Efeito Hollywood: quando a Justiça se contamina com a fantasia dos filmes
- João Bosco Silvino Júnior
- há 22 horas
- 6 min de leitura
Qual foi a primeira vez que você viu a cena de um confronto armado? Certamente foi em um filme, não? Isso é o que acontece com a maioria absoluta das pessoas. Desde a infância somos influenciados pelos conteúdos que assistimos na TV e no cinema. Acreditamos que animais falam, super-heróis voam e que o bem sempre vence. Quando crescemos um pouco e começamos a assistir a filmes de ação, ficamos admirados com a habilidade do herói em sempre acertar os tiros, com a dinâmica do combate — geralmente muito bem coreografado — e com o impacto sentido quando alguém é atingido por um disparo, quase sempre tanto maior quanto mais dramática for a cena.
Os filmes criam um modelo mental que é levado pela vida inteira e que, muitas vezes, é difícil substituir por um modelo mais realista. Os mitos criados e nutridos pelo cinema contaminam o imaginário popular, já que a grande maioria das pessoas, graças a Deus, só tem contato com esse tipo de cena na ficção.
Essa licença poética gerada pelos filmes produz um efeito que denomino “Efeito Hollywood”, o qual pode trazer danos graves e até irreversíveis — como, por exemplo, a morte de alguém que acreditava que seu oponente seria prontamente incapacitado ao ser atingido por um tiro. Não é difícil encontrar na internet vídeos de abordagens policiais em que o operador de segurança se coloca em risco por demorar a apresentar uma resposta armada diante de uma reação iminente.
Para facilitar a vida do leitor, já deixo aqui um vídeo exemplificativo dessa situação (https://youtube.com/shorts/jp9AhRSFWYM?si=Y0Oxx4e81VIeh6nY). Neste vídeo, percebe-se a grande proximidade entre um agressor de grande porte, armado com duas facas, e uma policial armada, que efetua vários disparos, interrompe a sequência em virtude de uma falha na arma, corrige a pane e volta a efetuar tiros. Analisando somente esse vídeo, é possível perceber que a distância reduzida é o principal fator complicador da ocorrência.
Já no segundo vídeo, mostrado em outro plano — com maior distância e mais completo —, é possível ver o agressor desembarcando do veículo vários metros distante da policial e avançando em direção a ela, já portando as duas facas, enquanto a agente verbaliza para que ele largue as armas. Percebe-se que, pela grande distância, a policial julga estar em segurança e talvez imagine que precisa esperar até o último momento para iniciar a ação letal.
Veja o vídeo:
Analisando a cena completa, a pergunta que lanço é: por qual motivo a policial não começou a atirar antes? As razões podem ser várias, mas acredito que ela pensou que, ao sofrer o primeiro tiro, o agressor tombaria imediatamente, já incapacitado — como nos filmes. Outra possibilidade seria o receio de ser condenada por excesso na legítima defesa, o que nos conduz ao objeto do presente artigo.
Quando a pessoa contaminada por esse “efeito Hollywood” é um operador do direito — como um delegado, promotor, defensor público ou juiz — ou até mesmo um jurado, o resultado pode ser a condenação indevida de alguém que agiu em legítima defesa. Isso porque tais julgadores podem ter em mente o modelo fictício dos filmes, no qual um tiro arremessa uma pessoa para trás, incapacitando-a instantaneamente, tornando injustificável, em sua visão, a necessidade de mais de um disparo em um confronto real.
É sobre esses mitos que vamos tratar neste artigo.
O mito do impacto do tiro
Abrindo a coleção de mitos, vamos tratar de um clássico: o “impacto do tiro”. Desde os filmes de faroeste, passando pelos clássicos de Charles Bronson até chegar ao atual John Wick, Hollywood sempre retratou de maneira muito exagerada o impacto de um tiro no corpo humano. Em alguns casos, a pessoa alvejada é arremessada metros para trás, como se a terceira lei de Newton — ação e reação — não existisse.
Esse mito faz com que as pessoas acreditem que alguém atingido por um projétil sente um impacto semelhante a um soco, algo que a empurra para trás, o que não é verdade. O relato mais consistente de pessoas atingidas por tiros é que simplesmente não sentiram o disparo no momento em que ocorreu.
Como exemplo, cito dois casos conhecidos: o do deputado Cid Gomes, atingido no peito por dois disparos quando tentou invadir um quartel da PM com uma retroescavadeira, e o do delegado Paulo Bilynskyj, alvejado seis vezes em uma situação domiciliar. Em ambos os casos o relato é semelhante: só perceberam que foram atingidos ao ver o sangue decorrente dos ferimentos.
Hollywood mostra que um tiro de espingarda é capaz de lançar um corpo longe. Mas será que isso acontece na vida real? É possível que mesmo um leigo imagine que não é bem assim, mas seria um tiro capaz de derrubar alguém simplesmente pelo impacto?
Veja o vídeo seguinte, que mostra um experimento controlado para demonstrar esse ponto:
Um tiro e um tombo: o mito da incapacitação imediata
Ao lado do mito do impacto, existe o mito da incapacitação imediata. Nos filmes aprendemos — ou melhor, desaprendemos — que uma pessoa sempre cai instantaneamente ao ser atingida por um tiro.
Na vida real isso só ocorre quando uma região específica é atingida: o sistema nervoso central (SNC) ou determinados pontos da coluna, especialmente a região cervical. Se o tiro não atinge essas áreas, a incapacitação não é imediata e pode levar segundos, minutos ou até não ocorrer.
Isso significa que o agressor pode manter plena capacidade de ação, inclusive alcançar, desarmar ou matar a pessoa que se defende antes de ser incapacitado.
Diversos vídeos reais disponíveis na internet evidenciam isso — inclusive o já mencionado neste artigo.
O herói sempre acerta os tiros
É impressionante: nos filmes, o índice de acertos dos heróis é altíssimo. Muitas vezes, um único protagonista acerta todos os seus inimigos. Às vezes, ele nem está olhando para o alvo, mas ainda assim acerta.
Um exemplo clássico desse absurdo é o filme Comando para Matar, com Arnold Schwarzenegger. Ele combate praticamente um exército, atira com um braço só e elimina todos com precisão perfeita.
Mas será que confrontos reais contam a mesma história?
Uma excelente ferramenta para responder a isso é o relatório LEOKA (Law Enforcement Officers Killed and Assaulted), elaborado pelo FBI.

Tabela 1 – Número de policiais vítimas que descarregaram suas armas. (Fonte: https://ucr.fbi.gov/leoka/2019/topic-pages/tables/table-18.xls)

Tabela 2 – Detalhamento da Tabela 1, mostrando o percentual de acerto dos policiais americanos que descarregaram suas armas em confronto.
Observando as tabelas, é possível notar que o índice de acertos em combate é extremamente baixo. O índice de 18,3% indica que, a cada cinco tiros efetuados, o policial americano acerta apenas um. Isso ocorre porque, em confronto, tanto o policial quanto o alvo estão em movimento, sob estresse e trocando tiros — ambiente completamente diferente de um estande.
O mito do ferimento de tiro e do jorro de sangue
Outro mito comum é o tamanho dos ferimentos de tiro e o jorro de sangue que aparece nos filmes. As produções exageram absurdamente esses efeitos. Não que não haja sangramento, mas a quantidade é muito menor do que o cinema sugere.
Os ferimentos de entrada, especialmente de calibres de baixa velocidade, costumam ter dimensões pequenas — muitas vezes menores que o próprio diâmetro do projétil, devido à elasticidade da pele. Mesmo munições expansivas (“balas dum-dum”) não produzem, na entrada ou na saída, o efeito dramático mostrado na ficção.
Em muitos casos, o ferimento pode até passar despercebido, seja por pouca vascularização da área atingida, seja porque o tecido adiposo consegue tamponar o orifício, seja porque o sangue escoa para cavidades internas, sem jorrar externamente.
Isso produz um problema sério: quem se defende nem sempre consegue perceber se acertou ou não o agressor. Como não há impacto visível e nem jorro de sangue imediato, muitos efetuam mais disparos acreditando que os primeiros não atingiram o alvo, gerando a falsa impressão de “excesso”.
Conclusão
São muitos os mitos sobre confrontos armados disseminados por filmes e novelas. Isso faz parte do entretenimento, que usa a licença poética para tornar as cenas mais emocionantes.
O problema surge quando transportamos essa fantasia para a realidade. Esses mitos moldam opiniões distorcidas — inclusive entre operadores do direito — que podem influenciar decisões graves, como julgamentos de legítima defesa.
Por isso, é essencial buscar conhecimentos reais, baseados em bibliografia séria, cursos de capacitação e aproximação com a prática policial, ao invés de permitir que Hollywood dite como funciona um confronto armado, influenciando até mesmo ditos “especialistas em segurança pública” a acreditar que seria viável ou recomendável combater com pedras traficantes armados com fuzis.
João Bosco Silvino Júnior é Perito Criminal Oficial da Polícia Civil de Minas Gerais, autor de livro e cursos nas áreas de Balística, Local de Crime e Perícias em geral. É também Instrutor de Armamento e Tiro credenciado pela Polícia Federal e atirador esportivo. Possui graduação e mestrado em Engenharia Elétrica, atuando professor em diversos cursos táticos e de pós-graduação pelo Brasil. É também palestrante em diversos eventos científicos de Criminalística.


