A linguagem dos autos de resistência e a doutrina do uso diferenciado da força
- Bruno Cortez Castelo Branco
- 15 de out.
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1. Introdução
O termo “auto de resistência” vem sendo utilizado nos registros policiais brasileiros para documentar mortes ou lesões corporais resultantes de intervenções mediante uso da força. Essa terminologia, contudo, reproduz uma estrutura discursiva que antecipa a legitimidade da ação policial e tende a excluir ou fragilizar outras linhas de investigação.
A partir da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil (2017) e da consolidação da doutrina do uso diferenciado da força pela Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG) e posteriormente pelo Decreto Federal nº 12.341/2024, emergiu um novo paradigma normativo e linguístico, pautado na justificação racional da coerção estatal e no controle público do uso da força.
Este artigo propõe, com base em Wittgenstein, que a linguagem institucional é uma forma de ação: ao nomear, o Estado cria sentidos e distribui responsabilidades. Por isso, defende-se que a substituição do termo “auto de resistência” por “auto de uso diferenciado da força” representa não apenas uma atualização terminológica, pois busca eliminar a confusão conceitual que associa automaticamente a ocorrência do crime de resistência, prevenindo assim erros de subsunção e eventuais imputações de falsidade ideológica. Além disso, reformula o jogo de linguagem na medida em que não é o próprio autor quem define o sentido jurídico da ação, o qual deve ser atribuído por indicadores públicos e submetido ao controle externo do Ministério Público e do Judiciário, garantindo maior transparência e legitimidade democrática na avaliação do uso da força.
2. A linguagem do uso da força
Em Investigações Filosóficas, Wittgenstein sustenta que o significado das palavras não deriva de sua correspondência com o mundo interno do falante, mas de seu uso nos jogos de linguagem que compõem nossas práticas sociais. Assim, compreender uma palavra é compreender o modo de vida em que ela opera, o seu uso em determinado contexto. Como explica Vives Antón, as palavras não significam o que eu quero, já que, ao dizê-las, apelo ao significado que têm no uso comum ou ordinário. (In: VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Prólogo. In: Rodríguez, Javier Llobet. Nacional-socialismo e antigarantismo penal (1933-1945). Trad. de Paulo César Busato. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019. p. 11.)
Se as palavras podem ser interpretadas de diferentes maneiras a depender do sentido que eu quiser dar a elas, como as pessoas conseguem compreender e serem compreendidas pelas outras? Ou, nas palavras de Wittgenstein, podemos dizer “faz frio”, e com isso significar “faz calor”, sem um determinado contexto? (In: WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Trad. de José Carlos Bruni. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 510).
Para que se possa afirmar, com segurança, que uma pessoa seguiu uma regra, ela deve ser capaz de justificar por que agiu como agiu e de ensinar essa habilidade para outras pessoas, porque aí, sim, domina a técnica. A ação deve expressar o sentido de que o sujeito era capaz de compreender o que estava fazendo porque tinha razões (justificativas) para proceder desse modo (e não de outro), isto é, que agiu intencionalmente.
Assim, em vez de buscar uma essência única da linguagem, Wittgenstein nos convida a observar os diferentes “jogos de linguagem” — contextos em que as palavras adquirem sentido ao desempenhar funções como ordenar, descrever, perguntar, ou justificar uma conduta.
Falar em “auto de resistência”, portanto, não é apenas nomear um fato: é participar de um jogo institucional no qual a linguagem organiza as relações de poder, define papéis, delimita responsabilidades e, eventualmente, antecipa julgamentos morais e jurídicos.
3. O Caso Favela Nova Brasília e os parâmetros interamericanos de investigação imparcial
O Manual Técnico-Profissional nº 3.04.01/2020 da Polícia Militar de Minas Gerais define de modo expresso o procedimento a ser adotado sempre que houver o emprego de força potencialmente letal ou de instrumentos de menor potencial ofensivo. De acordo com o protocolo institucional, “o policial militar que disparou sua arma de fogo deverá comunicar o fato verbalmente e imediatamente aos seus superiores (comandante responsável pela Unidade ou Fração) e confeccionará o Boletim de Ocorrência (BO) e o respectivo Auto de Resistência (AR), detalhando todos os motivos de sua intervenção e suas consequências, assim como as medidas decorrentes adotadas. Esse protocolo será aplicado quando: disparar munição de impacto controlado; disparar arma de emissão de impulso elétrico; disparar arma de fogo (força potencialmente letal)” (PMMG, 2020, p. 74).
Não obstante, a denominação “auto de resistência” cria, desde o início, um campo semântico hermético, que aparenta reduzir a investigação à confirmação da legitimidade da ação policial.
Nesse sentido, a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao examinar os “autos de resistência” no Caso Favela Nova Brasília, concluiu que tal prática impactava negativamente as investigações, pois: “raramente [eram] investigadas com diligência; pelo contrário, as investigações costumam criminalizar a vítima, ignorando indícios de execução sumária” (§ 194).
Dessa forma, o termo, longe de descrever, atua como um operador simbólico de exclusão: elimina hipóteses, antecipa justificativas e revitimiza os mortos e seus familiares. (§§ 195–196).
A Corte fixou, no julgamento, diretrizes fundamentais sobre independência, imparcialidade e efetividade das investigações. O parágrafo 187 da sentença já mencionada estabelece como critérios negativos para sua aferição:
i) os mesmos policiais investigadores são suspeitos em potencial;
ii) são colegas dos acusados;
iii) mantêm relação hierárquica com os acusados;
ou iv) a conduta dos órgãos investigadores indica falta de independência, como a falha em adotar determinadas medidas fundamentais para elucidar o caso e, oportunamente, punir os responsáveis;
v) um peso excessivo concedido à versão dos acusados;
vi) a omissão de não explorar determinadas linhas de investigação que eram claramente necessárias;
ou vii) inércia excessiva.
Contudo, o Tribunal ressalvou expressamente (§189) que não se exige independência absoluta, mas “suficiente” — o que admite, em tese, que o órgão policial realize a investigação, desde que não haja vínculo hierárquico, institucional ou pessoal com o investigado, e desde que o processo seja submetido ao controle externo do Ministério Público e à fiscalização judicial (§§ 190–214).
Assim, é possível que a própria Polícia Militar conduza investigações nas quais policiais militares figurem como autores do uso de força contra civis, desde que o Encarregado designado pelo Comando:
não tenha participado da intervenção policial;
não seja subordinado hierárquico do investigado;
não mantenha laços pessoais de amizade ou dependência; e
haja supervisão ou controle de um órgão independente externo (Ministério Público e Judiciário).
Entendo que essa interpretação é plenamente compatível com o modelo constitucional brasileiro (art. 129, VII, CF/88) e assegura o equilíbrio entre eficiência institucional e garantia de imparcialidade, afugentando o fantasma do corporativismo.
4. A doutrina do uso diferenciado da força
A doutrina do uso diferenciado da força, acolhida e desenvolvida pelos cadernos doutrinários da Polícia Militar de Minas Gerais, constitui um dos avanços mais significativos na racionalização do emprego da força pelos agentes estatais.
No ponto, o Manual Técnico-Profissional nº 3.04.01/2020 da PMMG define essa doutrina como “um processo dinâmico no qual o nível de força pode aumentar ou diminuir em função de uma escolha consciente do policial, de acordo com as circunstâncias da intervenção” (p. 58). Ao contrário da ideia tradicional de “uso progressivo da força”, a corporação mineira rejeita a noção de escalada linear e irreversível de violência, destacando que a modulação — inclusive regressiva — da força é parte essencial do controle técnico e ético da atuação policial. Essa concepção compreende o uso da força não como reação automática a uma conduta alheia, mas como ato racional de decisão, orientado por critérios objetivos de necessidade, proporcionalidade e prudência.
A perspectiva da PMMG desloca o foco do resultado lesivo para o processo decisório do agente estatal, enfatizando a responsabilidade funcional e discursiva que recai sobre quem exerce o monopólio legítimo da coerção. O policial, nesse modelo, não é um executor mecânico, mas um sujeito que delibera e deve justificar suas escolhas de acordo com parâmetros técnicos e jurídicos.
Sob a ótica da filosofia da linguagem de Wittgenstein, essa doutrina substitui o jogo de linguagem reativo — em que o Estado “responde” à resistência — por um jogo reflexivo, em que o Estado atua sob o paradigma comunicativo, devendo explicar o porquê e o como do uso da força com esteio nas circunstâncias do caso concreto.
Por essa razão, a manutenção da expressão “auto de resistência” torna-se semanticamente incoerente com o próprio vocabulário técnico-profissional da instituição, uma vez que perpetua uma narrativa unilateral e sujeita a erros de interpretação.
A coerência e a consistência dessa doutrina operacional foram posteriormente positivadas no plano jurídico nacional pelo Decreto nº 12.341, de 23 de dezembro de 2024, que regulamentou a Lei nº 13.060/2014. Essa norma estabeleceu os princípios gerais de uso da força em segurança pública — legalidade, precaução, necessidade, proporcionalidade, razoabilidade, responsabilização e não discriminação (art. 2º) — e incorporou expressamente o conceito de uso diferenciado da força ao ordenamento jurídico brasileiro.
O artigo 3º do referido decreto impõe aos profissionais de segurança pública o dever de selecionar conscientemente o nível de força adequado à ameaça real ou potencial, priorizando sempre a comunicação e a negociação (§1º) e restringindo o uso da arma de fogo como medida de último recurso (§2º). Ademais, o texto normativo estabelece que toda utilização de força que resulte em ferimento ou morte deve ser objeto de relatório circunstanciado (§5º), a ser avaliado sob a supervisão do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Com isso, a diretriz doutrinária da PMMG, inicialmente construída como instrumento de aprimoramento técnico-operacional, atualmente foi elevada à categoria de norma jurídica nacional. O decreto, portanto, transformou em dever legal aquilo que já se afirmava como princípio ético-profissional: a força deve ser diferenciada, seletiva e justificável, e cada ato de coerção precisa ser documentado e passível de controle público. Trata-se, assim, da institucionalização de uma nova gramática da ação estatal.
5. A proposta terminológica: do “Auto de resistência” ao “Auto de uso diferenciado da força”
A análise da prática institucional revela uma profunda dissonância linguística entre o vocabulário normativo adotado pela Polícia Militar de Minas Gerais e a terminologia administrativa ainda utilizada nos registros operacionais. De um lado, o Manual Técnico-Profissional nº 3.04.01/2020 e o Decreto nº 12.341/2024 consolidaram o paradigma do uso diferenciado da força, fundado na racionalidade técnica, na proporcionalidade e na responsabilidade pública. De outro, o emprego persistente da expressão “auto de resistência” perpetua um jogo de linguagem incompatível com esses mesmos princípios.
A mudança terminológica não é meramente formal. O novo vocábulo desloca o foco do resultado (“resistência”) para o processo de decisão e de justificação da ação policial, convertendo o registro em um instrumento de prestação de contas e não de autolegitimação prévia. Alinha-se, por conseguinte, ao determinado pela já citada sentença da Corte Interamericana:
334. Em relação à substituição da expressão “auto de resistência”, a Corte coincide com a declaração do perito Marlon Weichert em audiência, e considera que, ainda que a mudança do título do procedimento não modifique o procedimento per se, existe um valor simbólico em buscar uma expressão mais apropriada.
De fato, a Corte Interamericana recomendou a abolição do termo “auto de resistência” e sugeriu sua substituição por “homicídio ou lesão decorrente de intervenção policial”, como forma de relativizar a presunção absoluta de legitimidade da ação estatal. Ainda que tal recomendação represente um avanço significativo na direção de maior transparência e de combate à impunidade, ela não está isenta de problemas linguísticos.
Se o termo anterior antecipava a licitude da conduta policial, a nova expressão incorre no vício oposto: antecipa a ilicitude, descrevendo o fato a partir de uma categoria penal de resultado — “homicídio” ou “lesão corporal” —, antes mesmo da análise da tipicidade e da antijuridicidade do ato. A nomenclatura sugerida pela Corte, embora bem-intencionada, transfere o desequilíbrio discursivo de um polo a outro: de uma narrativa que justificava automaticamente a ação estatal para outra que tende a criminalizar previamente o agente público, sem assegurar o espaço de argumentação e de verificação da proporcionalidade exigido pelo devido processo legal.
Além disso, essa expressão não explicita o ônus argumentativo que deve recair sobre o agente estatal ao empregar a força. O simples enquadramento do evento como “homicídio decorrente de intervenção policial” não obriga o Estado a demonstrar, de maneira discursiva, a compatibilidade de sua conduta com as normas de uso diferenciado da força. O problema, portanto, não se resolve apenas pela substituição lexical, mas exige a criação de uma linguagem que institucionalize a obrigação de justificar a coerção e possibilite a sua avaliação por um critério público institucionalizado – a “rocha dura” onde nossa pá entorta, no dizer de Wittgenstein (1979, § 217), porque as regras que delimitam o uso diferenciado da força representam o consenso axiológico que confere sentido a uma prática social (o uso da força estatal).
A expressão “auto de uso diferenciado da força”, ao contrário das anteriores, propõe uma linguagem intersubjetiva, técnica e verificável, que reflete o conteúdo normativo e operacional do paradigma vigente. Em vez de descrever um resultado presumido, o novo termo designa um processo decisório que deve ser documentado, fundamentado e controlado.
Nas trilhas da filosofia da linguagem, não cabe ao próprio falante definir o sentido da ação performada: esse significado deve ser compreendido a partir de indicadores externos (critérios públicos) acerca do modo de agir do policial no contexto da ação. Isso porque “o sentido é determinado pela especificação do contexto de uso dos termos da lei, que compreende as práticas a que se refere e as exigências constitucionais que nelas se projetam” (VIVES ANTÓN, 2011, p. 608).
A proposta terminológica de substituição da expressão “auto de resistência” por “auto de uso diferenciado da força” constitui o núcleo central desta pesquisa e representa uma mudança conceitual de profunda relevância para o sistema jurídico e para a cultura institucional da segurança pública. A nova denominação expressa, com maior precisão técnica e normativa, as possibilidades legítimas e proporcionais da atuação policial, alinhando a linguagem administrativa à doutrina contemporânea do uso diferenciado da força. Ao mesmo tempo, essa reformulação reposiciona o sujeito da enunciação: o foco deixa de recair sobre o cidadão que “resiste” — e que, nesse jogo linguístico, é implicitamente culpabilizado —, passando a incidir sobre o Estado que age, e que, por essa razão, deve justificar discursivamente o emprego da coerção segundo critérios de necessidade, razoabilidade e proporcionalidade.
Ademais, a adoção da nova expressão reduz o risco de erro de subsunção e de falsidade ideológica nos registros policiais, ao distinguir com clareza o crime de resistência — que supõe oposição ativa e violenta à execução de ato legal — do documento administrativo destinado exclusivamente à comunicação e análise do uso da força.
Por fim, a terminologia proposta reforça o controle externo exercido pelo Ministério Público e o controle judicial da atividade policial, uma vez que cada registro de uso da força passa a exigir fundamentação explícita sobre a adequação dos meios empregados às circunstâncias concretas do caso.
6. Considerações finais
A substituição da terminologia “auto de resistência” por “auto de uso diferenciado da força” reformula o jogo de linguagem institucional, deslocando-o da narrativa da simples reação para o da responsabilidade pública, tornando o discurso policial mais transparente, verificável e compatível com os parâmetros internacionais de direitos humanos, em especial com a doutrina e as normas de uso diferenciado da força. Assim, aspira-se a um modo de falar que evite ambiguidades semânticas entre o “auto de resistência” e o tipo penal de resistência, bem como a indevida eliminação prematura de hipóteses investigativas e a estigmatização de vítimas, estabelecendo-se um critério público de legitimidade do uso da força estatal.
Bruno Cortez T. Castelo Branco é Juiz de Direito da Justiça Militar do Estado de Minas Gerais, Doutor e Mestre em Direito Penal (UFPR - Universidade Federal do Paraná)
Referências
BRASIL. Decreto nº 12.341, de 23 de dezembro de 2024. Diário Oficial da União, Brasília, 26 dez. 2024.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil. Sentença de 16 de fevereiro de 2017. Série C nº 333.
MINAS GERAIS. Polícia Militar. Manual Técnico-Profissional nº 3.04.01/2020: Intervenção Policial, Processo de Comunicação e Uso da Força. Belo Horizonte: Assessoria Estratégica de Operações (PM3), 2020.
VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos del Sistema Penal. 2ª ed. Valencia: Tirant, 2011.
VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Prólogo. In: Rodríguez, Javier Llobet. Nacional-socialismo e antigarantismo penal (1933-1945). Trad. de Paulo César Busato. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Abril Cultural, 1979.



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