1. Generalidades
Uma das questões mais tormentosas para os operadores do Direito é o reconhecimento do que seja crime militar.
A grande questão é a diferença entre crime militar e crime de militar que não deve ser confundido, vez que apenas o primeiro é de competência da Justiça Castrense.
O tema tem ocupado discussões nas diversas instâncias do Poder Judiciário e trazido consequências diversas no processo-crime, delongando a prestação jurisdicional, com reflexos nefastos como, por exemplo, a prescrição do delito.
Como bem retrata José Cretella Jr[1], a questão do que seja crime militar “é discutido secularmente desde 1858, quando o nosso Conselho de Estado respondeu a consulta da Seção de Guerra e Marinha, sendo relator o Visconde de Albuquerque, a propósito de crime cometido por anspeçada que assassinara colega do Exército, fora do quartel e do serviço, concluindo, na ocasião, aquele colegiado, que a competência para o processamento e julgamento daquele delito era da Justiça Comum: ‘Quer o matador, quer o assassinado não estavam em serviço, achando-se, ambos, fora do aquartelamento, tendo sido cometido o crime, no meio da rua e com instrumento não-militar’.”
Na preciosa análise da antiga decisão de 1858, a Resolução Imperial de 1858 não considerou crime militar o homicídio, quando cometido entre militares, fora do serviço e do quartel, mediante o emprego de instrumento não-militar. Segundo o mencionado jurista Cretella Jr.[2], “o ato criminoso não foi cometido in offício e nem propter officium.”.
Na análise do REx nº 012270661/210, tendo como relator o Ministro Sepúlveda Pertence, em 1990, José Cretella Jr., apontou a discussão sobre o tema no STF, com destaque para o voto do Ministro Paulo Brossard, in verbis:
dos mais discutidos e intrincados problemas jurídicos é o atinente à conceituação do crime militar (cf. Edmundo Lins, Pandectas brasileiras, 1935, vol. III, p. 83), tema que ‘foi considerado, nos domínios da doutrina, como dos mais tormentosos. Doctores certant e, deles, alguns, desenganados de qualquer critério científico, apegam-se sobretudo ao simples critério legal. Não, porém, sem relutâncias lavrada ou manifestadas, o que deixa, ainda, perplexidades e dúvidas. O critério legal, quando moderado e sem quebra de princípios essenciais, é o que vem norteando a jurisprudência (cf. Orozimbo Nonato, voto em RT 185:484).
Referido autor, demonstrando que a construção do conceito de crime militar não é tarefa simples, analisa diversos critérios, a saber: a) critério do autor e vítima; b) critério da natureza do crime; c) critério do motivo do crime; d) critério legal; e) critério conjugado da autoria e da natureza da infração; f) critério fundado no local do evento, ou ratione loci; g) critério de ‘estar de serviço’.[3]
Essa dificuldade da conceituação do crime militar levou o renomado jurista Jorge Cesar de Assis, na sua obra “Comentários ao Código Penal Militar” Juruá, 5ª ed., 2005, p. 41, mencionar que Júlio Fabbrini Mirabete já se debruçou sobre a questão da competência da Justiça Militar, tendo desabafado que: “árdua, por vezes, é a tarefa de distinguir se o fato é crime comum ou militar, principalmente nos casos de ilícitos praticados por policiais militares”.
Não há dúvida que o critério mais seguro para o reconhecimento do crime militar é o critério ratione legis, critério esse objetivo e que não permite as variações de interpretação contra legem que tomam palco na discussão do tema.
Nessa linha, aliás, a lição de Jorge Alberto Romeiro, crime militar é o que a lei define como tal[4], enquanto para Jorge César de Assis, citando Ivo D’Aquino, o critério de definição é o ratione legis.[5]
Diante da inafastável dificuldade na compreensão do que seja crime militar, a eleição do critério mais seguro, dentre tantos existentes na doutrina, é o norte necessário para todo o operador do Direito, sob pena de se fomentar uma discussão que o Código Penal Militar (CPM) desde sua edição em 1969, afastou.
Bem por isso, já afirmamos outrora, ao analisar o advento dos crimes militares por extensão, por força da Lei 13.491/17[6], que:
“a caracterização do crime militar não depende da motivação da conduta do agente, bastando, apenas, por imposição legal, o preenchimento de requisitos objetivos no caso concreto (circunstâncias taxativamente descritas pelo legislador quando o agente pratica o crime, como estar na ativa quando o crime é praticado contra outro militar na mesma situação; ser praticado por militar da ativa no interior do quartel; estar de serviço etc.; e o fato delituoso estar tipificado na Lei Penal Militar)”. Daí que para se rotular o crime como de natureza militar há necessidade de o tipo penal – previsto no CPM e agora também aqueles previstos em legislação penal comum (Lei 13.491/17) –, estar subsumido a uma das hipóteses contidas no artigo 9º, inciso II, do CPM. Só assim, poder-se-á falar em caracterização do crime militar de competência exclusiva da Justiça Militar. Nessa linha, já decidiu o STF, ao cuidar de crime de roubo e sequestro que: “O foro especial da Justiça Militar da União não existe para os crimes dos militares, mas, sim, para os delitos militares, ‘tout court’. E o crime militar, comissível por agente militar ou, até mesmo, por civil, só existe quando o autor procede e atua nas circunstâncias taxativamente referidas pelo art. 9º do Código Penal Militar, que prevê a possibilidade jurídica de configuração de delito castrense eventualmente praticado por civil, mesmo em tempo de paz.”. Oportuno registrar, ainda, que para caracterização do crime militar hão de ser preenchidos exclusivamente os pressupostos objetivos da Lei (CPM), não sendo pertinente a exigência de critérios subjetivos, como a motivação e o interesse militar, pois estes já suplantados no tipo penal (tipicidade direta) e nas hipóteses do inciso II do art. 9º do CPM (tipicidade indireta), critérios esses que dão segurança jurídica na aplicação da lei.”
2. Da segurança jurídica
Não há dúvida, portanto, que a questão ora discutida encontra solução na segurança jurídica que todo operador do Direito deve encontrar, sob pena do ziguezague estonteante quando no caso concreto se afasta do critério legal adotado pelo Código Penal Militar, como afirmado. Essa questão toma maior relevo ainda, pois a nossa Lei Maior remete a definição de crime militar à lei, ou seja, o Código Penal Militar (art. 125, § 4º, da CF). Logo, diante do princípio da legalidade, que direciona as atividades dos Poderes da República (art. 37, caput, da CF), esse critério não pode ser deixado de lado, e muito menos ignorado.
Por segurança jurídica, diante da variedade de significados da expressão, procuramos nos apegar à certeza do Direito, valendo aqui as lições de Humberto Ávila leciona que “um ordenamento jurídico privado de certeza não poderá, por definição, ser considerado ‘jurídico’. E o referido jurista cita a posição de vários autores também sustentando essa concepção:
“Radbruch afirma que a segurança jurídica ao lado da justiça e da conformidade a fins, são os elementos que compões o núcleo do Direito e sem os quais ele não se caracteriza. Bobbio sustenta ser a segurança jurídica não apenas uma exigência decorrente da coexistência ordenada do homem, mas também um ‘elemento intrínseco do Direito’, destinado a afastar o arbítrio e a garantir a igualdade, não se podendo sequer imaginar um ordenamento jurídico sem que susbsista uma garantia mínima de segurança (...) Hart, a seu modo, também defende a certeza a respeito das regras primárias e secundárias como da regra de reconhecimento, como um elemento definitório do Direito, capaz de defini-lo em contraposição a outros sistemas. (....) Na mesma linha, embora fazendo referência à certeza do Direito, Carvalho reconhece que ‘a certeza do Direito é algo que se situa na própria raiz do dever-ser, é ínsita ao deôntico, sendo incompatível imaginá-lo sem determinação específica.” (Teoria da Segurança Jurídica, São Paulo: Malheiros, 4ª ed., 2016, p. 124/125).
Como lembra Celso Lafer[7], ao citar Teóphilo Cavalcanti Filho em pioneiro livro de 1964, “um direito incerto é também um direito injusto”. E complementa no artigo sobre “Incerteza Jurídica”, dizendo que:
É o nexo incerto/injusto que faz da segurança jurídica um valor de primeira grandeza em qualquer ordenamento democrático. Essa norma princípio é o pressuposto para a eficácia da ordem de princípios – dos muitos princípios que permeiam a Constituição de 1988. São requisitos da segurança jurídica, na lição de Ávila, a efetivação dos ideais da cognoscibilidade do Direito, que enseja a sua calculabilidade, a qual, por sua vez, assegura a sua confiabilidade. (...) O Direito, na sua aplicação, não é um dado que comporte apenas uma interpretação. É um construído pela experiência jurídica, mas essa construção não é a de um “direito livre” que se revela, com autonomia, pelas estruturas argumentativas no processo decisório conduzido no Judiciário. Existem parâmetros para a latitude e o escopo da interpretação. São os provenientes do Direito posto e positivado, a lei, da qual provém a dogmática jurídica. (...).
Assim, à luz da segurança jurídica, é de reconhecer que, em nosso ordenamento jurídico, não há de se confundir crime militar com crime comum, como também não há de se confundir crime político com crime eleitoral, lembrando que a exigência de motivação do crime recai tão somente ao crime político.[8]
Assim, por exemplo, no caso do homicídio, é sempre o critério legal que norteará a distinção se o crime é político, militar ou comum. Daí cautela do operador do Direito para não confundir a natureza daqueles crimes, pois, por descuido, se, contra legem, condicionar requisitos não contemplados na lei, tal qual a motivação do crime, desvirtuará a sua natureza, tornando imprecisa a aplicação da lei. Explicando melhor, no caso do homicídio, como a motivação é exigida expressamente pela Lei no crime político (art. 2º, inciso I, da Lei nº 7.170/83), é incabível utilizar aquele critério subjetivo para definição do crime militar.[9]
3. Desenvolvimento
O motivo particular e a ausência de razões vinculadas ao serviço militar, para o crime, têm levado, equivocadamente, a jurisprudência minoritária dos Tribunais Superiores a descaracterizar o crime militar.[10]
Para demonstrar o equívoco desse entendimento, é preciso primeiro analisar a técnica adotada pelo legislador para a caracterização do crime militar, a qual depende do binômio da tipicidade direta e da tipicidade indireta[11]. Assim, pela primeira, encontramos a figura típica na Parte Especial do CPM, ou hoje, nos crimes militares por extensão (Lei 13.491/17), na Parte Especial da legislação penal comum. Mas só isso não basta, em especial nos delitos que também são previstos fora do CPM, de forma que haverá necessidade do complemento da tipicidade indireta, esta encontrada numa das hipóteses do inciso II do art. 9º do CPM.
Logo, só tem sentido se aferir os motivos do crime militar ou as razões que vinculam a conduta do agente na figura típica, prevista na Parte Especial do CPM, e não nas hipóteses de tipicidade indireta ou complementar, prevista na Parte Geral do CPM (art. 9º, incisos II e III). Aliás, importante dizer que, se não houver subsunção da tipicidade indireta no artigo 9º, inciso II, do CPM, que trata de hipóteses objetivas, o crime deixa de ser militar, por exclusão, para se caracterizar um crime comum. Assim, quando um militar de folga pratica um crime de homicídio doloso contra um civil, este crime será comum, vez que não encontra subsunção na tipicidade indireta ou complementar do CPM, muito embora encontre tipicidade direta (art. 205 do CPM).
Note-se que toda jurisprudência do TJM/SP reconhece, pacificamente, que o crime de homicídio doloso contra civil, praticado pelo militar de serviço, é um crime militar, a partir do precedente da ADI 001/10 – Rel. Juiz Paulo Adib Casseb – J. 03.12.10, pois, primeiro tem tipicidade direta no Códex Penal Militar e está previsto em seu artigo 205, e em segundo lugar, encontra fundamento na tipicidade indireta do art. 9º, inciso II, alínea “c”, do CPM, não devendo se confundir a natureza do crime com a competência para processo e julgamento (art. 125, § 4º, da CF). Assim, independe o motivo para caracterização do crime militar. De igual modo, se o delito for inter milites (art. 9º, inciso II, alínea “a”, do CPM), o crime de homicídio doloso será militar, e não comum (muito embora este esteja definido no CP, no art. 121, da mesma forma que o previsto no CPM, no seu art. 205).
A independência dos motivos para caracterização do crime militar impróprio foi bem examinada pelo STF no HC nº 80.249/PE – Rel. Min. Celso de Mello – J. 31.10.00, ficando pacificado que na hipótese do art. 9º, inciso II, alínea “a”, do CPM, o que confere a natureza castrense ao fato delituoso é a condição do sujeito ativo e do sujeito passivo serem militares da ativa, sendo irrelevante o meio pelo qual se cometeu o delito. Nesse julgado houve citação de precedentes da Suprema Corte sobre o conceito de crime militar, tais como o julgado que foi relator o Min. Rafael Mayer (RTJ 115/1095, 1097) que assentou que: “Aqui a lei considerou como razão específica para submeter à jurisdição penal, pela configuração de crime e pela subsequente submissão à justiça especializada, a condição de militar, tanto do sujeito ativo como do sujeito passivo, independentemente dos motivos ou do lugar da prática do delito”, e de igual modo, assim, decidido no julgado em que foi relator o Min. Thompson Flores (RTJ 64/315).
Nesse passo, comecemos por afirmar que a motivação[12] do crime ou os motivos[13] que o desencadeiam são decisivos para se determinar se uma conduta foi dolosa ou culposa, se foi intencional ou não, distinguindo a capitulação de um fato típico de outro, podendo agravar o crime, ou até mesmo definir a sua natureza se o crime é político ou, não o sendo, se integrante de outra categoria de crime: comum, de responsabilidade, eleitoral, militar, e, em todos os casos, por consequência, definindo a competência do Órgão do Poder Judiciário que irá conhecer do fato. Logo, os motivos só caracterizam o crime político, e não o comum, militar ou eleitoral.
Conforme leciona Cezar Roberto Bitencourt, “pertencem também ao tipo subjetivo os motivos de agir, embora, como afirmava Maurach, nem sempre seja clara a diferença entre motivos e intenções: o motivo impulsiona, a intenção atrai. A verdade é que os motivos têm caracteres anímicos e impulsionam as realizações de condutas, como, por exemplo, motivo torpe, motivo fútil, motivo nobre, relevante valor social ou moral etc.. Os motivos constituem a fonte motriz da vontade criminosa. Como afirmava Pedro Vergara, ‘os motivos determinantes da ação constituem toda a soma dos fatores que integram a personalidade humana e são suscitados por uma representação cuja ideomotricidade tem o poder de fazer convergir, para uma só direção, todas as nossas forças psíquicas.”[14]
Portanto, é imprescindível se aferir os motivos do crime, o elemento subjetivo do tipo para não só definir o crime, mas igualmente para aferir a culpabilidade do agente.
Como já sustentamos outrora, o motivo do crime não é fator de descaracterização do crime militar para tornar o fato típico um crime comum.[15]
Corroborando esse raciocínio, vamos verificar, em abundância, que nas figuras penais previstas na Parte Especial do CPM (tipicidade direta), o motivo particular não desnatura o crime militar, mas, pelo contrário, é ínsito à própria definição do crime. Nessa linha, por exemplo, vemos que: No crime de homicídio doloso simples (art. 205 do CPM), o motivo de ordem particular não desnatura o crime militar, se por exemplo, o agente do crime, sendo um militar da ativa, tira a vida de outro militar, também da ativa, por motivo de vingança, de dívida, de ciúmes etc., vez que, como se disse, o crime independe do motivo, mas se caracterizados os motivos indicados, o crime será qualificado por motivo fútil, por motivo torpe etc. (art. 205, § 2º, inciso I ou II, do CPM), tudo com fundamento no delito inter milites do art. 9º, inciso II, alínea “a”, do CPM (tipicidade indireta).
Nos crimes de lesões corporais dolosas (art. 209 do CPM), independentemente do motivo, se estas forem praticadas, nas condições previstas no art. 9º, inciso II, do CPM, entre militares da ativa (alínea “a”), ou no interior do quartel, contra civil ou contra militar inativo (alínea “b), ou durante o serviço contra civil ou contra militar inativo (alínea “c”), o crime será militar, e não comum.
Nos crimes patrimoniais, a res pode ser particular ou pública. Assim, no furto simples, se um militar subtrai o celular de seu colega de farda, na caserna ou fora dela, ambos da ativa, responderá por crime militar, vez que a conduta configura crime (art. 240, caput, do CPM) e essa conduta tem fundamento na tipicidade complementar do crime inter milites (art. 9º, inciso II, alínea “a”, do CPM). Igualmente, se o militar subtrai coisa da Fazenda Nacional responderá pelo crime de furto qualificado (art. 240, § 5º), combinado com o art. 9º, inciso II, alínea “e”, do CPM. No estelionato (art. 251), a vantagem ilícita obtida pelo agente contra o patrimônio da vítima, será sempre por motivo particular, e sempre será crime militar como expressa o CPM no § 2º do art. 251 do CPM. No crime de dano (art. 259), este pode ser praticado contra o patrimônio particular, de outro militar ou de um civil, ou contra o patrimônio do Estado (parágrafo único do art. 259), e se for praticado, numa das duas hipóteses, por motivo egoístico, o crime será qualificado (art. 261, inciso III).
Analisando os crimes sexuais no CPM, verificaremos, por exemplo, que o estupro (art. 232), o atentado violento ao pudor (art. 233) são motivados sempre pela intenção particular e pessoal do agente, daí presente o motivo particular.
Nos crimes contra a Administração Militar, verificamos se, por exemplo, ocorrer uma concussão (art. 305 do CPM), ou uma corrupção passiva (art. 308 do CPM), a vantagem indevida exigida ou recebida da vítima, tem conotação exclusivamente particular movida por parte do agente que, extrapolando seus deveres funcionais, se locupleta em detrimento do patrimônio espúrio visado.
No crime de desacato contra superior (art. 298 do CPM), combinando a tipicidade direta e indireta, com base nas hipóteses do art. 9º, inciso III, do CPM, o crime ocorre até mesmo quando praticado por militar inativo, mesmo fora do quartel (STJ – 5ª T. – AgRg no REsp 1687681/SP – Rel. Min. Jorge Mussi – J. 23.06.18).
No crime de deserção (art. 187 do CPM), por exemplo, o Superior Tribunal Militar (STM), já sumulou a matéria no sentido de que “Não constituem excludentes de culpabilidade, nos crimes de deserção e insubmissão, alegações de ordem particular ou familiar desacompanhadas de provas."
De igual modo, descabido para descaracterização do crime militar se condicionar que o tipo penal, previsto na Parte Especial do CPM, como por exemplo o homicídio doloso, ocorra quando o motivo seja vingança particular.[16] Nesse sentido, basta apenas, para configuração do crime militar, o fato de os militares serem do serviço ativo: STJ: HC 10.075/RJ – Rel. Min. Jorge Scartezzini – J. 19.08.99; CC 1.982/SP – Rel. Min. Jesus Costa Lima – J. 05.09.01; CC 31.977/RS – Rel. Min. Felix Ficher – J. 18.02.02; CC 35.670/SP – Rel. Min. Hamilton Carvalhido – J. 11.09.02; CC 85.607/SP – Rel. Min. Og Fernandes – J. 27.08.08; CC 96.330/SP – Rel. Min. Arnaldo Esteves de Lima – J. 22.04.09). Assim, o motivo particular, por si só, não desnatura o crime militar de homicídio inter milites ainda que os militares estejam de folga, como bem decidiu o STJ (CC. 35.670/SP).[17]
Essa realidade, de encontrarmos em abundância a presença do motivo particular, sem desnaturar o crime militar, aumentou e muito, agora, com o advento da Lei 13.491/17, a qual criou uma nova categoria de crime militar que denominamos “crimes militares por extensão”. Assim, por exemplo, no crime de abuso de autoridade (por exemplo, uma prisão ilegal), no crime porte ilegal de arma (Lei 10.826/03 do Estatuto do Desarmamento), no crime de tortura (Lei 9.455/97), na associação criminosa (art. 288 do CP) etc., o motivo particular, que moveu o militar na prática de uma daquelas condutas, extrapolando o seu dever funcional, quando de serviço, não desnatura o crime militar por extensão, como sabido!
Demonstrado, assim, o equívoco que julgados da jurisprudência minoritária dos Tribunais praticam ao desnaturar o crime militar por condicionarem, contra legem, o motivo particular para tanto[18], ferindo, gritantemente, a técnica adotada pelo legislador no Código Penal Militar e inadequadamente acrescentando aquele plus nas hipóteses de tipicidade indireta ou complementar (art. 9º, inciso II, do CPM), é de se criticar tal proceder, pois, contra legem, olvidando, em consequência, a verificação da figura típica na Parte Especial do CPM, e agora, da legislação penal comum (Lei 13.491/17), as quais contemplam sim o motivo particular e razões não vinculadas ao serviço militar para caracterização do crime militar.
Nessa linha, aliás, já decidiu o STF que “(...) 1. Considera-se crime militar o doloso contra a vida, praticado por militar em situação de atividade, contra militar, na mesma situação, ainda que fora do recinto da administração militar, mesmo por razões estranhas ao serviço. (...)” (STF - Pleno – CC 7071/RJ – Rel. Min. Sidney Sanches – J. 05.09.02), inclusive por motivos particulares na residência da vítima e fora de zona militar, mesmo estando fora de serviço (STF - Pleno – RE 122706/RJ – Min. p/ Acórdão: Min. Carlos Velloso – J. 21.11.90). Também decidiu a Suprema Corte que no crime militar impróprio de calúnia veiculado pela imprensa, entre militares em atividade, a infração será militar, “sendo irrelevante o meio pelo qual se cometeu tal ilícito (...)” (STF – 2ª T. – HC 80249/PE – Rel. Min. Celso de Mello – J. 31.10.00). Daí porque decidiu o STF que na competência da Justiça Militar versus comum, “a competência prevista na alínea “a” do inciso II do artigo 9º do Código Penal Militar pressupõe crime praticado por militar contra militar em situação de atividade militar ou assemelhada” (STF – 1ª T. – HC 118.708/MS – Rel. Min. Marco Aurélio – J. 24.10.17). Da mesma forma, no crime de injúria entre militares no quartel, “2. Em se tratando de supostas agressões verbais perpetradas pelo paciente contra vítima, ambos na condição de militar, em local sujeito à administração militar, há ofensa aos valores militares da ordem e da disciplina, interesses tutelados pelas Forças Armadas. (...)” (STF – 2ª T. – HC 135956/RS – Rel. Min. Teori Zavascki – J. 26.10.16)
Desse modo, demonstrado que por critérios legais e objetivos, previstos no Código Penal Militar, não deveriam ser desnaturados os crimes militares, mas o equívoco ocorre quando se despreza o balizamento cogente do CPM, para se inserir, contra legem, a exigência de motivação do crime quando isso é incabível. Pior, para promover a descaracterização do crime militar, insere-se, indevidamente, nas circunstâncias objetivas da lei a exigência do motivo particular e estranho as atividades militares. Para evitar o equívoco, ante a segurança jurídica exigível em nosso ordenamento, deve-se observância à tipicidade direta mais a tipicidade indireta, exigida pelo CPM, como bem decidiu o Superior Tribunal de Justiça, in verbis:
STJ: “AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ROUBO CIRCUNSTANCIADO. FURTO. FORMAÇÃO DE QUADRILHA ARMADA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA CASTRENSE. CRIME QUE NÃO SE QUALIFICA QUER COMO MILITAR PRÓPRIO, QUER COMO MILITAR IMPRÓPRIO. DENUNCIADO QUE EXERCE O CARGO DE POLICIAL MILITAR. IRRELEVÂNCIA. NULIDADE NÃO CARACTERIZADA.
1. A competência da Justiça Militar não é firmada em razão de o crime haver sido praticado por militar, mas sim em função da natureza da infração, que deve se qualificar como militar própria ou imprópria, nos termos do artigo 124 da Constituição Federal e do artigo 9º do Código Penal Militar.
2. O simples fato de o acusado integrar a Polícia Militar não atrai a competência da Justiça Castrense para processá-lo e julgá-lo, pois, nos termos do inciso II do artigo 9º do Código Penal Militar, exige-se que o delito seja praticado em alguma das circunstâncias nele descritas, o que não correu na espécie, em que o réu não se encontrava em serviço nas datas dos fatos, ainda que tenha utilizado de instrumento de rádio pertencente à polícia militar para facilitar a empreitada criminosa, não tendo ocorrido qualquer ofensa ao patrimônio da instituição. (...)” (STJ – 5ª T. - AgRg no AREsp 1111512/MG – Rel. Min. Jorge Mussi – J. 11.12.18)
Momento de reconhecimento do motivo do crime. Para que não se incorra em equívoco evidente, é de se ter em conta que, como se demonstrou, a configuração do crime militar não exige motivação, diferentemente do crime político. Logo, independentemente do motivo, seja no crime militar próprio, militar impróprio ou militar por extensão, o crime será sempre militar, desde que observado, além do tipo penal previsto, a sua subsunção numa das hipóteses do artigo 9º do Código Penal Militar.
Os motivos do crime, como sabido, não são determinantes e nem caracterizadores do crime comum e nem do crime militar, pois, do contrário, seriam circunstâncias elementares do tipo (essentialia) que o explicitará, como ocorre, por exemplo com o crime de prevaricação (sentimento ou interesse pessoal: no CP e no CPM, ambos no art. 319). Assim, afora poucas exceções, os motivos são circunstâncias do crime, tanto no crime comum como no crime militar, devendo, pois serem levados em conta quando da aferição da culpabilidade e da aplicação da pena. Bem por isso, expressamente os motivos vêm previstos no art. 59 do CP (motivos) e no art. 69 do CPM (motivos determinantes). Assim, se determinado motivo for de relevante valor moral ou social, o crime será privilegiado, ou ser for fútil ou torpe, então qualificarão o tipo penal, como por exemplo ocorre no homicídio doloso (art. 205, §§ 1º e 2º, inciso II, do CPM); ou serão configurarão circunstância agravante (art. 70, inciso II, alínea “a”, do CPM) ou circunstância atenuante (art. 72, inc. III, alínea “a”, do CPM). Logo, não desnaturam o crime militar.
Descabido, como se demonstrou, sopesar os motivos para a descaracterização do crime militar, transformando-o em crime comum, vez que aqueles só devem ser considerados na aplicação da penal. Daí a regra hermenêutica que diz: “onde a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir” (“ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus”) (STJ: HC 398.587/RS – Rel. Minª. Maria Thereza de Assis Moura – J. 8.02.18), sob pena de ser desvirtuada a Lei.
Daí a lição de Fernando de Almeida Pedroso[19] no sentido de que “a definição em lei dos crimes dá origem ao tipo (o tatbestand do Direito alemão ou a fattispecie do Direito italiano), que é a fórmula descritiva dos fatos proibidos implicitamente de serem realizados e que lhes seve de fôrma ou molde abstrato. A tipicidade de um fato, destarte, se realiza com fulcro nos elementos descritivos de sua contemplação legal, posto deem eles existência e corpo ao crime. Tais elementos, chamados de circunstâncias elementares ou constitutivas (essentialia), formam o preceito primário do tipo, nele estando inseridos. (...) Todavia, ao contrário do que sucede com as circunstâncias elementares ou constitutivas do tipo (que são necessárias e imprescindíveis para a própria tipicidade do fato), podem ainda ocorrer circunstâncias acidentais, Estas nada influem para o efeito de tipicidade e alteram, unicamente, a sanctio juris cominada ao delito. (destaquei)
Em consequência, os motivos do crime – tanto no CP (art. 59) como no CPM (art. 69), não são determinantes para sua tipicidade (salvo nos crimes políticos), mas são sim circunstâncias judiciais, ou podem ser agravantes ou atenuantes, ou qualificadoras, dependendo do tipo penal. Desse modo, citando novamente Fernando de Almeida Pedroso, os motivos devem ser considerados na aplicação da pena, exasperando-a, aumentando-a ou diminuindo-a, e constituem circunstâncias acidentais subjetivas[20], que não se confundem com as circunstâncias elementares ao tipo penal.
Em síntese, corroborando o que foi dito, Fernando Capez[21], também classificando os motivos do crime como circunstância subjetiva, distingue elementar de circunstância, lecionando que: “Elementar: é todo componente essencial da figura típica, sem o qual esta desaparece (atipicidade absoluta) ou se transforma (atipicidade relativa). Encontra-se sempre no chamado tipo fundamental ou no tipo básico, que é o caput do tipo incriminador”, enquanto “Circunstância: é todo dado secundário e eventual agregado à figura típica, cuja ausência não influi de forma alguma sobre a sua existência. Tem a função de agravar ou abrandar a sanção penal e situa-se nos parágrafos.”
4. Conclusão
A distinção de crime comum e crime militar encontra solução bem definida no ordenamento jurídico, isto diante dos critérios objetivos estabelecidos pelo Código Penal Militar e que, muitas das vezes, tem sido olvidados em julgados dos Tribunais Superiores, contrariamente à aplicação da lei pela Justiça Especializada castrense.
No estágio em que se encontra o Direito Penal, inserido no Estado Democrático de Direito, onde prestigiados os princípios da legalidade, segurança jurídica e do devido processo legal, incabível a confusão realizada, em jurisprudência dissonante da lei, sobre o reconhecimento do que seja crime militar, está explicada tão somente pelo fato da aplicação da lei se afastar, por completo, dos termos expressos do Código Penal Militar, que exige para perfeita qualificação daquele o preenchimento do binômio da tipicidade direta e indireta.
Desse modo, o crime militar, para sua caracterização independe dos motivos particulares do crime ou de sua existência ser estranha a atividade militar, pois aquele se perfaz não em razão de ter sido praticado por militar, mas sim em função da natureza da infração, que se deve qualificar como militar própria ou militar imprópria, ou como militar por extensão, de acordo com a Constituição Federal (art. 124 e art. 125, § 4º), desde que o tipo penal esteja ocorra numa das hipóteses do artigo 9º do Código Penal Militar.
Os motivos do crime não determinam a configuração do crime comum para distingui-los do crime militar, pois são circunstâncias acidentais subjetivas levadas em consideração na aplicação da pena. Logo, quando o crime militar não se caracterizar, pelos critérios objetivos da Lei, previstos no artigo 9º do Código Penal Militar, então, é seguro se concluir que houve crime comum, conforme a acertada jurisprudência indicada.
Equivocados os julgados que, contra legem, desnaturam o crime militar porque o agente agiu movido por motivos particulares, pessoais, e sem conexão com a atividade castrense, vez que, basta para a configuração do crime militar impróprio o preenchimento do binômio tipicidade direta mais a tipicidade indireta, não exigindo a lei qualquer motivação, até porque esta é o critério de definição de crimes políticos.
Assim, para se evitar a insegurança jurídica, não se deve se olvidar dos termos da lei, e, in casu, a qualificação do crime militar no Brasil é aquela chancelada pela Constituição Federal à definição existente no Código Penal Militar, pelo critério ex-vi legis.
NOTAS
[1] CRETELLA JR. José. Comentários à Constituição de 1988, Vol. VI. Rio de Janeiro: Forense universitária, 1993, p.3176.
[2] CRETELLA JR. José. Ib idem.
[3] CRETELLA JR. José. op. cit., pp. 3260/3264
[4] ROMEIRO. Jorge Alberto. Curso de Direito Penal Militar – Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 66.
[5] ASSIS, Jorge Cesar. Código Penal Militar Comentado. 5ª ed., Curitiba: Juruá, 2004, p. 38.
[6] ROTH, Ronaldo João. Lei 13.491/17 – Os crimes militares por extensão e o princípio da especialidade. Brasília: Revista de Doutrina e Jurisprudência do STM, Vol. 27, julho/dezembro de 2017, p. 14. Disponível na página da Escola Judiciária Militar: http://www.tjmsp.jus.br/escola/ead.html
[7] LAFER, Celso. Incerteza Jurídica. São Paulo: Jornal “O Estado de São Paulo”, de 18.03.18, p. A2 e disponível: <http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,incerteza-juridica,70002231774>.
[8] ROTH, Ronaldo João. A inexistência de motivação para a caracterização do crime militar – um estudo da jurisprudência. São Paulo: TJM/SP – Coletânea de Estudos de Direito Militar: doutrina e jurisprudência, Coordenado por Orlando Eduardo Geraldi e Ronaldo João Roth, 2012, pp. 184/188.
[9] ROTH, Ronaldo João. A inexistência de motivação para a caracterização do crime militar – um estudo da jurisprudência. op. cit., p. 188.
[10] ROTH, Ronaldo João. A inexistência de motivação para a caracterização do crime militar – um estudo da jurisprudência. op. cit., p. 181/182.
[11] NEVES, Cícero Robson Coimbra. Artigo 9º do CPM: Uma nova proposta de interpretação, Revista “Direito Militar”, AMAJME, Florianópolis, 2010, nº 85, págs. 5/8.
[12] Segundo DE PLÁCIDO E SILVA, motivação é a "Justificação ou alegação em que se procura dar as razões por que se fez ou se determinou a feitura de qualquer coisa. É a apresentação dos motivos, que determinam a medida, que provocaram a solução, ou que possam justificar a pretensão." (Vocabulário Jurídico, Forense, Rio de Janeiro, 2008, pág. 934).
[13] Segundo o mesmo autor, mesma Obra e página, motivo, "quer exprimir tudo que determina o movimento. É, assim que também se toma a palavra móvel, como determinadora do movimento ou da motibilidade de alguma coisa, em sentido idêntico a motivo. Motivo, pois, quer significar a causa, a origem, o princípio das próprias coisas e sua razão de ser. (...)."
[14] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2008, pág. 275.
[15] ROTH, Ronaldo João. Crime militar versus Crime Comum: identificação e conflito aparente de normas. In “Direito Militar – Doutrina e Aplicações”, Coordenado por Dircêo Torrecillas Ramos, Ronaldo João Roth e Ilton Garcia da Costa, Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, págs. 503/520.
[16] STJ: “Habeas Corpus. Processual Penal. Homicídio qualificado cometido por militar da ativa contra outro militar do corpo de bombeiros militar da ativa, ambos fora do exercício de suas funções. Motivo do crime relacionado à vingança particular. Competência da Justiça Comum. (...)” (STJ – 5ª T. – HC 163.752/RJ – Rel. Min. Laurita Vaz – J. 9.08.11).
[17] CONJUR: Conflito resolvido: Justiça Militar julga PM acusado de homicídio, de 25.09.02, capturado em 07.04.19, no endereço eletrônico: https://www.conjur.com.br/2002-set-25/stj_justica_militar_julga_pm_acusado_homicidio
[18] STF: “Processual militar. Habeas Corpus. Homicídio praticado contra cônjuge por motivos alheios às funções militares, fora de situação de atividade e de local sujeito à administração militar. Crime militar descaracterizado. (...)” (STF – 1ª T. – HC nº 103.812/SP – Rel. do acórdão Min. Luiz Fux – J. 29.11.11).
[19] PEDROSO, Fernando de Almeida. Direito Penal – Parte Geral: Doutrina e jurisprudência. São Paulo: Método, Vol. 1, 2008, p. 254.
[20] PEDROSO, Fernando de Almeida, op. cit. p. 260: “São subjetivas todas aquelas que disserem respeito aos motivos, porque inerentes à ideia pessoal e sentimento íntimo do agente (motivo de relevante valor moral ou social, motivo fútil ou torpe ....).”
[21] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Parte Geral. São Paulo: Saraiva, Vol. 1, 2016, p. 474.
O artigo foi originariamente publicado na Revista Direito Militar – AMAJME – 2019, nº 134, pp. 5/11.
Ronaldo João Roth é Juiz de Direito da Justiça Militar do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Coordenador e Professor do Curso de Pós-Graduação de Direito Militar pela Escola Paulista de Direito (EPD) e Professor de Direito Penal da Academia de Polícia Militar do Barro Branco (APMBB)