais social: a segurança jurídica, a igualdade e o consenso democrático, valores que direta ou indiretamente se prestam a evitar a odiosa arbitrariedade. A este respeito, Luiz Régis Prado, citando Navarro Frías:
Atualmente, seu fundamento radica na proteção dos valores segurança jurídica, liberdade e igualdade, por meio da vinculação dos Poderes Públicos à lei precisa e concreta, ‘o que garante que seja o legislador quem adote as decisões básicas na matéria, exclui a arbitrariedade no exercício do poder punitivo do Estado e assegura o tratamento igualitário na lei e na aplicação da lei’ (NAVARRO FRÍAS, I. Mandato de determinação y tipicidad penal, p. 61). (PRADO, 2014, p. 106).
A segurança jurídica, conquanto não prevista expressamente na Constituição Federal, é amplamente reconhecida pela doutrina de escol como fundamento geral do ordenamento decorrente do Estado de Direito (MENDES; BRANCO, 2015, p. 394), posto que visa assegurar a previsibilidade das atuações estatais e estabilidade das relações jurídico-sociais.
A incerteza inerente à falta de segurança jurídica é nefasta à nação, pois gera um clima de desconfiança que dificulta sobremaneira as relações humanas inerentes à vida em sociedade. No Direito Penal seus efeitos são igualmente nocivos, eis que tem o condão de tornar um fato típico, ilícito e culpável em um indiferente penal, ao passo que o fato atípico, por uma exegese que extrapole a lei, pode vir a se tornar criminoso, tudo a depender do julgador ou, pior ainda, de quem está sendo julgado, pois critérios ideológicos ou preconceituosos poderiam ser usados para diferenciar quem seria ou não punido por certas condutas.
Para a Análise Comportamental do Direito, como explica Aguiar (2020, p.56), a consequência condicionada socialmente generalizada do Direito é a sanção, e os requisitos para que esta funcione é que seja aversiva e consistentemente aplicada, isto é, ser aplicada sempre que ocorrer a conduta proscrita. Se para alguns a sanção for aplicada e para outros não, em vez de serem selecionados os comportamentos socialmente indesejáveis, o que se vai fazer é dar privilégios para alguns e a lei ou algo pior para outros não beneficiados por essa usurpação incidental do poder legislativo.
Neste trilhar, a igualdade de todos perante a lei deixa de existir, pois haverá o juiz que considere a lei muito rígida e a relativizará, ao passo que existirá aquele que a entenda como muito branda e a recrudescerá, tornando a prestação da justiça verdadeira loteria.
A partir daí, o lícito e ilícito viram duvidosos e a justa expectativa da sociedade no Estado de Direito que ajudou a construir entregando parcela de sua liberdade, em que governa o respeito à lei, começa a ruir e a imperar a arbitrariedade do Estado-Juiz.
Sob outro prisma, impõe-se relembrar que a eleição de bens jurídicos a proteger ou não sob a batuta do Direito Penal é uma “via de duas mãos”, pois se de um lado entrega a maior proteção que o ordenamento pode conceder a determinados bens jurídicos eleitos mais importantes à sociedade, de outro impõe severa limitação aos direitos dessa comunidade, posto que reconhece que uma determinada conduta passará a ser passível até mesmo de restrição da liberdade do indivíduo que a pratica, de modo que deve representar, tanto quanto possível, um consenso democrático da população a este respeito, motivo pelo qual no ordenamento jurídico brasileiro a tarefa é posta exclusivamente nas mãos dos legisladores federais que são os legítimos representantes do povo para tanto.
Ao passo que no direito privado pode prevalecer a autonomia da vontade dos indivíduos para estabelecer suas relações e negócios jurídicos, no Direito Penal é absolutamente imprescindível o império da lei para resguardar o status libertatis do cidadão, bem como em favor da segurança jurídica e igualdade tão caros à sociedade, e ainda, a fim de evitar a odiosa arbitrariedade e, destacamos, fazer valer a opção legítima do todo social na eleição dos bens jurídicos a ele mais caros tomada através de consenso democrático por seus legítimos representantes.
O Direito Penal logicamente deve caminhar através da trilha legalmente balizada pelos mais significativos anseios da sociedade que lhe legitima, sob pena de tornar-se frívola formalidade, ou, o que é pior, instrumento casuístico de perseguição.
3. A Constituição Federal
A “constituição”, em linhas gerais e nos reportando à sua origem, podia ser entendida como a forma de existir e se organizar de uma determinada sociedade ou Estado, o modo como ele se “constitui”, de forma que, por lógica, sempre que este existe, ela também existirá (FERNANDES, 2017, p. 30).
Tal entendimento representa o que a doutrina costuma chamar de conceito material de constituição, que não pressupunha o registro escrito desse “modo de ser”, algo que ganhou contornos com o movimento chamado de constitucionalismo o qual, em apertada síntese, propunha a formalização das constituições com o fim de organização e legitimação do poder político e consecução de direitos e garantias fundamentais (FERNANDES, 2017, p. 30).
Foi neste contexto que surgiu a Constituição Americana de 1787, cujas disposições foram colocadas à prova na Suprema Corte Americana poucos anos depois, em 1803, no célebre caso Marbury vs Madison em que aquele Tribunal, liderado por John Marshall, lançou as bases para a supremacia da constituição e o controle de constitucionalidade pelo Judiciário (MENDES; BRANCOS, 2015, p. 52), dando azo à chamada “constituição formal” (FERNANDES, 2017, p. 37-38).
Nesta senda, tendo em conta a supremacia indigitada, que antes decorria logicamente da importância do conteúdo veiculado e que, neste segundo momento, dependeu unicamente da formalização da norma no texto constitucional, e também considerando ser consectário dessa característica um mais dificultoso processo de alteração legislativo, passou-se a inserir entre os dispositivos desta nova constituição, normas que não mais podem ser consideradas como materialmente constitucionais (SARMENTO; SOUZA NETO, 2014, p. 60).
Seja como for, parece-nos bastante claro que as normas aqui tratadas, as de cunho constitucional-penal e inclusive as demais que trataremos linhas abaixo, inserem-se entre aquelas compreendidas como materialmente constitucionais, dada a importância de seu conteúdo, umbilicalmente ligadas com a estrutura da sociedade e aos direitos fundamentais.
Cumpre, pois, examinar as normas constitucionais que servirão para a análise da “minorante inominada” criada pelo Superior Tribunal Militar, não de forma exauriente, evidentemente: seja pelos complexos nuances dos preceitos, seja porque não é o objeto do presente estudo, que se limitará ao quanto necessário para o exame que estamos propondo.
3.1 Independência e harmonia dos poderes
Trata-se de princípio fundamental da República Federativa do Brasil registrado no art. 2º da CRFB/88 que, em suma, determina uma divisão do poder político, com suas atribuições típicas sendo de responsabilidade de órgãos diferentes, com fins de organização e limitação desse poder.
Conforme Bernardo Gonçalves (2017, p. 303), pode-se identificar o embrião do preceito nos estudos de Aristóteles, que já vislumbrava a necessidade de fragmentar as funções administrativas da pólis, notadamente as funções do governo e de solução de litígios.
Segundo José Afonso da Silva (2014, p.111), modernamente, essa concepção foi estudada e desenvolvida principalmente por Locke e Rousseau, os quais lançaram as bases para o célebre sistema de freios e contrapesos difundido pela pena de Montesquieu, tendo sido logo adotado pela Constituição Americana de 1787 e inclusive pela Declaração dos Direitos do Homem e Cidadão adotada no bojo da Revolução Francesa em 1789, que em seu artigo 16 declara: “Qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição[1]”.
Os termos adotados por este documento internacional de direitos são um tanto rigorosos, mas se justificam pelo elo umbilical que o preceito guarda com a noção de uma sociedade guiada pelos princípios fundamentais do movimento, quais sejam a constituição de uma sociedade orientada pela liberdade, igualdade e fraternidade, muito apartada, pois, de um governo tirano.
Bem neste ponto – evitar o autoritarismo e a tirania – que se funda e estabelece esse princípio, que tem por objetivo impedir a concentração do poder e livrar-se do odioso despotismo.
Não por outro motivo, tendo em conta a absoluta imprescindibilidade do preceito para o Estado Democrático de Direito e considerando a estreita relação do preceito com os objetivos da República Federativa do Brasil de construir uma sociedade livre, justa e solidária (CFRB/88, art. 3º, I), houve por bem o constituinte originário em estabelecer o princípio como cláusula pétrea, inserindo-o no art. 60, § 4º, III da Constituição Cidadã.
Pela sistemática por nós adotada, cada “Poder” da República é dotado de funções típicas e atípicas. Assim, é função típica do Poder Executivo o exercício da Administração do Estado além da chefia de Estado e Governo, do Poder Legislativo é legislar e fiscalizar os atos do Executivo, ao passo que do Poder Judiciário é a atividade jurisdicional (LENZA, 2017, p. 535).
Noutra frente, cada Poder exerce também as duas funções atípicas atribuídas aos demais Poderes, mas frise-se, apenas quando expressa e claramente registrado na Constituição Federal, sob pena de usurpação e evidente inconstitucionalidade.
Assim, a título de exemplo, o Judiciário pratica atos de natureza executiva ao “organizar suas secretarias e serviços auxiliares e os dos juízos que lhes forem vinculados” (CFRB, art; 96, I, “b”), ao passo que exerce competência legislativa ao editar seu regimento interno (CFRB, art. 96, I, “a”), Tal atribuição atípica, como registrado, deve seguir as estritas balizas determinadas pela Lex Fundamentalis, ou seja, evidentemente não pode o Judiciário legislar sobre quaisquer matérias que lhe aprouver.
3.2 Democracia
Etimologicamente, democracia significa “governo do povo” (FERNANDES, 2017, p, 298), expressão que traz ínsita em si seu traço mais fundamental e característico, a soberania popular (BARROSO, 2015, p. 113).
Hodiernamente identificam-se a democracia direta, a democracia indireta e a democracia semidireta ou participativa, sendo a última, verificada aqui no Brasil, um sistema híbrido, em que há uma democracia representativa (indireta) com mecanismos que possibilitem a participação direta do povo (LENZA, 2017, p. 1309).
Seja como for, a doutrina atual costuma acentuar como traços marcantes da democracia contemporânea, ao lado da escolha dos atores políticos, também a “superioridade da Constituição Federal; a existência de direitos fundamentais; da legalidade das ações estatais; um sistema de garantias jurídicas e processuais” (FERNANDES, 2017, p. 299).
Com efeito, descuidar-se dos aspectos pontuados poderia conduzir a um estado de exceção e, por corolário, à bancarrota da democracia. Nesta senda, e considerando o desiderato do presente estudo, cumpre ressaltar os pontos da superioridade da Constituição Federal e da legalidade das ações estatais. Sem a primeira, cada eleição de parlamentares poderia representar a completa reforma do Estado à mercê de maiorias eventuais e ocasionalmente mesmo à custa da dignidade da pessoa humana, ao passo que sem a segunda, em apertada síntese, a eleição do executivo transmudar-se-ia na escolha de um verdadeiro soberano.
3.3 Segurança Jurídica
A Constituição Federal de 1988 determinou já em seu art. 1º, que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito, o que compreende além do “governo do povo”, como vimos linhas acima, também peremptória e claramente a submissão de todos, inclusive dos governantes, ao império da lei, como expressão do Estado de Direito.
Dentro deste, como subprincípio, extrai-se a Segurança Jurídica, (MENDES; BRANCO, 2015, p. 395), a qual “representa um valor que todo Direito deve cumprir pelo fato de sua mera existência, pois um mínimo de segurança é condição para que haja justiça” (NOHARA, 2024, p. 85), embora não encontra previsão expressa em nossa Constituição Federal.
A respeito da estreita relação entre Estado de Direito e Segurança Jurídica (COELHO, 2015, p. 94-96):
Em brilhante exposição sobre o tema do Estado de Direito, Tom Bingham, em sua obra “The rule of Law” reconhece a dificuldade em construir um conceito delimitado para a ideia em questão, porém, sem deixar de afirmar que:
“O núcleo do princípio existente é – minha sugestão – que todas as pessoas e autoridades dentro do estado, sejam elas públicas ou privadas, devam estar vinculadas e devam se beneficiar de leis feitas publicamente, entrando em vigor (geralmente) no futuro e publicamente administradas nos tribunais.”
Com essa afirmação, destaca aquilo que compreende como os principais pontos do “rule of Law”, quais sejam, a existência de uma legislação publicamente elaborada, que vincula a todos, sem distinção. Tal legislação deve respeitar a regra da irretroatividade, não vinculando, em regra, fatos que ocorreram anteriormente à sua vigência, bem como os julgamentos e a aplicação dessas leis pelos tribunais devem ser públicos.
Vê-se que todos os pontos mencionados por Bingham têm ligação com o princípio da segurança jurídica, uma vez que permitem maior estabilidade e previsibilidade das relações jurídicas no seio social.
[...]
Dito isso, vê-se que Estado democrático de direito e a segurança jurídica são faces de uma mesma moeda. Não há Estado de Direito sem legalidade e estabilidade na aplicação de suas normas, ao passo que não há segurança jurídica sem o respaldo de um Estado de direito que a garanta e a promova.
Nesse sentido, podemos relacionar dois atributos que conceituam a segurança jurídica, quais sejam a estabilidade do Direito e sua previsibilidade, sendo esta didaticamente divisível, exigindo-se então um Direito sistemático, homogêneo e acessível (FERNANDES, 2017, p. 1253).
Sistemático é o ordenamento jurídico orientado pela unidade, coerência e completude de suas disposições. Por sua vez, a homogeneidade diz respeito à igualdade da aplicação do Direito. Em arremate, a acessibilidade mantém íntima relação com a publicidade do ordenamento.
Também com fins instrutivos, podemos considerar a segurança jurídica sob três prismas distintos, do ponto de vista cidadão, da sociedade e do órgão julgador (COÊLHO, 2015, p. 86)
Tocante ao cidadão, protege-se sua justa expectativa de que o comportamento conforme as normas jurídicas postas não será alvo de sanções[2]. Da perspectiva da sociedade, tutela-se o direito à paz social evitando-se a maximização de litígios pelo efeito pedagógico da jurisdição ao fazer valer a lei. Por fim, em relação ao órgão julgador, relaciona-se aos escopos da jurisdição, mormente o educacional ao ensinar aos jurisdicionados seus direitos e deveres e o político, fortalecendo o Estado Democrático de Direito.
3.4 Igualdade
Talvez a lição atribuída a Aristóteles em sua célebre obra Política (ALEXY, 2015, p. 397)[3], uma das mais vetustas preleções a respeito do princípio da igualdade, seja a que mais facilmente traduz a inteireza de suas dimensões: tratar os iguais igualmente e os desiguais desigualmente, na medida de suas desigualdades.
Tal princípio, somado evidentemente a outros preceitos fundamentais, foi um dos motes das maiores revoluções da história da humanidade, o que reflete em sua concepção até os dias atuais.
Com efeito, inicialmente a igualdade era vista meramente do ponto de vista formal, ou seja, buscava-se o tratamento rigorosamente igualitário para todos com o intuito de abolir privilégios instituídos em favor dos até então detentores do poder.
Com o passar do tempo a compreensão a respeito evoluiu, passando a abranger também o sentido material do princípio, com vistas a buscar diminuir as desigualdades sociais experimentadas e possibilitar a todos igualdades de direitos e condições.
Noutra frente, é possível examinar a igualdade sob a vista do agente responsável pela sua promoção. Teremos então a “igualdade na lei” que se refere ao papel do legislador de editar as leis à luz do princípio estudado, e ainda a “igualdade perante a lei” que se dirige ao aplicar da norma.
Em nossa Magna Carta o princípio da igualdade está previsto no caput do art. 5º, nos seguintes termos: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]”. Conquanto se utilize da expressão “iguais perante a lei”, não se discute que também vigora em nosso ordenamento a identificada “igualdade na lei”, mormente ao se considerar que nosso Estado tem como fundamento a dignidade da pessoa humana (CFRB, art. 1º, caput e III).
3.5 Legalidade
Tal princípio decorre logicamente do Estado de Direito, tendo por fim limitar o Poder do Estado a fim de evitar o abuso representado pela arbitrariedade (LENZA, 2017, p. 1131).
Pertinente, pois, concebê-lo sob duplo prisma: por uma perspectiva como garantia aos indivíduos e sociedade “contra os possíveis desmandos do Executivo e do próprio Judiciário” (FERNANDES, 2017, p 562), e por outra, “Se apresenta como base do Estado de Direito, visando conformar os comportamentos às normas jurídicas das quais as leis são máxima expressão” (FERNANDES, 2017, P. 562):
Toda a sua atividade fica sujeita à lei, entendida como expressão da vontade geral, que só se materializa num regime de divisão de poderes em que ela seja o ato formalmente criado pelos órgãos de representação popular, de acordo com o processo legislativo estabelecido na Constituição. (DA SILVA, 2014, p. 423).
Não podemos confundi-lo, pois, com a reserva legal, em que nossa Magna Carta sujeita determinadas matérias ao trato exclusivo da lei em sentido estrito. Esta se divide em reserva legal absoluta, quando a integralidade da regulamentação deve ser por lei, e reserva legal relativa, em que há comando para que a lei estabeleça certas balizas para atuação complementar por ato infralegal (FERNANDES, 2017, p. 563).
O texto constitucional consagra expressamente o princípio da legalidade no art. 5º, II, ao dispor que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, disposição mais comumente ligada ao particular e suas relações, normalmente regidas pela autonomia da vontade.
Na seara penal, o princípio da legalidade é concebido na espécie reserva legal estrita, ou seja, “há de resultar de lei aprovada pelo Congresso Nacional” (MENDES; BRANCO, 2014, p. 496), conforme se depreende da previsão do art. 5º, XXXIX da Constituição Federal que estabelece que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, em combinação com o art. 62, §1º, I, ”b” da CFRB que proíbe a edição de Medida Provisória sobre matéria penal e, evidentemente, a inovação criativa via jurisprudencial.
Consoante se depura do dispositivo em análise, houve expressa previsão de duas grandes máximas do direito penal: nullum crimen sine lege (não há crime sem lei anterior) e nulla poena sine lege (não há pena sem lei anterior), significando que, por mais reprovável que seja a conduta tomada pelo indivíduo, ela não poderá ser considerada criminosa e não será possível aplicar-lhe sanção penal caso inexista lei anterior prevendo a conduta como criminosa e dispondo sobre a pena (MENDES; BRANCO, 2014, p. 495).
4. A gênese da “minorante inominada” na jurisprudência do Superior Tribunal Militar
Estabelecidas, pois, as premissas sobre as quais se alicerçará o presente ensaio, cumpre debruçar-se sobre a “minorante inominada” criada pelo Superior Tribunal Militar, cuja inovação não encontra par na jurisprudência dos demais Tribunais Superiores.
Em pesquisas ao repositório de jurisprudência da Corte Superior Castrense na rede mundial de computadores, pudemos verificar que a primeira vez que a expressão “minorante inominada” apareceu nos julgados do Tribunal foi na Apelação nº 0000137-38.2009.7.11.0011, julgado em 09/02/2011. O julgado restou assim ementado:
Apelação. Deserção. Estado de necessidade. Inexistência. Materialidade, autoria e culpabilidade comprovadas. Não se vislumbrou no problema alegado os requisitos legais exigidos para caracterizar o estado de necessidade, previsto no art. 39 do CPM. Reputa-se por incabível a aplicação de minorante inominada, sem previsão no CPM. Apelo parcialmente provido. Decisão unânime. (Superior Tribunal Militar. APELAÇÃO nº 0000137-38.2009.7.11.0011. Relator(a): Ministro(a) RAYMUNDO NONATO DE CERQUEIRA FILHO. Data de Julgamento: 09/02/2011, Data de Publicação: 06/04/2011)
O caso, que para fins de futura remissão usaremos a expressão “Caso 1”, tratava-se de deserção de soldado do exército que foi condenado à pena privativa de liberdade de 1 (um) mês e 16 (dezesseis) dias, muito menor que a pena de 3 (três) meses resultante da aplicação da causa de diminuição de pena do art. 189, I do Código Penal Militar em seu patamar máximo.
Na oportunidade, a defesa apelou alegando ausência de dolo de desertar e inexistência de provas suficientes para a condenação, tendo sido ambas as teses rejeitadas pela Corte.
De ofício, o Tribunal se debruçou sobre a dosimetria da pena e registrou o equívoco cometido pelo Conselho Permanente de Justiça para o Exército ao reconhecer uma causa de diminuição não prevista na lei.
Nada obstante, considerando que apenas a defesa recorreu (o que atrai a vedação da chamada reformatio in pejus), a Corte deixou de decotar essa parte da decisão e foi além ao corrigir o erro de cálculo no cômputo da fração de diminuição considerada a fim de diminuir ainda mais 10 (dez) dias de pena, que passou a ser de 1 (um) mês e 6 (seis) dias.
Apenas a título de registro complementar, a defesa opôs embargos de declaração que não foram conhecidos em julgamento realizado em 09/11/2011 e novos embargos de declaração, cujo julgamento em 20/03/2012 (um ano após o julgamento da apelação) resultou no reconhecimento da extinção da punibilidade pela prescrição.
O segundo caso de que se tem notícia nos julgados do Superior Tribunal Militar, que chamaremos de “Caso 2”, ganhou a atenção do plenário em 29/05/2012.
Na ocasião, três militares abandonaram o posto munido de pistolas calibre 9 mm e, armados, fardados e equipados com rádio operacional, foram embriagar-se nas cercanias da Organização Militar. Em dado momento invadiram uma festa infantil na vizinhança em busca de mulheres para relacionarem-se, tendo sido convidados a se retirar pelos presentes. Descontentes, os militares sacaram suas pistolas e passaram a ameaçar os civis, apontando as armas em direção ao peito e cabeça dos cidadãos que os tentavam convencer a partir, além de terem praticado violências consistentes em tapas nos rostos e até mesmo chute no peito, tudo isso na frente de crianças com idade entre 8 (oito) e 12 (doze) anos.
Em primeiro grau os réus foram condenados à pena de 4 (quatro) anos, 1 (um) mês e 15 (quinze) dias de reclusão pela prática dos crimes de Organização de grupo para a prática de violência (art. 150 do CPM) e Abandono de Posto (art. 195 do CPM).
A defesa recorreu, tendo a Corte reconhecido a prescrição do crime de Abandono de posto e, em relação ao delito de Organização de grupo para a prática de violência, sob a justificativa de que o delito se conformava à ordem social subjacente ao período pré-constitucional e tendo em conta o princípio da proporcionalidade atrelado a questões de política criminal “de vanguarda”, o Tribunal houve por bem diminuir a pena abaixo do mínimo legal, fixando-a em 2 (dois) anos de reclusão, para, ato contínuo, conceder o benefício da suspensão condicional da pena a todos os condenados. A decisão restou assim ementada:
Apelação. Delitos tipificados no art. 150 e no art. 195, ambos do CPM. Prescrição do delito de abandono de posto. Parcial provimento do recurso defensivo. Aplicação de cânones constitucionais com vistas à redução de pena aquém do mínimo legal. Três Militares abandonam o lugar de serviço e, nas imediações da Organização Militar, adentram festa infantil, uniformizados e armados, procurando por mulheres. Civis abeiram-se a um dos soldados, que se apartara dos demais, para alertar de sua inconveniente presença; entretanto, os civis são surpreendidos com agressões dos outros dois soldados que repentinamente se aproximaram. Agrega-se aos atos violentos perpetrados a utilização das armas que, segundo testemunhas, fora utilizada com veemência para intimidar os civis. [...] Teses defensivas restaram rechaçadas. Sobressai do feito demonstração da necessidade de um especial equacionamento, na sistemática penal militar, dos pressupostos atinentes ao princípio constitucional da proporcionalidade. O preceito secundário do art. 150 do CPM está preso a passado específico e, sob esse contexto, algumas circunstâncias sobressaem como destoantes à dosimetria de pena imposta aos Acusados, implicando adoção de critério especial para aplicação ao caso específico. Exsurge, pois, o princípio da proporcionalidade ajustado ao da individualização da pena como consectários de critérios de política criminal. Na espécie, ressalta-se o uso do princípio da proporcionalidade para, in casu, diminuir significativamente a pena mínima imposta aos Réus, a fim de aplicá-la em correspondência aos fatos concretos dentro do contexto social da atualidade. [...] Provimento parcial do Recurso Defensivo para reduzir a pena imposta pelo Juízo "a quo" aquém do mínimo legal, atendendo preceitos de ordem constitucional, ajustados à contextualização dos fatos, aos resultados do delito e aos aspectos históricos que repercutem no tipo penal, com vistas à efetivação de uma política criminal de vanguarda. Decisão majoritária. Aplicação do art. 80, § 1º, inciso II, do RISTM. (Superior Tribunal Militar. APELAÇÃO nº 0000011-18.2009.7.10.0010. Relator(a): Ministro(a) FERNANDO SÉRGIO GALVÃO. Data de Julgamento: 29/05/2012, Data de Publicação: 25/06/2013). Grifamos.
Debruçando-se sobre o inteiro teor, percebe-se que a causa de diminuição da pena invocada pela Corte foi reconhecida de ofício, em total surpresa às partes que sobre ela não se manifestaram, supostamente em atenção ao princípio constitucional da proporcionalidade.
Sobre isso, registrou-se que “A reclusão dos réus não pode resultar em vingança privada, mas sim, nos contornos do Estado Democrático de Direito, pena pública no exato limite do que se pretende repreender.”, algo que foi complementado por ilações de que o “o juiz pode aplicar pena abaixo do mínimo legal, ainda quando não concorram causas de diminuição ou circunstâncias atenuantes, sob o enfoque dos princípios da legalidade e da proporcionalidade”.
A este respeito, defendeu-se que o princípio da legalidade se limita apenas e tão somente a proteger o cidadão singularmente considerado contra excessos do Estado, de modo que a infringência da lei pelo Estado-Juiz em benefício do cidadão delinquente não poderia macular a legalidade.
Gizou-se, ainda, o seguinte raciocínio que fundamentaria poderes extralegais aos magistrados: “se o juiz pode mais — absolver, dada a irrelevância —pode menos, evidentemente: aplicar pena aquém do mínimo legal”.
Para rebater o argumento de que haveria usurpação dos poderes do Congresso nacional, referiu-se que “Ao se aplicar pena abaixo do mínimo legal, o juiz apenas legislaria se a fixasse sem referência aos parâmetros do Código Penal Militar, limitando-se a padrões éticos e morais empíricos”, complementando o raciocínio no sentido de que “A aplicação da pena abaixo do mínimo legal segue as balizas da analogia in bonam partem. O uso da analogia não caracteriza função legislativa pelo juiz.”.
Avançando, construiu-se uma conclusão – sem base em qualquer estudo ou análise mais detida, diga-se – de que o contexto em que editado o Código Penal Militar teria inspirado o legislador a ser mais rigoroso com os crimes que atentam contra a autoridade e disciplina militar, haja vista os levantes pelo mundo atiçados pela polaridade então inflamada entre os blocos capitalistas e comunistas. Superado aquele período de tensão, a pena abstratamente cominada passaria a ser desproporcional à nova realidade político-social:
Diante daquele panorama de instabilidade político-social ressoava com uma especial significação a prevenção geral emanada de diversos preceitos penais estabelecidos no CPM, particularmente àqueles atinentes à manutenção da autoridade e da disciplina militar.[...]
Portanto, tem-se que o limite mínimo da pena do art. 150 do CPM está preso a passado específico e sob esse contexto, e diante da escassez de jurisprudência acerca da capitulação penal em apreço, algumas circunstâncias sobressaem como destoantes àquela dosimetria, implicando em adoção de critério que redunde na melhor efetivação de justiça. Exsurge, pois, o princípio da proporcionalidade ajustado a critérios de política criminal e da individualização da pena.
Avançando, a decisão também buscou fundamento em julgado anterior do Superior Tribunal Militar, a Apelação n° 58-62.2010.7.03.0103/RS. Na hipótese, a Corte absolveu uma mulher que, submetida a poderoso fator psicológico consistente em diagnóstico de câncer de mama e dominada por fortes dores, sucumbiu ao grande estresse e desacatou militar do quadro de saúde durante sessão de quimioterapia. A decisão absolutória baseou-se na ausência de dolo de desacatar e ainda, considerou o contexto dos fatos e a “patologia de que é acometida a Apelante, como elemento da culpabilidade a ensejar causa supralegal exculpante por inexigibilidade de conduta diversa.”.
Voltando ao “caso 2”, entendeu-se que pelo fato de a Corte ter ido além no precedente, ou seja, absolvição, seria lícito na hipótese fazer o menos, ou seja, diminuir a pena.
Após algumas digressões, conclui:
Diante do exposto, vê-se que a missão do magistrado não o autoriza a legislar, mas, sendo inegável a total impertinência da punição, prevista acima do razoável, dele se espera a coragem de impor a justiça no seu julgamento. [...]
Repercute, pois, no feito, para implementação de uma sanção, em certa medida, mais justa, a necessidade de aquilatação da pena a ser imposta aos réus, concernente ao tipo penal do art. 150 do CPM, realizando uma espécie de interpretação conforme a Constituição. [...]
Neste prisma, um outro princípio, o da proporcionalidade, emerge com missão integradora.
Voltando ao caso concreto, reuniram-se todos os argumentos antes delineados acrescidos de uma hipotética (pois não demonstrada minimamente) justificante putativa, para entender que a pena dos réus deveria ser diminuída pela metade:
Na espécie, se ressalta o uso do princípio da proporcionalidade para, in casu, abrandar significativamente a pena mínima estatuída na legislação penal castrense, em face de realizar sua contemporizacão e melhor adequação aos fatos concretos, dentro do contexto social contemporâneo, possibilitando efetivar o princípio da individualização da pena de forma mais equilibrada, propiciando uma flexibilização ao juspuniendi estatal, tendo em conta o preceito secundário estatuído no art. 150 do CPM.
Portanto, como corolário desta fundamentação, reconheço que a pena mínima imposta pelo legislador, apenas para este caso concreto, em 4 anos de reclusão, está exacerbada e, nessa medida, tida por injusta. Portanto, acerca dela reclama-se certa temperança. Não corresponde a uma reprimenda justa para as condutas dos réus, conforme apurado neste feito. Por conseguinte, em consonância com a proporcionalidade, conforme abordado, in casu, encontrará acolhimento desde que aplicada uma considerável redução. É o que pretendo fazer no presente voto para aplicar a diminuição de pena na fração de 1/2.
Outro fator é extraído dos autos, circunstanciando concretamente outro vetor para influenciar na justificativa de redução da pena, conforme abordado. É ele:
- os atos violentos perpetrados pelos militares surgiram a partir do repentino ajuntamento de civis próximo a um dos militares, implicando na criação imaginária de uma ficção de que estaria esse último na iminência de ser agredido.
[...] em face da aplicação do princípio da proporcionalidade e por razões de política criminal, conforme exaustivamente abordado e, também, em razão do contexto dos fatos, que demonstraram ausência de dano a bens, não constatação de lesões significativas nas vítimas, e pela inocorrência de disparo de arma de fogo, estabeleço, pela metade (1/2), a redução da pena de 4 anos de reclusão imposta pela 1a Instância. Dessa forma, por ausência de outras causas que repercutiriam na pena, resulta a sanção final em 2 anos de reclusão, por infringência ao art. 150 do CPM.
O terceiro e último caso que abordaremos (“caso 3”) foi responsável por firmar a jurisprudência do Superior Tribunal Militar e consagrar a expressão “minorante inominada”.
Na hipótese, dois marinheiros que se encontravam de serviço, um de plantão de alojamento e o outro de rancheiro, uniram-se para comprar uma garrafa de cachaça e outra de refrigerante, fazendo ingressar clandestinamente esse material na Organização Militar. Na madrugada, após embriagarem-se, ambos iniciaram uma série de arrombamentos dos armários dos marinheiros recrutas a fim de praticar furtos. Registrou-se a subtração de diversos e variados itens de onze marinheiros recrutas, entre eles dinheiro, celular, frascos de perfume, fones de ouvido, fardamento, chips de celular e cordão folheado a ouro.
Houve o equivocado reconhecimento da causa de diminuição de pena do art. 240, §1º do Código Penal Militar, aplicada à razão de dois terços, o que fez a condenação pelo Furto Qualificado pelo Arrombamento, cuja pena mínima é de três anos, cair para um ano de reclusão, ensejando o competente recurso de apelação pelo Ministério Público Militar.
Em grau revisional, a Corte Superior Castrense entendeu equivocada a incidência do chamado furto privilegiado, seja porque o valor da res furtiva ultrapassou em muito o patamar de um décimo do salário-mínimo, ou porque não se verificou a devolução voluntária dos bens.
Nada obstante, entendeu-se que a aplicação da pena prevista na lei no patamar de três anos de reclusão “fere veementemente a proporcionalidade, bem como a finalidade da pena, motivo pelo qual entende-se como sendo necessária e adequada a adoção de uma ‘minorante inominada’, excepcionalmente no caso em voga […]” (Superior Tribunal Militar. APELAÇÃO nº 0000015-78.2009.7.06.0006. Relator(a): Ministro(a) ALVARO LUIZ PINTO. Data de Julgamento: 16/04/2015, Data de Publicação: 02/07/2015).
A respeito da aduzida excepcionalidade do caso, todavia, nada foi registrado. Além das escassas linhas já destacadas acima, a decisão limitou-se aos seguintes dizeres na dosimetria da pena:
Na terceira fase, aplica-se o Princípio da Proporcionalidade como minorante inominada, no patamar de 2/3 (dois terços), diminuindo o quantun da pena de 3 (três) anos de reclusão para 1 (um) ano de reclusão, à míngua de novas circunstâncias agravantes ou atenuantes e de causas de aumento ou de diminuição de pena.
Cumpre registrar a ementa do caso:
APELAÇÃO. FURTO. PRELIMINAR DE NULIDADE PELA REALIZAÇÃO DO INTERROGATÓRIO NO INÍCIO DO PROCEDIMENTO. REJEIÇÃO. COMPROVADA A AUTORIA E A MATERIALIDADE DO DELITO. ATENUANTES DO ART. 240, §§ 1º E 2º, DO CPM. ATENUANTE DA CONFISSÃO (ART. 72, INCISO III, ALÍNEA "D"). NÃO CABIMENTO. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. APELO DA DEFESA DESPROVIDO. PARCIAL PROVIMENTO AO DO MPM. […] No presente caso concreto, analisando-se à luz do Princípio da Proporcionalidade, que serve de norteador ao juiz no momento da aplicação da pena, a condenação imposta aos Acusados mostra-se acertada. Todavia, reformar a Sentença para imputá-los uma pena de 3 (três) anos de reclusão em face do ocorrido, fere veementemente a proporcionalidade, bem como a finalidade da pena, motivo pelo qual entende-se como sendo necessária e adequada a adoção de uma "minorante inominada" para recuar a pena em 2/3 (dois terços). Preliminar rejeitada por maioria. Negado provimento ao apelo da Defesa. Decisão unanime. Provido parcialmente o Recurso do MPM, por maioria. (Superior Tribunal Militar. APELAÇÃO nº 0000015-78.2009.7.06.0006. Relator(a): Ministro(a) ALVARO LUIZ PINTO. Data de Julgamento: 16/04/2015, Data de Publicação: 02/07/2015)
Esclarecida a gênese da chamada “minorante inominada” na jurisprudência do Superior Tribunal Militar e estabelecido, pois, o quadro fático sobre o qual se debruçará a análise proposta, cumpre examinar os fundamentos delineados à luz dos preceitos constitucionais e legais explorados linhas acima.
5. Análise da minorante inominada
O exame da “minorante inominada” criada na jurisprudência do Superior Tribunal Militar sem par no repositório dos demais tribunais superiores brasileiros pode se iniciar mesmo pelo nome dado à causa de diminuição da pena em testilha.
Como cediço, no direito chamamos de “inominados” aqueles institutos que, conquanto encontrem previsão em sua legislação de regência, não tiveram um nome registrado pelo legislador ou mesmo consagrado na doutrina, como é o célebre caso do “recurso inominado no Juizado Especial Cível (art. 41 da Lei nº 9.099/95).
Há outros tantos exemplos espalhados pelo ordenamento jurídico pátrio e mesmo dentro dos nossos Código Penal Militar e Código de Processo Penal Militar.
Neste diploma, podemos citar o chamado “recurso inominado” para atacar: a decisão que rejeita a exceção de incompetência (art. 145 do CPPM); a decisão sobre restituição de coisas (art. 192 do CPPM); entre outros.
No Diploma Repressivo Castrense, boa parcela das circunstâncias atenuantes não têm uma denominação que as distinga, exceção talvez se faça apenas às atenuantes da minoridade (CPM, art. 72, I), arrependimento posterior (CPM, art. 72, III, “b”) e da confissão (CPM, art. 72, III, “d”). Há também inúmeras causas de diminuição de pena no CPM que não contam com um nomen juris destacado, como, por exemplo, ocorre com a apresentação voluntária do desertor dentro em oito dias da consumação do delito (CPM, art. 189, I).
O termo “minorante inominada”, portanto, não nos parece apropriado. Tampouco o seria, cumpre registrar, o termo “minorante genérica”, fazendo alusão à atenuante genérica do art. 66 do Código Penal, posto que, diferentemente desta que se apega genericamente a alguma circunstância relevante anterior ou posterior ao crime, a “minorante inominada” tem uma causa específica segundo os precedentes que a editaram, qual seja uma suposta desproporcionalidade da pena abstratamente cominada.
O que temos, portanto, é algo que seria mais bem denominado de “minorante ilegal”, mas que, em verdade, como veremos a seguir, se trata de verdadeira usurpação das funções do Poder Legislativo.
Voltando aos precedentes ilustrados linhas acima, verificamos que, conquanto haja o lapso de apenas aproximadamente um ano entre o julgamento pelo Superior Tribunal Militar do “Caso 1” e do “Caso 2”, a diferença na aplicação do ordenamento jurídico entre ambos representa um verdadeiro abismo.
Com efeito, no “Caso 1”, a Corte, tomando uma posição autocontida, entendeu por unanimidade, com base no princípio da legalidade, a impossibilidade de reconhecer uma minorante sem previsão legal.
Nesta senda, chama a atenção que no “Caso 2” foi justamente o princípio da legalidade um dos fundamentos para a inovação inventiva da Corte, ao argumento de que tal preceito fora idealizado exclusivamente para proteger o cidadão contra os abusos do Estado, de modo que não poderia servir de limitador para atitudes desse mesmo Estado que o beneficiassem.
Tal visão, todavia, parece não se coadunar com seu mais preciso e moderno conceito e amplitude e, mormente, com preceitos umbilicalmente ligados à legalidade, como é o caso da igualdade e da segurança jurídica e do próprio Estado Democrático de Direito.
Com efeito, quando visitamos o princípio nos capítulos 2 e 3, verificamos que seu conceito pode ser verificado sob duplo prisma, sendo em uma de suas faces uma garantia aos indivíduos e sociedade contra arbitrariedades do Executivo e Judiciário e, na outra, apresenta-se como base do Estado de Direito que busca adequar as condutas às normas jurídicas cuja máxima expressão é a Lei.
Explorando a primeira “face”, já de arranque podemos constatar o flagrante equívoco da premissa adotada pela Corte. A “lei” não é garantia apenas aos indivíduos isoladamente considerados, mas o é também em grande medida à sociedade.
Além disso, essa proteção/garantia é conferida, em geral, através da imposição de normas por meio de um veículo formal (lei) deliberado pelo mesmo povo que sofrerá essa limitação em sua liberdade, o que ordinariamente faz através de seus representantes eleitos justamente para essa função.
Mencionamos “limitação”, mas pode muito bem ser um benefício, como por exemplo a minoração da pena, algo que também pode ser identificado como “arbitrariedade” e gerar flagrante desigualdade quando não conferido através de norma geral e abstrata, ou seja, a lei. Além, é claro, de poder gerar a odiosa impunidade e colocar em risco o convívio social.
Refletindo, pois, em termos de “lei penal” que é objeto do presente estudo e retornando às bases lançadas no capítulo 2, temos que o Direito Penal, como dissemos, “tem por fim tutelar o convívio harmonioso em sociedade, o que faz através da proteção de bens jurídicos que este todo social considera ser os mais importantes para a vida em comum e, quando injustamente vulnerados, protege a harmonia por meio da imposição de sanções a fim de recuperar a justa expectativa de respeito à norma posta”.
Em outros termos, o povo, através de seus representantes, elege aqueles valores mais caros a possibilitar o convício em sociedade e desde já, em comum acordo, registra a justa resposta contra o vilipêndio dessas regras, tudo através de veículo geral e abstrato, a lei.
Vulnerar a lei para conceder individualmente um benefício, portanto, quebra a justa expectativa de toda uma sociedade e vulnera todo um sistema equalizado de segurança pública e política social, além de gerar flagrante desigualdade (que, em boa medida, é sinônimo de injustiça) e insegurança jurídica.
Não é demais relembrar que, segundo Roxin, o desiderato de Feuerbach ao idealizar o princípio da legalidade no direito penal era justamente o de servir como espécie de coação psicológica dirigida aos cidadãos para que não delinquissem (PACELLI; CALLEGARI, 2015, p. 98), objetivo evidentemente frustrado caso os Tribunais não apliquem a lei.
A lição, conquanto remonte ao século XIX, permanece perfeitamente válida. Atualmente, malgrado haja certa discussão a respeito dos fins da pena, há um relativo consenso em torno das finalidades preventivas (alguns as adotam isoladamente, alguns as adotam em determinadas fases e alguns as combinam com outras finalidades) (MASSON, 2017, p. 615).
Nesse mote, a pena teria por fim prevenir a prática de infrações penais, servindo para a proteção da sociedade (MASSON, 2017, p. 616). As finalidades preventivas subdividem-se em gerais, voltadas para a coletividade, e especiais, preocupadas com o delinquente, seja a fim de prevenir a reincidência (prevenção especial negativa), seja a fim de ressocializá-lo (prevenção especial positiva) (SANCHES, 2016, p. 396).
A prevenção geral, a seu turno, pode ser vista sob o prisma negativo, quando verificada sob a perspectiva de servir de alerta para a coletividade a fim de que não delinqua, e sob o prisma positivo quando reforça simbolicamente a confiança da população na existência da norma e reequilibra o sistema desestabilizado pelo crime (MASSON, 2017, p. 617).
Seja por qual prisma se verifique, parece evidente que não aplicar a lei penal impede que essa prevenção seja minimamente efetiva.
Com efeito, voltando ao “Caso 1”, como dissemos, malgrado a Corte tenha registrado que a minorante inominada, por ilegal, seria inaplicável, deixou de decotar essa parte da decisão pela vedação à reformatio in pejus e manteve a diminuição da pena, a qual posteriormente foi extinta pelo reconhecimento da prescrição.
No “Caso 2”, em que houve a prática de violência com emprego de arma de fogo de serviço por militares fardados que invadiram uma festa infantil e ameaçaram e agrediram civis na frente de crianças com idades entre oito e doze anos, o emprego da minorante resultou em uma pena de dois anos que sequer chegou a ser aplicada pois foi suspensa pelo Tribunal[4].
A solução não foi diferente no “Caso 3” em que a diminuição da pena abaixo do mínimo previsto em lei rendeu aos réus, igualmente, a concessão da suspensão condicional da pena pelo Corte Castrense, algo que não seria possível caso a lei fosse seguida na dosimetria.
Como logo se observa, tais decisões acabaram, de uma forma ou outra, afastando a execução da pena, algo que reforça na sociedade a sensação de impunidade e infelizmente acaba por dar coro àqueles que insistem em dizer que o crime compensa no Brasil, algo que inclusive já virou clichê em filmes de Hollywood[5].
A aplicação de norma geral e abstrata idealizada pelo povo através de seus representantes eleitos tem por fim não apenas evitar abusos, desvios e toda sorte de arbitrariedades nefastas, mas guarda ínsita em si a ideia de igualdade entre os cidadãos, conforme já destacamos linhas acima.
Consoante registramos, “a igualdade de todos perante a lei deixa de existir, pois haverá o juiz que considere a lei muito rígida e a relativizará, ao passo que existirá aquele que a entenda como muito branda e a recrudescerá, tornando a prestação da justiça verdadeira loteria”.
Trazendo essa concepção para a análise da minorante inominada, cremos que um exemplo poderá lançar luz solar sobre nossa conclusão.
Tomemos, pois, o “Caso 3” em que o furto qualificado praticado em concurso de pessoas por dois militares à noite contra onze companheiros de farda foi apenado com somente 1 (um) ano de reclusão, com direito à suspensão condicional da pena, e o comparemos com a Apelação Criminal nº 7000170-88.2022.7.00.0000.
Neste último caso, julgado mais recentemente, houve igualmente o furto qualificado pelo concurso de três militares que, agindo à noite, furtaram objetos de três outros militares.
Malgrado o cenário fático, como salta à vista, seja muito semelhante, os réus desse último caso não foram beneficiados com a “minorante inominada” e receberam penas nas exatas balizas legais, as quais variaram entre 4 (quatro) anos, 11 (onze) meses e um (1) dia de reclusão e 4 (quatro) anos, 1 (um) mês e 6 (seis) dias de reclusão, todos no regime semiaberto e sem direito à suspensão condicional da pena.
A respeito da ojeriza e gravidade do delito no seio da tropa, e da necessidade de não se apartar do interesse da sociedade na aplicação da lei penal, o relator muito bem concluiu:
Não se tratou de furto simples, de militar contra militar, em ambiente descontraído externo à OM. O crime ocorreu nos alojamentos da OM, onde deve prevalecer o profissionalismo, a confiança inabalável e a camaradagem entre os militares!
[...]
O Estado Juiz deve puni-los por suas ações criminosas, de forma repressiva e preventiva, visando, sobremaneira, atender ao interesse de toda a sociedade, a qual deseja tutelar os essenciais serviços prestados pelas Forças Armadas, última ferramenta de sua defesa. (negritos no original, grifos nossos) (Superior Tribunal Militar. APELAÇÃO CRIMINAL nº 7000170-88.2022.7.00.0000. Relator(a): Ministro(a) MARCO ANTÔNIO DE FARIAS. Data de Julgamento: 22/02/2024, Data de Publicação: 19/03/2024.)
Qual a grande distinção entre o “Caso 3” e a desta Apelação Criminal que fundamentou uma sanção criminal mais de quatro vezes maior e impediu a aplicação de medidas alternativas à restrição da liberdade?
A resposta é simples: no “Caso 3” a lei válida foi afastada pela aplicação de conceitos jurídicos indeterminados, gerando arbitrário tratamento desigual para situações semelhantes.
Embora os réus da AP “170-88" tenham recebido a pena justa de acordo com os preceitos legais, nos traz um certo amargor quando se confronta com o “Caso 3”, mas o que ocorre na verdade é que neste último a sociedade foi injustiçada com o tratamento privilegiado dos criminosos em detrimento das normas gerais e abstratas aprovadas pelos representantes eleitos do povo e que deveriam servir para todos.
A igualdade perante a lei talvez seja um dos princípios que mais represente o ideário de justiça e o que, por isso mesmo, mais cause maior repulsa quando desrespeitado:
A Cláusula de Proteção Igualitária resume a justiça mais do que qualquer outra disposição da Constituição. E o problema da abordagem que defende uma margem ampla de discricionariedade na elaboração de decisões judiciais é que ela não satisfaz muito bem esse senso de justiça (SCALIA, 2021, p. 41).
Essa falta de igualdade perante a lei também traz consigo outro antagonista da justiça, a ausência de segurança jurídica, igualmente desrespeitada pela “minorante inominada”.
Com efeito, dita criação jurisprudencial rompe com a estabilidade do direito, já que ignora a publicidade e amplas discussões que permeiam o dificultoso processo legislativo, mormente quando se debatem leis penais, o qual também pressupõe a aprovação de mais de uma centena de congressistas, algo que, pela visão dos que aprovam a “minorante inominada”, pode ser completamente ignorado por um único juiz em qualquer dos rincões do Brasil.
Nessa senda, perde-se por completo a sistematicidade, ou seja, a unidade e coerência do ordenamento jurídico e sua homogeneidade, posto que cada um dos mais de 18.000 (dezoito mil) juízes que compõem o Judiciário brasileiro[6] poderão criar seu próprio código de normas penais e processuais penais, redundando em um inevitável tratamento desigual para pessoas na mesma situação jurídica e na completa imprevisibilidade e caos da justiça.
Em uma perspectiva mais social, essa falta de segurança jurídica rompe com a justa expectativa do cidadão de que seu comportamento receberá o tratamento que a lei determina e frustra a esperança que a sociedade deposita na obtenção da paz social através da minimização dos litígios resultante do fator pedagógico da aplicação da lei, pois é nesta desordem que o cidadão mal-intencionado se fortalece.
Tais conclusões ressoam em consonância com a lição do marquês Cesare Beccaria na célebre obra Dos Delitos e das Penas (2021, p. 149):
Quereis prevenir os crimes? Fazeis leis simples e claras; fazei-as amar; e esteja a nação inteira pronta a armar-se para defendê-las, sem que a minoria de que falamos se preocupe constantemente em destruí-las.
Não favoreçam elas nenhuma classe particular; protejam igualmente cada membro da sociedade; receie-as o cidadão e trema somente diante delas. O temor que as leis inspiram é salutar, o temor que os homens inspiram é uma fonte funesta de crimes.
Interessante notar que esta mesma obra foi citada no “Caso 2”, embora omitindo o apego do autor à lei, ora tão maltratada pela “minorante inominada”.
Beccaria, já no século XVIII, “pregava o vínculo do magistrado com a lei. Nesse sentido, afirmava que nada seria mais perigoso ’do que o axioma comum de que é necessário consultar o espírito da lei (…) é como romper um dique à torrente de opiniões’” (DE MORAES GODOY, 2022).
Precisamente este um dos argumentos que levou a Corte Superior Militar a diminuir a pena no “Caso 02”, ao considerar que o espírito da lei, ao fixar a pena de reclusão de quatro a oito anos para o crime de Organização de grupo para a prática de violência, se prendia quase que exclusivamente a uma hipotética intenção de impedir levantes em um mundo polarizado pela disputa entre comunismo e capitalismo que não mais se justificaria hoje em dia, algo que, pelo silogismo do Tribunal, determinaria a diminuição da pena.
Ocorre que os legítimos representantes do povo revisitaram o art. 150 do Código Penal Militar no ano de 2023 (Lei nº 14.688)[7] e não encontraram desatualização ou desproporcionalidade na pena abstratamente cominada, deixando assente a equívoco de que o tipo penal “está preso a passado específico”.
Não se pode deixar de registrar o acerto do Congresso Nacional. A reunião de integrantes dos braços armados do Estado com armamento militar para praticar violência contra particulares certamente é uma conduta de alta gravidade, conclusão que, acreditamos, é subscrita por ampla margem da sociedade.
Outros argumentos em que se apoiou a Corte diz respeito a supostos critérios de “política criminal” e aplicação do princípio da proporcionalidade.
Iniciando pelas razões de “política criminal”, trazemos à baila as eloquentes e precisas lições do então Ministro do STM, Alte Esq José Julio Pedrosa. Na hipótese, discutia-se a compensação de uma causa de aumento de pena com uma atenuante, algo vedado pelo sistema trifásico de dosimetria da pena, mas que foi aceito pelo Superior Tribunal Militar ao arrepio do ordenamento jurídico por supostas “razões de política criminal”.
Referiu o Min. Pedrosa em seu voto divergente:
Em termos bem simples, as políticas públicas definem objetivos e traçam as linhas gerais de ação para os diversos setores da administração pública.
A política criminal não foge à regra. Ela estabelece as metas e orienta os procedimentos pelos quais o corpo social organiza as respostas ao fenômeno criminal. [...]
Nesse sentido, esclarece MAGALHÃES NORONHA (“Direito Penal”, vol. I, Saraiva, 1997, pág. 17) que a maioria dos estudiosos considera a política criminal como “a arte de legislar em determinado momento, segundo a necessidade do povo e de acordo com os princípios científicos dominantes;” [...]
Não obstante, deve-se admitir que, de alguma forma, a política criminal influencia a aplicação e execução das disposições normativas.
Principalmente na interpretação da lei, na apreciação da culpabilidade e da inexigibilidade de conduta diversa, e na aplicação da sanção penal, o Juiz deve levar em conta os objetivos e procedimento preconizados na política criminal.
Há de fazê-lo, entretanto, na conformidade da lei, isto é, nos estreitos limites da discricionariedade que a lei lhe concedeu.
“Política Criminal” não é uma expressão mágica, um “abracadabra” que permite ao Juiz sobrepor-se à lei e decidir contra legem. (Superior Tribunal Militar. APELAÇÃO nº 2000.01.048466-3. Relator(a): Ministro(a) ANTONIO CARLOS DE NOGUEIRA. Data de Julgamento: 18/12/2000, Data de Publicação: 12/03/2001).
Examinando novamente o Caso 02, verifica-se que embora a expressão “política criminal” tenha sido utilizada sete vezes, em nenhuma delas fica minimamente demonstrado quais seriam os aludidos critérios de política criminal, muito menos os motivos pelos quais eles supostamente demandariam a diminuição da pena.
De fato, não há como deixar de concordar que a expressão virou mesmo uma espécie de palavra mágica que, assim que invocada, parece permitir ao Juiz colocar suas convicções mais íntimas acima do império da lei sem necessidade de maiores explicações.
De igual modo ocorre com o festejado princípio da proporcionalidade, infelizmente utilizado com surpreende frequência como uma espécie de panaceia que resolve todos os males daquele julgador que não quer aplicar a lei.
A fim de exemplificar o que afiançamos aqui, vamos voltar ao Caso 03 em que tal princípio foi o principal fundamento para o emprego da “minorante inominada”, ou seja, estabelecer a pena abaixo do mínimo permitido em lei Já na ementa fica claro o que registramos:
No presente caso concreto, analisando-se à luz do Princípio da Proporcionalidade, que serve de norteador ao juiz no momento da aplicação da pena, a condenação imposta aos Acusados mostra-se acertada. Todavia, reformar a Sentença para imputá-los uma pena de 3 (três) anos de reclusão em face do ocorrido, fere veementemente a proporcionalidade, bem como a finalidade da pena, motivo pelo qual entende-se como sendo necessária e adequada a adoção de uma "minorante inominada" para recuar a pena em 2/3 (dois terços).[…] (Superior Tribunal Militar. APELAÇÃO nº 0000015-78.2009.7.06.0006. Relator(a): Ministro(a) ALVARO LUIZ PINTO. Data de Julgamento: 16/04/2015, Data de Publicação: 02/07/2015).
No inteiro teor do acórdão, a fundamentação que deveria esclarecer a alegada excepcionalidade do caso a indicar a desproporcionalidade entre a pena abstratamente cominada e a conduta levada a efeito a fim de permitir o emprego do princípio da proporcionalidade e afastar a lei clara e expressa, limitou-se ao seguinte:
No presente caso concreto, analisando-se à luz do Princípio da Proporcionalidade, que serve de norteador ao juiz no momento da aplicação da pena, a condenação imposta aos Acusados mostra-se acertada. Todavia, reformar a Sentença para imputá-los uma pena de 3 (três) anos de reclusão em face do ocorrido, fere veementemente a proporcionalidade, bem como a finalidade da pena, motivo pelo qual entende-se como sendo necessária e adequada a adoção de uma “minorante inoninada”, excepcionalmente no caso em voga.
Como se vê, diminuiu-se a pena abaixo do que a lei permite sem maiores explicações.
Realmente, um verdadeiro “abracadabra”.
A arbitrariedade em que se funda a “minorante inominada” fica ainda mais assente quando comparamos este Caso 03, que foi julgado em 16/04/2015, com o julgamento da Apelação nº 0000040-52.2012.7.03.0303 realizado menos de três meses depois (em 01/07/ 2015).
Neste, dois soldados, estando um deles de serviço, arrombam o armário de um colega de farda durante a noite e subtraem a quantia de R$ 420,00. O fato, pois, é aparentemente menos grave que o Caso 03 em que, como dissemos, dois marinheiros, ambos de serviço, se embriagaram e arrombaram o armário de onze colegas durante a noite, subtraindo diversos objetos incluindo dinheiro, celular, frascos de perfume, corrente de ouro, entre outros.
Apesar disso, no Caso 03 o Superior Tribunal Militar encontrou uma suposta desproporcionalidade entre a pena aplicável de 03 anos e a conduta, diminuindo a pena para 01 ano. Contraditoriamente, no Apelo 040-52.2012 a mesma Corte não viu qualquer problema em aplicar a pena legal, confirmando a condenação dos réus à pena de 03 anos:
APELAÇÃO. DEFESA. FURTO QUALIFICADO. HORÁRIO NOTURNO. CONCURSO DE PESSOAS. MILITAR EM SERVIÇO. NÃO PROVIMENTO. Não há que se falar em absolvição. O furto foi praticado por militares em serviço, em horário noturno. Autoria e a materialidade do crime demonstradas nos autos. A tese da defesa de insuficiência de provas não merece ser acolhida, o conjunto probatório, inclusive com prova testemunhal, fornece elementos de convicção aptos a ensejar a manutenção da condenação. Decisão unânime (Superior Tribunal Militar. APELAÇÃO nº 0000040-52.2012.7.03.0303. Relator(a): Ministro(a) ODILSON SAMPAIO BENZI. Data de Julgamento: 01/07/2015, Data de Publicação: 26/08/2015).
Interessante notar que no Caso 03, segundo a Corte, havia uma manifesta desproporcionalidade a permitir excepcionalmente a não aplicação da lei, ao passo que neste apelo de um caso aparentemente menos grave, julgado apenas três meses depois, não se escreveu uma linha sequer sobre o princípio da proporcionalidade.
Como se vê, as decisões judiciais que ignoram a lei abrem portas e janelas para arbitrariedades e injustiças, rompendo com diversos preceitos basilares do sistema de justiça insculpidos em nossa Magna Carta.
Mas não é só! Fere-se de morte, igualmente, princípios que fundamentam a própria constituição do nosso Estado Democrático de Direito estabelecido pela Lex Fundamentalis de 1988, como é o caso da democracia e da independência e harmonia entre os poderes.
A democracia, como dissemos, significa “governo do povo”, algo que, no Brasil, verifica-se de forma participativa ou semidireta, ou seja, através de representantes legitimamente eleitos e ainda por meio de mecanismos que possibilitem a participação direta em alguns casos específicos.
Destarte, e considerando a independência e harmonia entre os Poderes e suas funções típicas, nosso Estado Democrático de Direito pressupõe o império da lei, o chamado “rule of law”, entendido como aquele em que todos estão submetidos igualmente aos ditames da lei.
Ocorre que se o juiz decide contra a lei, e ainda pior, utilizando-se de expressões vagas não devidamente explicadas para fazer valer suas íntimas convicções em detrimento dos interesses legítimos da sociedade representados nos diplomas normativos, ele evidentemente está colocando suas opiniões pessoais acima do texto legal e, portanto, ele mesmo acima da lei.
Demais disso, se, como sabemos, “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente” (CRFB, Art. 1º, parágrafo único), e essas decisões judiciais são contrárias à vontade popular legitimamente expressa em veículo normativo geral e abstrato (a lei), de onde viria – se é que vem de algum lugar – e em que se fundaria esse poder contramajoritário do Juiz?
Quando temos alguns poucos detentores de Poder do Estado que se colocam ilegitimamente acima da lei, claramente deixamos de ter democracia e quebramos a independência e harmonia entre os Poderes para passar a flertar com o absolutismo.
Talvez pareça exagero a um leitor incauto, mas a história nos diz que os pequenos abusos precedem os grandes[8].
Haverá, todavia, aqueles que defendam um papel mais ativo do Judiciário, que deveria assumir as rédeas da nação em certos momentos a fim de conduzir a sociedade a avanços em matérias que o jogo político usual não teria a capacidade de entregar.
Tais vozes defendem o chamado “ativismo judicial”, o qual, nas palavras do Min. Barroso consiste na “participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes.” (BARROSO, 2015, p. 442).
Conquanto o presente estudo se debruce sobre uma conduta claramente ativista por parte do Superior Tribunal Militar e disse que decisões que lhes servem de precedente, o objeto da análise não é explorar as diversas críticas ao ativismo judicial. Nada obstante, considerando a estreita ligação com o tema, não poderíamos deixar de expor ao menos uma visão a este respeito, a qual, dada sua relevância e erudição, acreditamos que deva ser a de Antonin Scalia, juiz da Suprema Corte dos Estados Unidas da América entre 1986 e 2016.
Em contraposição à visão ativista que permite uma interpretação até mesmo descolada do texto legal, tendo por base conceitos jurídicos indeterminados que, a depender do momento ou intérprete, assumem variadas e mesmo contrapostas feições, Scalia é defensor do chamado “originalismo”, o qual, em suma, defende que as disposições constitucionais devem ser interpretadas e entendidas da forma como originalmente referidas, ou seja, significam hoje o mesmo que significavam quando da edição da Magna Carta.
Referida interpretação, todavia, não impedem que se atualizem conceitos antigos à nova realidade sem se ignorar sua essência e compromisso com o sentido original.
Nas palavras de Scalia (2021, p. 47):
O Tribunal deve determinar, por exemplo, como a garantia da Primeira Emenda da “liberdade de expressão” se aplica a novas tecnologias que não existiam quando a garantia foi criada [...].
Mas reconhecer a necessidade de projeção de velhos princípios constitucionais sobre novas realidades físicas está muito longe de dizer o que dizem os não-originalistas: que a Constituição muda; que o próprio dispositivo que uma vez proibiu agora permite, e o que uma vez permitiu, agora proíbe.
Trazendo referida lição para a análise aqui proposta, verificamos no Caso 02, por exemplo, que à guisa de “interpretar” o princípio da legalidade que prega a observância da lei como forma de garantir o indivíduo e a sociedade, o Superior Tribunal Militar contraditoriamente concluiu que não deveria aplicar a lei.
Essa forma de visão de alguns juízes “obstinados”, segundo Scalia, parte de uma premissa ingênua de que (2021, p. 52):
[...] quaisquer mudanças feitas no significado original sempre serão no sentido de conceder maior liberdade individual – o que para sua maneira de pensar é sempre bom. Só o anarquista, é claro, concordaria que é sempre bom. Qualquer sistema de governo envolve um equilíbrio entre a liberdade de ação individual e as necessidades da comunidade, e parece-me bastante tolo presumir que cada nova inclinação na direção de uma maior liberdade de ação é necessariamente boa.
O equilíbrio tão bem identificado por Scalia entre liberdade de ação individual e as necessidades da comunidade, ao que parece, foi solenemente ignorado em ambos os casos que deram gênese à minorante inominada.
No Caso 02, por exemplo, deu-se primazia à “liberdade individual” dos militares que, insistimos, fardados e munidos com armas de fogo de uso restrito das Forças Armadas invadiram uma festa infantil e ameaçaram diversas pessoas com armas de fogo na frente de crianças, além de praticar agressões consistentes em chutes e tapas, “em razão da ausência de dano a bens, de não haver lesões expressivas nas vítimas comprovadas em procedimento pericial próprio e nem disparo de arma de fogo” como registrou o relator.
Apenas a título de registro, cumpre ressaltar que o tipo penal do art. 150 do Código Penal Militar não impõe que haja disparo de arma de fogo ou lesões corporais expressivas de modo que não há lógica em diminuir a pena abaixo do mínimo legal por não terem ocorrido. Seria o mesmo que diminuir a pena de um furto, crime patrimonial caracterizado pela ausência de violência, justamente porque não houve violência. Tais elementos usados pelo Tribunal mais se aproximam das “elementares ectoplasmáticas” muito bem registradas por Adriano Alves-Marreiros[9].
No Caso 03, em que foi aplicada um terço da pena prevista na lei a militares que arrombaram e furtaram sucessivamente o armário de mais de uma dezena de colegas, a contraposição da solução ativista da Corte às “necessidades da comunidade”, como já dissemos, foi identificada posteriormente pelo próprio Tribunal em julgamento recente de caso semelhante:
Os casos de furto praticados por militares contra seus próprios pares dentro dos quartéis, além de ofender os princípios norteadores das Instituições Castrenses, revelam impactos, os quais superam as perdas materiais.
Não se pode olvidar que o comportamento adotado pelos réus feriu de morte os princípios que regem as Forças Armadas, notadamente a camaradagem e a confiança que devem prevalecer entre os pares. [...]
O Estado-Juiz deve puni-los por suas ações criminosas, de forma repressiva e preventiva, visando, sobremaneira, atender ao interesse de toda a sociedade, a qual deseja tutelar os essenciais serviços prestados pelas Forças Armadas, última ferramenta de sua defesa.
Essas graves condutas configuram forte atentado aos valores tradicionais que as Forças Armadas preservam e dos quais não podem jamais se afastar. Há evidente fragilização das estruturas institucionais, as quais são firmadas na confiabilidade (Superior Tribunal Militar. APELAÇÃO CRIMINAL nº 7000170-88.2022.7.00.0000. Relator(a): Ministro(a) MARCO ANTÔNIO DE FARIAS. Data de Julgamento: 22/02/2024, Data de Publicação: 19/03/2024).
Ainda, sobre os métodos de interpretação (ou a falta deles) que os não-originalistas adotam, refere o jurista (SCALIA, 2021, p. 59):
[...] como os constitucionalistas vivos chegarão às suas decisões? Para dizer a verdade, eu não sei – e nem eles. Como eles decidirão quais são “os padrões de decência em evolução que marcam o progresso de uma sociedade em amadurecimento” [...] O que um grupo de elite dos melhores advogados do país, isolado em um palácio de mármore, sabe sobre isso?
A respeito dos referidos “padrões de decência que marcam o progresso da sociedade”, relembramos novamente que no Caso 02, sob a alegação de efetivar uma suposta “política criminal de vanguarda” e vencer uma imaginada “inércia do legislador” em um suposto “caso emblemático”, a Corte Superior Militar acabou por determinar a mera suspensão condicional da pena do grupo de militares que violentou civis em uma festa infantil, na frente de crianças de 8 (oito) a 12 (doze) anos, usando armas de fogo de uso restrito das Forças Armadas.
Será realmente esse o “padrão de decência” que a sociedade brasileira espera do Braço Armado do Estado?
Em que pese o leitor talvez não concorde com o originalismo, certamente haverá de convir que referida visão impede que o Judiciário se arvore à condição de legislador e nos surpreenda com “interpretações” criativas, para dizer o menos, em que há verdadeira criação de lei e a historicamente odiosa concentração de poder que tantos males já causou à humanidade.
Ou nos assombre com a lógica incompreensível exposta no Caso 02, de que “se o juiz pode mais — absolver, dada a irrelevância — pode menos, evidentemente: aplicar pena aquém do mínimo legal”, como se absolver ou condenar fosse uma mera faculdade posta ao livre arbítrio dos juízes e não um poder-dever extraído da própria tripartição do poder que fundamenta nosso Estado Democrático de Direito e que deve ser exercido “cumprindo a Constituição e as leis”[10] e de acordo com a prova dos autos.
6. Considerações Finais
O Direito Penal nasce e se desenvolve como forma de controle a permitir o harmonioso convício em sociedade. Tendo em conta essa imprescindível função e perseguindo um ideário de prevenção geral, houve-se por bem dispor a respeito em norma geral e abstrata, a lei, algo inarredável em um Estado Democrático de Direito e que milita em favor da segurança jurídica, igualdade e consenso democrático, papeis que reforçam a harmonia social a gerar um círculo virtuoso, cuja quebra, por um rompimento da justa expectativa de aplicação da lei, é fator gerador de injustiças e potencial conflituosidade.
A “minorante inominada” não tem base sólida, seja porque sua criação deriva de usurpação do Poder Legislativo, o que invalida o Estado Democrático de Direito, seja porque busca justificação em conceitos jurídicos indeterminados que sequer são minimamente explicados nos julgados, de modo que, nos termos da lei (CPP, art. 315, §2º, II), nem mesmo pode se considerar como fundamentadas as decisões.
Não bastasse, ela tem o condão de deturpar o papel constitucional do Judiciário, eis que, como vimos a partir da análise de casos concretos, ela desvirtua a justiça que deveria ser farol desse Poder e permite tratamentos extremamente desiguais para acusados em situações deveras semelhantes, algo que dissemina insegurança jurídica e abala a paz social, sendo fator de maximização de conflitos a perverter o escopo da jurisdição.
Em suma, a criação e aplicação da “minorante inominada” claramente fere de morte as mais fundamentais normas de nossa Constituição Federal.
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Murilo Antonio dos Santos é Promotor de Justiça Militar, pós-graduado em Direito Penal e em Direito Civil pelo Centro Universitário Leonardo da Vinco e Pós-graduado em Direito aplicado ao Ministério Público Militar pela Escola Superior do Ministério Público da União.
NOTAS
[1]Disponível em: < https://www.ufsm.br/app/uploads/sites/414/2018/10/1789.pdf> acesso em 23/08/2024.
[2]Em última análise, é o que garante as próprias liberdades dos indivíduos, pois se não tiverem certeza a respeito do que é proibido, temerão fazer várias coisas que não o são, ou não deveriam sê-lo.
[3]Robert Alexy em "Teoria dos Direitos Fundamentais” cita o seguinte trecho da obra "Política”, III, 5 (1280a): "Considera-se, por exemplo, que justiça é igualdade, e de fato o é, mas como igualdade para os iguais, não para todos. E considera-se também que a desigualdade pode ser justa, e de fato o pode, mas não para todos, somente para os desiguais entre si".
[4]O Superior Tribunal Militar, ao reduzir a pena abaixo do mínimo legal, que é de quatro anos, para o patamar de apenas dois anos de reclusão, decidiu na sequência conceder aos réus o benefício da ”suspensão condicional da pena”, nos termos do art. 84 e ss do Código Penal Militar.
[5]Disponível em: < https://www.estadao.com.br/brasil/na-tela-do-cinema-o-paraiso-da-impunidade/ > acesso em 03/10/2024.
[6]“Ao final de 2023, havia 22.770 cargos de magistrado(a) criados por lei, sendo 18.265 providos e 4.505 vagos (19,8%) [...]. Entre os(as) 18.265 magistrados(as), 76 são ministros(as) (0,4%)9; 15.542 são juízes(as) de primeiro grau (85,1%); 2.478 são desembargadores(as) (14%); e 169 são juízes(as) substitutos(as) de segundo grau (0,9%)”. Disponível em < https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2024/05/justica-em-numeros-2024.pdf > acesso em 05/10/2024).
[7]Ressalte-se, aliás, que antes disso o Código Penal Militar já havia sido alterado pelo legislador pós-constituinte em 1996, 1998, 2011 e 2017 sem que houvesse alteração do preceito secundário do art. 150, o que também evidencia uma opção legítima do Congresso Nacional pela pena no patamar originalmente estabelecido.
[8] A título de exemplo, vide os eventos que à guerra na Ucrânia.
[9] Elementares ectoplasmáticas* são aquilo que não é elementar do tipo no mundo material, positivado, mas que alguns parecem conseguir ver com possíveis poderes psíquicos em um universo paralelo, no mundo espiritural ou, quiçá, no Duat egípcio, a exemplo do ânimo calmo como elementar em ameaçar e as exigências próximas à leitura do pensamento do agente na prevaricação.
*Ectoplasma, segundo o filme e desenho Ghostbusters, Caça-Fantasmas em português, é a substância de que são feitos os fantasmas.(ALVES-MARREIROS, 2015, p. 1002).
[10] Lei Complementar nº 35/1979 (Dispõe sobre a Lei Orgânica da Magistratura Nacional), Art. 79 - O Juiz, no ato da posse, deverá apresentar a declaração pública de seus bens, e prestará o compromisso de desempenhar com retidão as funções do cargo, cumprindo a Constituição e as leis.
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