Introdução
O Processo Penal Militar foi elaborado em 1969. Desde então, passou por poucas alterações e sendo assim, a maioria de seus artigos não passa por uma filtragem constitucional, como é o caso da citação por edital e o seguimento do processo à revelia do acusado, ferindo dessa forma o contraditório e ampla defesa.
Do Contraditório e Ampla Defesa
A CF/88 elenca como direito e garantia fundamental o contraditório e ampla defesa em seu artigo 05ª, inciso LV: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;”. De igual sorte, a Convenção Americana de Direitos Humanos em seu artigo 8, 1, 2, garante que todo acusado tem o direito de ser ouvido, bem como defender-se pessoalmente ou por um defensor de sua escolha.
É sabido que a ampla defesa não existe apenas com a defesa técnica. Essa se desdobra em defesa técnica - que é obrigatória e irrenunciável - e a autodefesa, que é o direito do acusado de exercê-la ou não. Porém, precisa lhe ser dado esse direito de escolha.
Quando a Constituição Federal assegura aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral a ampla defesa, entende-se que a proteção deve abranger o direito à defesa técnica (processual ou específica) e à autodefesa (material ou genérica), havendo entre elas relação de complementariedade. (Lima, 6 Ed, p. 55) Grifos no Original.
Quanto ao contraditório é o direito do acusado de contrapor os argumentos da acusação, e sendo necessário que, para que ele exista, lhe seja dado o direito de falar.
O contraditório pode ser inicialmente tratado como um método de confrontação da prova e comprovação da verdade, fundando-se não mais sobre um juízo potestativo, mas sobre o conflito, disciplinado e ritualizado, entre partes contrapostas: a acusação (expressão do interesse punitivo do Estado) e a defesa (expressão do interesse do acusado [e da sociedade] em ficar livre de acusações infundadas e imune à penas arbitrárias e desproporcionadas). É imprescindível para a própria existência da estrutura dialética do processo. (Lopes Jr., 17ª Ed., p. 112)
Doutrina e Jurisprudência Contraria Aplicação do 366 do CPP.
A regra no Processo Penal Militar é que, caso o acusado não seja encontrado para ser citado, a citação vai ser por edital e o processo vai correr à revelia dele. Já no CPP, com a edição da lei 9.271/96, no caso de citação por edital fica suspenso o prazo prescricional e o processo: “Art. 366. Se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312.”
Na doutrina e jurisprudência as vozes contrárias à aplicação do art. 366 do CPP no caso de citação por edital, justificam que o CPPM prevê regramento próprio e, por essa razão, não seria possível a aplicação subsidiária do processo penal comum ou que - caso fosse possível a interpretação - seria contra o acusado, já que suspenderia a contagem do prazo prescricional enquanto o processo estivesse suspenso.
EMENTA: EMBARGOS INFRINGENTES E DE NULIDADE. DPU. NULIDADE DA CITAÇÃO EDITALÍCIA. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO ART. 366 DO CPP. IMPOSSIBILIDADE. MANUTENÇÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO. DECISÃO POR MAIORIA. É inviável a aplicação do art. 366 do CPP no âmbito da Justiça Militar, uma vez que o CPPM dispõe expressamente que o processo seguirá à revelia do acusado que, citado, intimado ou notificado para ato do processo, deixar de comparecer sem motivo justificado. A aplicação subsidiária de dispositivo diverso da legislação de regência só é admitida em caso de omissão legislativa, hipótese não contemplada no presente caso, haja vista que o Diploma Adjetivo Castrense possui disposição específica acerca da matéria, in casu, o art. 292 do CPPM. Embargos rejeitados. Decisão por maioria. ( Embargos Infringentes e de Nulidade- 7000838-98.2018.7.00.0000- Relator: LÚCIO MÁRIO DE BARROS GÓES- Julgamento: 21/03/2019- STM)
Já a doutrina de forma similar se manifesta.
Muito simples é a construção quanto a sua não aplicação, centrando-se na existência de previsão específica para o assunto no CPPM que não contraria a Constituição Federal - portando, não havendo omissão-, no fato de uma suposta aplicação do art. 366 do CPPM ferir a índole do processo penal militar e, finalmente, pelo fato de a construção pela aplicação importar em analogia in malam partem, visto criar uma regra a mais de suspensão da prescrição não prevista no Código Penal Militar ou em norma extravagante que se aplique ao crime militar. (Neves, 4 ed., 2020, p. 793)
Inconstitucionalidade da suspensão do processo criar norma de imprescritibilidade.
Cabe aqui superar a impossibilidade de se ter normas criando imprescritibilidade de crimes que a CF/88 não o fez.
Art. 5º.....
XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;
XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;
Logo, a Constituição é taxativa quanto aos crimes imprescritíveis e por tal razão não cabe uma interpretação extensiva do art. 366 do CPP e criar norma que a Constituição não fez.
O que levou ao STJ a sumular o tema – “Súmula 415 - O período de suspensão do prazo prescricional é regulado pelo máximo da pena cominada.”
Inicialmente, há um obstáculo constitucional: como suportar uma nova categoria de crimes imprescritíveis, à margem da previsão constitucional (art. 05ª, incisos XLII e XLIV) e que pode alcançar até a mais leve das infrações penais? Inviável. Significa, ainda, uma violação ao princípio da proporcionalidade, sob o viés de proibição de excesso, pois constitui, sem dúvida, um excesso punitivo gerado pela imprescritibilidade. (Lopes Jr., 17ª Ed., p. 600) Grifo Original
Infelizmente o STF vem entendo em julgamentos de HC pela possibilidade de suspensão indefinida da prescrição, sendo reconhecida a repercussão geral no RE 600851 de relatoria do Ministro Edson Fachin, estando pendente de julgamento a matéria.
Acreditamos que a razão está com o STJ e a doutrina que aponta a impossibilidade de criar imprescritibilidade em crimes no qual a CF/88 não fez.
Aplicação do 366 como respeito ao contraditório e ampla defesa.
Quando a CF/88 impõe que o processo vai ser regido pela ampla defesa, ficou claro que essa ampla defesa é subdividida com a participação da defesa técnica e da autodefesa. Em sendo assim, no momento que o processo penal militar vai correr sem a presença do acusado por ter sido o mesmo citado por edital, está o processo penal militar aleijando o sacrossanto direito constitucional, já que a ampla defesa não está sendo exercida em sua plenitude, bem como não sendo permitido o exercício do contraditório já que não é fornecido ao acusado o direito de ser ouvido.
Assim, é exigência do contraditório de que ninguém possa ser condenado sem ser ouvido, ou, ao menos, sem que se lhe tenham oportunizado condições reais de ser ouvido (inatividade processual real). Não é suficiente, portanto, a mera citação ficta para o desenvolvimento do processo. Quando não citado o réu, pessoalmente, não pode o processo continuar. (Lopes Jr., 17ª Ed., p. 598) Grifo Original
Não se trata de questão de o CPPM possuir regramento próprio, é necessário se perguntar se o regramento próprio do CPPM passa por uma filtragem constitucional.
Por isso, o juiz ao se confrontar com a lei infraconstitucional processual penal vigente tem a obrigação de verificar a sua validade antes de aplicá-la. Para isso, o magistrado tem que interpretá-la em conformidade com os direitos e garantias fundamentais individuais positivados na carta constitucional, seguindo e respeitando estritamente os pilares de sustentação do devido processo legal. (Mattos Filho,219, p.86)
Conclusão
Sendo assim, para que o Processo Penal Militar possa seguir os postulados constitucionais é imperiosa a aplicação da suspensão do processo no caso da citação por edital, já que o processo seguir à revelia do acusado no caso da citação ficta acaba por macular a ampla defesa, já que não é permitido que seja exercida a autodefesa bem como o contraditório, já que o acusado não é ouvido e por consequência não se contrapõe às acusações que lhe são imputadas - e ninguém melhor que o próprio acusado para fazer isso. Não se falando também em regramento próprio do CPPM, já que ele não se sustenta após uma filtragem constitucional. Por fim, muito menos fazer uma interpretação extensiva da norma do 366 e se falar em criar uma norma imprescritível. Por tudo isso, é imperiosa a aplicação do artigo 366 do processo penal comum ao processo penal militar.
Referências:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm
https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm
https://scon.stj.jus.br/SCON/sumanot/toc.jsp?livre=%28sumula%20adj1%20%27415%27%29.sub.
http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2684154
LOPES JR., Aury, Direito processual penal-17 ed., 2020: Saraiva
NEVES, Cícero Robson Coimbra. Manual de direito processual penal militar. 4 ed.: Editora JusPODIVM, 2020.
MATTOS FILHO, J. Mauricio C. Nulidade no processo penal: restrições à ampla defesa em matéria sumulada nas cortes superiores brasileiras. Belo Horizonte: D´Plácido, 2019.
Lima, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal, 6 ed, Juspodivm
José Osmar Coelho é Advogado, especialista em Direito Militar pela Universidade Cruzeiro do Sul, especialista em Ciências Criminais pela Universidade Cândido Mendes, especialista em Direito Constitucional pela Faculdade de Estudos Administrativos de Minas Gerais, FEAD, Especialização em Política e Estratégia pela Universidade do Estado da Bahia, MBA em Gestão da Inteligência Estratégica pela Faculdade Batista Brasileira, Professor de Pós Graduação de Direito Penal e Processo Penal Militar, membro fundador do Instituto baiano de Direito Militar.