1 Introdução
O cenário do Direito Militar foi recentemente inovado pela Lei n. 13.491, de 16 de outubro de 2017, que o fez por dois eixos: ampliação do conceito de crime militar e pormenorização da competência para processar e julgar o crime militar doloso contra a vida de civil.
Interessa ao estudo proposto, o primeiro eixo, ou seja, a ampliação no conceito de crime militar em tempo de paz, podendo-se, agora, concluir pela prática de um crime militar ainda que não haja no Código Penal Militar (CPM) tipo penal incriminador para a conduta analisada, isso com lastro em tipos penais previstos na legislação penal comum e em algumas circunstâncias trazidas pelas alíneas dos incisos II e III do art. 9º do Código Penal Castrense.
Ocorre que não apenas as disposições afetas aos tipos penais incriminadores merecem detida análise, mas também os dispositivos trazidos pela Parte Geral dos Códigos Penais, mostrando-se necessário averiguar se nesses novos crimes militares serão aplicados dispositivos do Código Penal comum ou do Código Penal Militar.
É exatamente nessa investigação que se pretende incursionar, com a proposta de algumas soluções para questões pontuais que podem ser enfrentadas, mas sem a pretensão de esgotar o assunto e sim de estimular o debate.
2 Os eixos da nova lei
Como acima indicado, há dois eixos disciplinados pela nova Lei ao alterar o artigo 9º do Decreto-lei n. 1.001, de 21 de outubro de 1969, o Código Penal Militar (CPM), a saber, a redefinição de crime militar, conceito agora mais abrangente, e a pormenorização da competência nos crimes militares dolosos contra a vida de civis.
Será esmiuçado apenas o primeiro eixo, que interessa ao estudo em curso. Nele está a alteração do inciso II do art. 9º do CPM, que passou a considerar crimes militares não só os previstos neste mesmo Código Castrense, mas também os da legislação penal, nas hipóteses trazidas pelas alíneas do inciso, com reflexo no inciso III.
O rol dos crimes militares, em outros termos, foi expandido, o que se nota facilmente com a comparação do texto anterior e posterior à Lei n. 13.491/17:
REDAÇÃO ANTERIOR
II - os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados:
REDAÇÃO ATUAL
II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados:
Na redação anterior, para que o crime fosse considerado militar pelo inciso II, a premissa era a de que o fato deveria estar tipificado no CPM e na legislação penal comum de maneira idêntica. Preenchida essa premissa, o próximo passo na constatação do crime militar era verificar se uma das hipóteses do inciso II estava presente, ou seja, a prática do fato por militar em situação de atividade contra militar na mesma situação (alínea “a” do inciso II), por militar em situação de atividade contra civil, militar reformado ou da reserva, em lugar sob administração militar (alínea “b” do inciso II), por militar em serviço ou atuando em razão da função contra civil, militar reformado ou da reserva (alínea “c” do inciso II), por militar em período de manobra ou exercício contra civil, militar reformado ou da reserva (alínea “d” do inciso II) ou por militar em situação de atividade contra a ordem administrativa militar ou contra o patrimônio sob administração militar (alínea “e” do inciso II). O exemplo claro é o do homicídio simples, tipificado identicamente no art. 121 do Código Penal (CP) e no art. 205 do CPM, que praticado por um militar da ativa contra um militar da reserva, em lugar sujeito à administração militar era considerado crime militar.
Com a nova disposição, os crimes militares tipificados de maneira idêntica no CPM e na legislação penal comum seguem a mesma lógica de antes, mas houve o acréscimo dos tipos penais constantes da legislação penal comum que não possuem idêntica previsão no CPM, os quais, hoje, se enquadrados em uma das alíneas do inciso II do art. 9º do Código Castrense, as mesmas acima enumeradas, serão, em regra, crimes militares. Tratam-se de novos crimes militares, denominados pela doutrina de crimes militares extravagantes (NEVES, 2017), crimes militares por equiparação à legislação penal comum (PEREIRA, 2017) ou crimes militares por extensão (ASSIS, 2018, p. 39). Esses novos crimes militares devem ser considerados, também, crimes impropriamente militares, para os fins que assimilam essa categoria, a exemplo do disposto na parte final do inciso LXI do art. 5º da CF e do inciso II do art. 64 do CP, isso com a adoção da teoria clássica, malgrado posição doutrinária em sentido diverso (ASSIS, 2018, p. 38).
A título de exemplo, o crime de aborto provocado por terceiro, previsto no art. 125 do CP, sem correlato no CPM, quando praticado por um militar da ativa contra uma gestante, também militar da ativa, será, em tese, crime militar (um crime militar extravagante), nos termos do disposto na alínea “a” do inciso II do art. 9º do Código Castrense.
A alteração no inciso II, ademais, conduz a uma alteração reflexa do inciso III do art. 9º do CPM, já que este, na definição das hipóteses em que inativos e civis (na órbita da Justiça Militar da União) praticam crimes militares, considera como tais tanto os crimes do inciso I como do inciso II do mesmo artigo. Portanto, ampliando-se o inciso II, amplia-se também o inciso III.
Diante dessa nova realidade, a indagação central que se deve responder é se, em consequência, os tipos penais incriminadores previstos apenas na legislação penal comum, ao serem assimilados pelo Direito Penal Militar, trazem, a reboque, os dispositivos da Parte Geral do CP ou será correta a aplicação da Parte Geral do CPM.
3 Estabelecendo uma regra: art. 12 do Código Penal
Na abordagem sobre a aplicação da Parte Geral, deve-se estabelecer uma premissa, cunhada à luz do que dispõe o art. 12 do CP, segundo o qual as “regras gerais deste Código aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso”.
É dizer, por outras letras, que qualquer lei brasileira que possua tipos penais incriminadores deverá ter por aplicação a Parte Geral do CP, salvo se esta própria lei dispuser de maneira diversa.
Como exemplo dessa possibilidade, tome-se o conceito de reincidência para os crimes ambientais. O art. 63 do CP define o reincidente como aquele que “comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior”, tendo-se ainda em conta o período depurador e excluindo-se os crimes políticos e propriamente militares (art. 64 do CP), idealizando um conceito genérico de reincidência. Este conceito se espraia para toda a legislação penal especial, salvo se houver disposição em sentido diverso, justamente o que ocorre com os crimes ambientais, pelo art. 15, I, da Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que considera como circunstância agravante apenas a reincidência em crimes de natureza ambiental. Esta regra, note-se, excepciona aquela, justamente como comanda o art. 12 do CP.
Pois a mesma situação ocorre em relação ao CPM, no sentido de que ao prever regras específicas da Parte Geral – inclusive, um conceito próprio de reincidência, em que, além do período depurador, excluem-se apenas os crimes anistiados – são elas aplicadas aos crimes militares, justamente em observância à regra geral do art. 12 do CP.
Dessa maneira, os dispositivos da Parte Geral do CPM devem ser aplicados, em regra, aos fatos apreciados como crimes militares, incluindo-se aí a doutrina do erro, a teoria diferenciadora do estado de necessidade, a prescrição – mais benéfica no CPM se considerado que ocorre em dois anos para os crimes em que o máximo da pena é inferior a um ano (art. 125, VII, CPM), enquanto no CP, nesses mesmos casos, a prescrição ocorrerá em três anos (art. 109, VI, CP) – etc.
Essa realidade, frise-se, não foi abalada pela Lei n. 13.491/17, porquanto não alterou outros dispositivos da Parte Geral do CPM, além do art. 9º, e nem comandou que nos crimes militares extravagantes deveria ser aplicada a Parte Geral do CP, de maneira que uma interpretação nesse sentido importaria em ir além daquilo que o legislador desejou. Ele, o legislador, apenas ampliou o rol dos crimes militares e, frise-se, o fez pela alteração do CPM, de maneira que os crimes militares extravagantes ganham a natureza de militares por força do Código Castrense, que exige a aplicação de sua Parte Geral.
Mas essa regra, óbvio, admite exceções, mormente com base na análise de princípios reitores do Direito Penal, como o da culpabilidade e da legalidade. Entretanto, essa análise, deve-se lembrar, não ocorre apenas após o advento da Lei n. 13.491/17, mas a antecede.
Tomem-se os exemplos do crime continuado e do erro de direito.
No caso do crime continuado no CPM (art. 80), sabe-se que, por aplicação do art. 79, há a regra do cúmulo material como uma das possibilidades para a fixação da pena. Assim, tomando um exemplo, se um Policial Militar desejar injuriar uma mulher (art. 216 do CPM), também Policial Militar, e decidir mandar-lhe cartas ofensivas, num total de sessenta cartas, considerando a pena máxima de seis meses de detenção para cada crime, poderia haver a condenação a trinta anos, mas com a aplicação do limite do art. 58 do CPM, a condenação chegaria à pena de dez anos de detenção. Embora o § 1 do art. 81 permita uma redução facultativa da pena, a regra do Código Castrense é considerada extremamente severa, o que leva à possibilidade de aplicação do dispositivo afeto ao crime continuado do art. 71 do CP[1], malgrado entendimento contrário já esposado pelo Supremo Tribunal Federal[2].
Certamente, a opção pela aplicação da regra do CP, em detrimento daquela fixada no CPM, tem como argumento principal o princípio da culpabilidade, em uma de suas acepções atrelada à medida de pena aplicável ao caso concreto, levando, para alguns, à inconstitucionalidade da regra mais severa, sem pressuposto lógico para tanto, não consentânea com o Estado Democrático de Direito.
No outro exemplo, o erro de direito também se mostra em descompasso com o princípio da culpabilidade, conforme já se sustentou anteriormente (NEVES, 2003), mas agora em sua acepção atrelada à vedação à responsabilidade penal objetiva.
Pelo art. 35 do CPM, a “pena pode ser atenuada ou substituída por outra menos grave quando o agente, salvo em se tratando de crime que atente contra o dever militar, supõe lícito o fato, por ignorância ou erro de interpretação da lei, se escusáveis”.
Embora não idêntico, o parâmetro de comparação no CP é o erro sobre a ilicitude do fato, trazido pelo art. 21, segundo o qual, embora o desconhecimento da lei seja inescusável, o “erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço”.
A disparidade de tratamento é nítida, bastando dizer que a não consciência da ilicitude inevitável no CP permite a isenção de pena, enquanto no CPM, admite-se apenas uma mitigação da culpabilidade, com a aplicação de uma pena mais branda ou a atenuação, em evidente resquício de responsabilidade penal objetiva, onde uma conduta não acompanhada de dolo – tenha-se em mente que pela influência do neokantismo o CPM adotou o dolo normativo (dolus malus) que condensa a atual consciência da ilicitude como um de seus elementos – ou de culpa – frise-se que mesmo sendo inevitável a falta de consciência haverá a condenação – poderá sofrer apenamento. Por essa razão, no caso concreto, melhor assimilar no Direito Castrense a previsão do art. 21 do CP.
Pois bem, nos dois casos exemplificados as regras da Parte Geral do CPM dão lugar às regras da Parte Geral do CP, mas em situações muito particulares, em que a norma castrense ofende princípios reitores do Direito Penal, especialmente aqueles limitadores do jus puniendi. Mas essa análise, repita-se, já era possível antes da Lei n. 13.491/17, nos crimes militares previstos no Código Penal Militar, não havendo razão para negar essa possibilidade também nos crimes extravagantes.
4 Casos pontuais ulteriores à lei n. 13.491/17 e os princípios da legalidade e da culpabilidade
Estabelecida uma regra geral – aplicação da Parte Geral do CPM aos crimes extravagantes –, com a possibilidade de exceções – aplicação de normas de Parte Geral do CP em casos em que a norma castrense afronte princípios reitores do Direito Penal –, urge tornear os dois casos pontuais que mais causam discussão, a questão da ação penal militar e a aplicação de penas outras, não previstas no art. 55 do CPM.
Antes, porém, mostra-se necessário relembrar os postulados dos princípios da legalidade e da culpabilidade.
4.1. Princípio da legalidade (nullum crimen, nulla poena sine praevia lege)
Muitos entendem este princípio como sinônimo do princípio da reserva legal. Outros já entendem este contendo aquele, sendo acompanhado pela irretroatividade da lei penal. Melhor explicando, para muitos, reserva legal se confunde com legalidade; para outros tantos, a reserva legal é um princípio maior, composto pela legalidade e pela irretroatividade.
Tomem-se, inicialmente, as lições de Bitencourt (2002, p. 10), que afirma que o “princípio da legalidade ou da reserva legal constitui uma verdadeira limitação do poder punitivo estatal”, consagrado por Feuerbach, no início do século XIX, pela fórmula latina nullum crimen, nulla poena sine lege. Nitidamente, para o autor, a distinção entre legalidade e irretroatividade é desnecessária, ambos condensados no disposto no inciso XXXIX do art. 5º da Constituição Federal (CF), com transcrição no art. 1º do CPM.
A origem desse princípio, no entanto, é muito anterior a Feuerbach. Em impagável evolução histórica, embora aponte o dissenso sobre a questão, André Vinicius de Almeida (2005, p. 23) consigna que o princípio em estudo “teve origem iluminista, recebendo formulação em sua inteireza pelas palavras de John Locke (Segundo Tratado sobre o Governo Civil) e, sobretudo, de Cesare Bonessana, o Marquês de Beccaria (Dos delitos e das Penas)”, e ainda que tal princípio restou positivado em vários diplomas legais, a exemplo do Bill of Rights, da Constituição americana, e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Prefere-se, no entanto, seguir Luiz Luisi (2003, p. 17-30), para quem o princípio da legalidade, em vertente contemporânea, desdobra-se em três postulados, a saber: reserva legal, determinação taxativa e irretroatividade.
De fato, o princípio da legalidade parece merecer o deslinde apresentado, de importância indiscutível e de compreensão simples.
Inicialmente, comanda a reserva legal, ou seja, o fato de que só a lei pode comportar condutas puníveis em âmbito penal, lei aqui compreendida como vontade do legislador, representante legítimo que é do povo, para descobrir os bens jurídico-penais a serem tutelados.
Sua aplicação importa, por outro enfoque, a vedação de o Poder Executivo ou o Poder Judiciário se imiscuírem na função criminalizadora ao mesmo tempo que obsta a utilização de outros nascedouros além da lei (reserva absoluta), a exemplo dos costumes e da analogia, só admitida in bonam partem. Apenas a lei, em outras palavras, pode versar sobre matéria penal. Interessante construção traz Guilherme de Souza Nucci (2006, p. 76) ao afirmar que ao se compreender que somente a lei pode versar sobre matéria penal, nos termos do art. 22, I, da Constituição Federal – que, ressalte-se, firma a competência privativa da União, mas que pode ser delegada aos Estados-Membros por lei complementar, marcando uma característica peculiar de nossa Federação, dada sua forma de origem centrífuga –, essa possibilidade não se restringe apenas à lei ordinária, aceitando-se, também, que uma lei complementar verse sobre lei penal, como, aliás, ocorre com o art. 10 da Lei Complementar n. 105/2001, que incrimina a violação desautorizada do sigilo das operações financeiras.
Obviamente, essa reserva legal atinge também as penas, de maneira que somente a lei poderá definir qual pena é aplicável em determinado delito. Essa constatação leva à realidade de uma unicidade do tipo penal em preceito primário e secundário.
A taxatividade, ou determinação taxativa, por seu turno, exige uma técnica toda especial do legislador ao consagrar os tipos penais. Essa técnica se evidencia pela construção de tipos abstratos dotados de clareza, certeza e precisão, evitando-se, pois, expressões e palavras vagas e ambíguas.
A irretroatividade[3], por fim, é, sem dúvida, como assinala Luiz Luisi (2003, p. 26), complemento da reserva legal, porquanto exige a atualidade da lei para que possa surtir consequências. Em outras palavras, a lei penal, em regra, pode alcançar tão só fatos a ela supervenientes. Há exceções, claro, para a irretroatividade, como a retroação da lex mitior e a abolitio criminis.
Cumpre assinalar que a questão concernente ao princípio da legalidade comporta outras abordagens, conforme ensina Francisco de Assis Toledo (2000, p. 22), ao desdobrá-lo na exigência de uma lex praevia, lex scripta, lex stricta e lex certa. É de notar que a abordagem esboçada pelas lições de Luisi abarca o desdobramento de Assis Toledo, na medida em que a lex stricta e a lex certa afeiçoam-se à determinação taxativa, ao passo que a lex praevia encontra morada na irretroatividade e a lex scripta compõe a reserva legal, vedando-se o Direito costumeiro.
Obedecidos os comandos do princípio da legalidade, chega-se à noção de tipo penal. Feuerbach (2007, p. 84, tradução nossa) aduz sobre o assunto:
O conjunto de características de uma ação ou realidade factual especiais que estão contidas no conceito de uma determinada classe de ações ilegais é chamado de tipo de crime (corpus delicti). A punibilidade objetiva depende da existência do tipo de crime em geral; a aplicação de uma determinada lei penal, de um determinado caso do respectivo tipo, o que pressupõe a lei aplicável como condição de sua consequência legal[4].
A relação entre tipo e princípio da legalidade – particularmente, no postulado da reserva legal – foi muito bem torneada por Fernando Galvão (2016, p. 159):
A expressão tipo possui o significado de modelo ou de determinada forma de classificação. Em Direito Penal, pode-se entender o tipo como modelo abstrato, posto que é representação genérica de comportamento humano que se considera proibido. O tipo materializa o princípio da reserva legal, na medida em que é a expressão da lei que descreve a conduta que deve ser considerada crime.
Contudo, como acima suscitado, não é apenas a conduta proibida que deve atender aos postulados do princípio, formando a noção de tipo penal, mas também a pena cominada ao delito, aliás, como comandam a CF (art. 5º, XXXIX) e o CPM (art. 1º) ao disporem que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.
No que concerne à teoria do tipo, neste contexto, tem-se que o tipo penal é composto pelo preceito primário, que possui a descrição da conduta típica, e preceito secundário, com a definição da pena que pode ser aplicada àquele caso. Nesse sentido, dispõem Salim e Azevedo (2016, p. 32):
A lei é a única fonte imediata de conhecimento. Comumente, no entanto, usa-se o termo norma para exprimir toda categoria de princípios legais, não obstante a norma penal esteja contida na lei penal. Norma é o mandamento de uma conduta normal, advindo do sentido de justiça que possui determinado segmento social. Lei, por sua vez, é a regra escrita elaborada pelo legislador, possuindo o objetivo de positivar condutas consideradas nocivas à sociedade. Lei, portanto, é o veículo pelo qual a norma se manifesta e torna obrigatória a sua observância. Em toda lei penal incriminadora há duas partes distintas: o preceito primário (ou simplesmente preceito ou ainda preceptum juris) e o preceito secundário (ou sanção ou ainda sanctio juris). O preceito primário contém a definição da conduta criminosa; o preceito secundário contém a respectiva sanção penal.
A relação entre a conduta e a sanção correlata, advirta-se, tem por base a medida de reprovação necessária, idealizada pelo legislador quando da tipificação, pautado por elementos de política criminal. Salvo em raras exceções, essa relação deve ser respeitada, sob pena de o tipo penal perder sua integralidade e de o ator do direito penal – o juiz, principalmente – arvorar-se em um poder de alteração legislativa do qual não é mandatário.
4.2. Princípio da culpabilidade (nullum crimen sine culpa)
Outro princípio de grandeza inquestionável é o da culpabilidade, que encontra seu reconhecimento no inciso LVII do art. 5º da CF (cf. ESTEFAM e GONÇALVES, 2013, p. 117).
Um excelente ponto de partida para a pormenorização deste princípio está nas lições de Bitencourt (2002, p. 275-6), para quem o vocábulo culpabilidade apresenta-se em três acepções em Direito Penal. Assim, sobejamente, esclarece:
Em primeiro lugar, a culpabilidade – como fundamento da pena – refere-se ao fato de ser possível ou não a aplicação de uma pena ao autor de um fato típico e antijurídico, isto é, proibido pela lei penal. Para isso, exige-se a presença de uma série de requisitos – capacidade de culpabilidade, consciência da ilicitude e exigibilidade da conduta – que constituem os elementos positivos específicos do conceito dogmático de culpabilidade. A ausência de qualquer desses elementos é suficiente para impedir a aplicação de uma sanção penal.
Em segundo lugar, a culpabilidade – como elemento da determinação ou medição da pena. Nessa acepção, a culpabilidade funciona não como fundamento da pena, mas como limite desta, impedindo que a pena seja imposta aquém ou além da medida prevista pela própria ideia de culpabilidade, aliada, é claro, a outros critérios, como importância do bem jurídico, fins preventivos etc.
E, finalmente, em terceiro lugar, a culpabilidade – como conceito contrário à responsabilidade objetiva. Nessa acepção, o princípio de culpabilidade impede a atribuição de responsabilidade objetiva. Ninguém responderá por um resultado absolutamente imprevisível, se não houver obrado com dolo ou culpa.
Acerca desta última acepção, muito bem leciona André Vinicius de Almeida (2005, p. 21), firmando que em atenção aos postulados da culpabilidade, afasta-se qualquer manifestação do versari in re illicita, traduzido pelo autor como a hipótese daquele que, fazendo algo não permitido, por puro acidente causa um resultado antijurídico, sem que este possa ser considerado como causado ao menos culposamente (responsabilidade objetiva). Afasta-se igualmente a responsabilidade pelo fato de outrem. Afirma ainda que pelo aspecto apresentado, “é possível relacionar o nullum crimen sine culpa com o princípio da legalidade, pois o juízo de tipicidade que nele é fundado pressupões exatamente a verificação do dolo ou, excepcionalmente, da culpa. Inexistentes um e outro, atípico é o comportamento.
Com razão, pode-se entender a culpabilidade como ideia fulcral de crime, integrando, pois, seu conceito analítico, compondo uma estrutura tripartida, como é possível verificar no Código Penal Militar[5].
Pode-se ainda entender a culpabilidade como medida da reprimenda penal, que orienta a dosimetria da pena, inferindo uma medida retributiva justa ao delito. A propósito dessa acepção, convém lembrar o art. 69 do CPM, que expressamente comanda: “Para fixação da pena privativa de liberdade, o juiz aprecia a gravidade do crime praticado e a personalidade do réu, devendo ter em conta a intensidade do dolo ou grau da culpa, a maior ou menor extensão do dano ou perigo de dano, os meios empregados, o modo de execução, os motivos determinantes, as circunstâncias de tempo e lugar, os antecedentes do réu e sua atitude de insensibilidade, indiferença ou arrependimento após o crime” (g.n.).
Finalmente, sustenta-se a culpabilidade como vedação à responsabilidade penal objetiva, consagrando que ninguém pode sofrer reprimenda penal se não houver atuado com culpa, na acepção lata da palavra (nullun crimen sine culpa).
Neste ponto o estudo do princípio da culpabilidade tangencia o estudo do fato típico, porquanto contida neste está a análise da conduta típica, sempre provida de dolo ou culpa, na estrutura finalista, para que possa gerar responsabilidade penal. No caso de um instrumento causalista neoclássico, como o é o Código Penal Militar, a avaliação do dolo e da culpa está afeta à culpabilidade, e não ao fato típico, porém, de toda forma, não haverá, em regra, pena sem a constatação de que o agente operou com dolo ou, no mínimo, com culpa, o que encerra o princípio em estudo.
4.3. Ação penal militar nos crimes militares extravagantes
Delineados os princípios a serem utilizados como instrumentos da argumentação, deve-se focar nas duas questões mais intrigantes da nova realidade trazida pela Lei n. 13.491/17, a iniciar pela avaliação da ação penal militar nos crimes extravagantes.
Advirta-se que o estudo da ação penal militar interessa tanto ao Direito Castrense substantivo como adjetivo, porquanto, se por um lado a verve processual do estudo leva à discussão de condições da ação, por outro a definição da espécie de iniciativa na ação penal afeta a discussão da extinção da punibilidade, especialmente nos casos de decadência, perempção, renúncia do direito de queixa e perdão aceito, nos crimes de ação privada, causas previstas no art. 107 do CP e ausentes no art. 123 do CPM.
A propósito, parta-se dessa distinção, ou seja, a constatação de que não são causas extintivas da punibilidade no Direito Castrense a decadência, perempção, renúncia do direito de queixa e pelo perdão aceito, nos crimes de ação privada. Isso se deve exatamente à definição do legislador penal militar da regra de que a ação penal militar é de iniciativa pública incondicionada.
Em outras palavras, a premissa de raciocínio é a de que no Direito Castrense há a regra da ação penal de iniciativa pública incondicionada, havendo as exceções da ação penal privada subsidiária, por comando constitucional do inciso LIX do art. 5º, e os casos de ação penal de iniciativa pública condicionada à requisição ministerial, conforme art. 122 do CPM e art. 31 do Código de Processo Penal Militar (CPPM).
Não custa retomar, com Vander Andrade (2004, p. 254) que, à luz do Direito Penal comum, a decadência é
a perda do direito de ação em virtude do tempo decorrido. O ofendido, nos crimes de ação penal pública condicionada à representação ou nos casos de ação penal privada, salvo disposição em contrário, dispõe de seis meses para o oferecimento da representação ou para a propositura da queixa-crime. Esses seis meses são contados do dia em que o ofendido tomou conhecimento da autoria delitiva ou, no caso da ação penal privada subsidiária da pública, no dia em que se esgota o prazo para o oferecimento da denúncia.
A perempção é causa de extinção da punibilidade possível apenas na ação privada (exclusiva), e consiste em uma sanção jurídica imposta ao querelante que, por desídia, deixa de dar seguimento à ação penal. Nos termos do art. 60 do Código de Processo Penal comum, ocorre a perempção:
– quando, iniciada esta, o querelante deixar de promover o andamento do processo durante trinta dias seguidos;
– quando, falecendo o querelante, ou sobrevindo sua incapacidade, não comparecer em juízo, para prosseguir no processo, dentro do prazo de sessenta dias, qualquer das pessoas a quem couber fazê-lo, ressalvado o disposto no art. 36 (se comparecer mais de uma pessoa com direito de queixa, terá preferência o cônjuge, e, em seguida, o parente mais próximo na ordem de enumeração constante do art. 31, podendo, entretanto, qualquer delas prosseguir na ação, caso o querelante desista da instância ou a abandone);
– quando o querelante deixar de comparecer, sem motivo justificado, a qualquer ato do processo a que deva estar presente, ou deixar de formular o pedido de condenação nas alegações finais;
– quando, sendo o querelante pessoa jurídica, esta se extinguir sem deixar sucessor.
Também exclusivamente nas ações penais de iniciativa privada (exclusiva), a renúncia do direito de queixa caracteriza-se por uma abdicação da possibilidade de promover a ação penal pelo ofendido ou por seu representante legal. Pode ser expressa ou tácita. É causa de extinção da punibilidade que somente poderá operar-se antes do início da ação penal.
O perdão do ofendido aceito pelo querelado é um ato jurídico bilateral em que o ofendido, no caso de ação penal privada, releva a ofensa perpetrada, devendo aquele contra quem demandou aceitar o perdão para que seja extinta a punibilidade. Pode ocorrer nos autos do processo (processual) ou fora deles (extraprocessual), comportando também as formas expressa e tácita. Nesse caso, a ação penal privada já deverá ter iniciado.
Pois bem, a questão que interessa à discussão é saber como seria a ação penal em um caso de crime militar extravagante em que no CP a ação penal seja de iniciativa pública condicionada ou privada. Tome-se como exemplo o crime de injúria qualificada por motivo racial, trazido pelo § 3º do art.140 do CP, em que a ação penal é de iniciativa pública condicionada à representação do ofendido, conforme a parte final do parágrafo único do art. 145 do CP. Seria, ademais, correto privar, nesses casos, o autor do fato das possibilidades de extinção da punibilidade próprias das ações penais de iniciativa pública condicionada ou de iniciativa privada?
Obviamente, não se tem resposta uníssona até o momento, cabendo à jurisprudência indicar a melhor solução, o que não impede a construção de um raciocínio próprio que se submete ao juízo do leitor.
Diga-se, de início, que a Lei n. 13.491/17 não alterou a realidade do CP ou do CPPM, mas apenas promoveu uma ampliação dos crimes militares e a fixação de competência no crime doloso contra a vida de civil, de modo que a lógica da ação penal militar deve permanecer em ambos os códigos de processo.
Para além da literal análise da nova lei, tenha-se que a fixação da iniciativa da ação penal pelo legislador possui uma lógica que deve ser exaltada. A aplicação do direito ao caso concreto, frise-se, é monopólio do Estado, deixando-se apenas a inauguração do processo, em alguns casos, ao alvedrio do ofendido.
Nesse sentido, profícuas as lições de Guilherme Madeira Dezem (2016, p. 210):
No entanto, o que leva o legislador a estabelecer que determinado crime será promovido pelo Ministério Público ou pelo ofendido? São basicamente dois motivos que o legislador leva em conta ao estabelecer qual será a ação penal para determinado tipo de crime.
O primeiro critério é o bem da vida tutelado pelo crime. Vale dizer, quando o bem jurídico ofendido pelo crime é de interesse prevalente do ofendido, a ação penal será de iniciativa privada como é o caso dos crimes contra a honra. De outro lado, quando o bem jurídico ofendido interessa a toda coletividade a ação penal será de iniciativa pública incondicionada, como os casos envolvendo homicídio doloso. Nos casos em que a ofensa interessa de maneira similar tanto ao ofendido quanto à sociedade, a ação penal será de iniciativa pública condicionada à representação.
Segundo critério levado em conta pelo legislador diz com o chamado streptus iudicii. Vale dizer, não raras vezes o processo penal causa mal também à vítima. Este caráter fica muito claro quando se pensa nos crimes contra a dignidade sexual, notadamente o estupro.
É muito comum que a vítima tenha vergonha pelo ocorrido e não queira se expor. Ora, este sentimento é algo muito particular e não cabe ao terceiro tecer julgamentos morais aqui. Bem por isso o legislador acabou por entender que estes crimes deveriam ser, em regra, de ação penal de iniciativa pública condicionada à representação, conforme dispõe o art. 225 do Código Penal.
Aplicando-se o raciocínio ao Direito Castrense, tem-se, primeiro, que o legislador não representou o critério streptus iudicii. Segundo, o legislador, estruturalmente, focou a natureza do crime militar, entendendo que o bem jurídico protegido pelos tipos penais incriminadores, em todos os casos, transcende o interesse individual do ofendido, afetando a toda coletividade, especialmente a coletividade militar, de maneira que não vislumbrou hipótese de prevalência de interesse do sujeito passivo do delito.
Por essa razão, o critério de um determinado caso merecer a persecução penal militar não ficou nas mãos da vítima, mas nas mãos do titular da ação penal, o Ministério Público, quando muito impulsionado por requisição do Ministro da Justiça ou da Defesa – a lei fala em Ministro da Força Armada a que pertence o agente, situação inexistente após a Lei Complementar n. 97, de 9 de junho de 1999.
Poder-se-á indagar, como já suscitado, se a extinção da punibilidade no crime militar extravagante não seria um direito público subjetivo do indiciado/acusado, cuja supressão, apenas por ser julgado na Justiça Militar, importaria em grave afronta aos postulados do Direito Penal do Estado Democrático de Direito e que, portanto, a ação penal do crime militar extravagante deveria ser traslada para o Direito Castrense, sob pena de um tratamento não isonômico desarrazoado.
Todavia, deve-se lembrar que essa disparidade de tratamento sempre existiu – mesmo antes da Lei n. 13.491/17 – na comparação do Direito Penal comum com o Direito Penal Militar, como no caso dos crimes contra a honra.
Tome-se o exemplo do crime de injúria, previsto no caput do art. 140 do CP e no art. 216 do CPM. No primeiro caso, a ação penal é deflagrada pela queixa-crime, nos termos do art. 145 do CP, portanto, um crime de ação penal de iniciativa privada, enquanto no CPM segue-se a regra geral do art. 121, ou seja, ação penal de iniciativa pública incondicionada. Neste caso, aceita-se que o crime contra a honra praticado por um militar em situação de atividade contra outro na mesma situação, também em exemplo, avilte bem jurídico que interessa à coletividade e não apenas o ofendido, já que fere-se, reflexamente, a regularidade da instituição militar ou, ainda, a hierarquia e a disciplina.
Não há razão para negar essa constatação também nos crimes militares extravagantes. Em situações em que o caso seja muito particular, não havendo aviltamento de bens jurídicos que interessem à coletividade, será o caso de não reconhecer o crime militar, mas não de se aceitar o crime militar (extravagante) de ação penal de iniciativa privada (exclusiva) ou de iniciativa pública condicionada à representação. Recorrendo, novamente, ao exemplo, imagine-se o caso de um crime previsto no art. 236 do CP, praticado por militar da ativa contra militar na mesma situação. Neste delito, induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento a casamento, a ação penal é de iniciativa privada e ainda personalíssima, quando somente o contraente enganado poderá oferecer a queixa-crime. Será pouco provável que se consiga vislumbrar afetação de bem jurídico de interesse à coletividade militar, de maneira que o crime deverá ser considerado comum. Aliás, essa visão restritiva do crime militar, especialmente na alínea “a” do inciso II do art. 9º do CPM, está bem presente na visão do Supremo Tribunal Federal, qual ocorreu no caso do Recurso Ordinário em Habeas Corpus n. 157.308/MS, em que o Min. Ricardo Lewandowki, em 14.08.2018, reconheceu a incompetência da Justiça Militar para julgar um processo em que um militar foi acusado da prática de lesão corporal leve contra outro militar, cometida em evento particular.
Em conclusão neste tópico, o crime militar extravagante, ao ser incorporado ao universo dos crimes militares, ainda que possua ação penal de iniciativa pública condicionada ou privada, passará, dadas as condições em que é praticado (hipóteses do inciso II ou do inciso III do art. 9º do CPM), a ser de iniciativa pública incondicionada, fenômeno que não é desconhecido no direito brasileiro, posto que a ele já se referiu Hélio Tornaghi (1959, p. 304-5), como ação pública secundária, nos seguintes termos:
Ação pública secundária – Para os crimes que a lei substantiva declara de ação privada, mas que, em vista de certas circunstâncias, passam a ser de ação pública. Exemplo típico se pode tirar do Código Penal, art. 225 e seus parágrafos:
“Art. 225. Nos crimes definidos nos capítulos anteriores, sòmente se procede mediante queixa.
§ 1º Procede-se, entretanto, mediante ação pública:
I – se a vítima ou seus pais não podem prover às despesas do processo, sem privar-se de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família;
II – se o crime é cometido com abuso do pátrio poder ou a qualidade de padrasto, tutor ou curador.
§ 2º No caso de nº I do parágrafo anterior, a ação do Ministério Público depende de representação”.
Embora o autor se refira a dispositivo já alterado do CP pela Lei n. 12.015, de 7 de agosto de 2009, que versou sobre os crimes contra a dignidade sexual, as lições são fundamentais para compreender que um crime idealizado para ter a deflagração do processo por iniciativa do ofendido pode, por algumas razões, tornar-se crime cuja ação penal se desenvolve mediante iniciativa pública incondicionada, qual ocorre com os crimes militares extravagantes.
4.4. As penas dos crimes militares extravagantes e sua aplicação na Justiça Militar
Outro ponto que gera discussão está no caso de uma pena inexistente no CPM, mas que seja enumerada no preceito secundário de um crime militar extravagante, poder ser aplicada na Justiça Militar.
É o caso emblemático da pena pecuniária, prevista em alguns delitos de maneira alternativa ou cumulativa (obrigatória). Como exemplo, tome-se o crime de organização criminosa, previsto no art. 2º da Lei n. 12.850, de 2 de agosto de 2013, em que a pena cominada é de reclusão de 3 a 8 anos e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às infrações praticadas pela organização criminosa (crimes organizados por extensão).
Em havendo caso de crime militar de organização criminosa, praticado contra a ordem administrativa militar (alínea “e” do inciso II ou alínea “a” do inciso III do art. 9º do CPM), deverá o Juiz – tomando-se a competência monocrática existente nas Justiças Militares dos Estados e do Distrito Federal – ou o Conselho de Justiça aplicar a pena pecuniária?
Para responder a essa indagação, deve-se resgatar a discussão sobre o princípio da legalidade, entendendo-se que o tipo penal – para além da discussão de elementos objetivos, subjetivos e normativos – é composto por preceito primário e secundário. No primeiro, há a descrição típica da conduta incriminada; no segundo, o parâmetro para o apenamento.
Ambos compõem o tipo de um delito, que deve ser observado sob o risco, no caso do preceito secundário, de o juiz não obedecer o primado da legalidade, aplicando ao caso concreto pena inexistente na previsão típica ou deixando de aplicar pena que necessariamente deve ser imposta naquela situação típica, exacerbando em sua atuação vez que inovará o conteúdo normativo, possibilidade que, em regra, é dada apenas ao legislador.
Também a discussão chama o resgate do princípio da culpabilidade como elemento de determinação ou medida de pena, vez que, parafraseando Bintencourt, acima citado, não se pode admitir aplicação de pena além ou aquém da previsão legal, no preceito secundário.
Em outros termos, se o tipo penal trazido para o Direito Castrense (crime militar extravagante) previr pena de multa, como de imposição obrigatória, deverá o Juiz ou o Conselho de Justiça impor essa sanção penal, valendo-se dos critérios existentes na Parte Geral do CP (arts. 49 e seguintes), em exceção à regra de aplicação da Parte Geral do CPM, mesmo porque ele é omisso sobre o tema.
5 Conclusão
A Lei n. 13.491/17, indubitavelmente, significou uma importante inovação no Direito Castrense, materializada pela ampliação do conceito de crime militar e pela pormenorização da competência nos crimes dolosos contra a vida de civil que sejam enquadrados em uma das hipóteses do art. 9º do CPM.
Essas alterações, como não poderia de outra forma ser, fomentaram discussões na comunidade jurídica, surgindo muitos debates profícuos, mas que apenas sinalizam possíveis soluções, porquanto a última palavra caberá ao Supremo Tribunal Federal, especialmente no bojo das Ações Diretas de Inconstitucionalidades n. 5.804 e 5.901.
Entre essas discussões travadas, está a avaliação da aplicação (ou não) da Parte Geral do CPM quando do processo e julgamento dos crimes militares extravagantes.
Como solução aqui indicada, tem-se a regra de que a aplicação será dos dogmas do CPM, o que não exclui a possibilidade de aplicação excepcional, calcada em uma argumentação principiológica, de dispositivos do CP.
Avaliadas duas situações específicas, concluiu-se pela manutenção da ação penal de iniciativa pública incondicionada nos crimes militares extravagantes e pela aplicação de penas não existentes no CPM, com dispositivos do CP, nos mesmos crimes, mantendo-se a integralidade do tipo penal em seu preceito primário e secundário.
Espera-se que os argumentos aqui trazidos possam servir de estágio inaugural para discussões mais profundas, ao final das quais seja atingido o fim maior do Direito Penal, consistente na pacificação de conflitos resultantes da prática criminosa.
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Cícero Robson Coimbra Neves é Promotor de Justiça Militar na Procuradoria de Justiça Militar de Santa Maria/RS. Membro colaborador da Comissão de Preservação da Autonomia do Ministério Público (CPAMP) junto ao Conselho Nacional do Ministério Público. Mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança da Polícia Militar do Estado de São Paulo.
Artigo aprovado para publicação na Revista do Observatório da Justiça Militar Estadual, 2018, v. 2, n. 2.
NOTAS
[1] TJM/SP, Ap. Crim. n. 5.240/03, rel. Juiz Cel Lourival Costa Ramos, j. 25.08.2005; TJM/MG, Ap. Crim. n. 2.332, rel. Juiz Cel PM Paulo Duarte Pereira, j. 04.11.2004; STM, Ap. n. 0000011-69.2013.7.07.0007, rel. Min. MarcosVinicius Oliveira dos Santos, j. 21.03.2016.
[2] STF, HC n. 86.854/SP. Rel. Min. Carlos Britto, j. 14.03.2006.
[3] Note-se que a previsão constitucional do inciso XXXIX do art. 5º é complementada pelo inciso XL do mesmo artigo.
[4] “El conjunto de las características de una acción o realidad fáctica especiales que están contenidas en el concepto de una determinada clase de acciones antijurídicas se llama el tipo del crimen (corpus delicti). La punibilidad objetiva depende de la existencia del tipo de un crimen en general; la aplicación de una ley penal dada, de un determinado caso del respectivo tipo, que presupone la ley aplicable como condición de su consecuencia jurídica”.
[5] Como demonstração, tome-se o art. 33 do CPM, que, sob a rubrica da culpabilidade, define dolo e culpa, em evidente indício de adoção de um conceito causal da ação – esvaziado de elementos finalísticos – e de uma teoria psicológico-normativa da culpabilidade.