O Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, apreciando o tema 1.200 da repercussão geral, conheceu do agravo e negou provimento ao recurso extraordinário. Foram fixadas as seguintes teses:
"1) A perda da graduação da praça pode ser declarada como efeito secundário da sentença condenatória pela prática de crime militar ou comum, nos termos do art. 102 do Código Penal Militar e do art. 92, I, "b", do Código Penal, respectivamente.
2) Nos termos do artigo 125, § 4º, da Constituição Federal, o Tribunal de Justiça Militar, onde houver, ou o Tribunal de Justiça são competentes para decidir, em processo autônomo decorrente de representação do Ministério Público, sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças que teve contra si uma sentença condenatória, independentemente da natureza do crime por ele cometido".
Tudo nos termos do voto do Relator Min. Alexandre de Moraes. ARE 1320.774, julgado pelo Plenário, em Sessão Virtual de 16.6.2023 a 23.6.2023.
Pois bem, a questão diz respeito à desnecessidade de procedimento específico para fins da perda da graduação de praça militar estadual e, leva em conta o previsto no art. 102, do Código Penal Militar[1] e, ao mesmo tempo o disposto no art. 92, I, do Código Penal[2]. Leva em conta igualmente previsão semelhante em leis especiais, como a tortura[3], ou o abuso de autoridade[4], razão pela qual vale a pena analisar algumas questões decorrentes desta importante decisão.
EXCLUSÃO DAS FORÇAS ARMADAS (FORÇAS AUXILIARES) versus PERDA DO CARGO OU FUNÇÃO PÚBLICA
Pois bem, a decisão dada ao Tema 1200 pelo STF operou uma interpretação sistemática ao art. 102 do Código Penal Militar – que é uma pena acessória (CPM, art. 98, IV) decorrente da condenação a mais de 2 anos em crime militar. Colocou-a no mesmo patamar do art. 92, I, do Código Penal comum – onde é um dos efeitos da condenação quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública [alínea a] ou, quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos nos demais casos [alínea b].
Em qualquer das hipóteses, a perda do cargo ou a exclusão da corporação sofrida pelo militar não são automáticas, devendo ser motivadamente declarada na sentença (CP, art. 92, parágrafo único; CPM, art. 107; Lei 13.869/209, art. 4º, parágrafo único).
Existe, portanto, uma identidade entre a “graduação” das praças militares estaduais e o “cargo ou função pública”, que são perdidos com a condenação criminal. Ora, se volvermos os olhos para o art. 20, da Lei 6.880/1980[5], veremos que o cargo militar é um conjunto de atribuições, deveres e responsabilidades cometidos a um militar em serviço ativo, e que o cargo militar, a que se refere este artigo, é o que se encontra especificado nos Quadros de Efetivo ou Tabelas de Lotação das Forças Armadas ou previsto, caracterizado ou definido como tal em outras disposições legais (§ 1º). E, nos termos do seguinte art. 23, função militar é o exercício das obrigações inerentes ao cargo militar. Já o anterior art. 16, § 3º, assevera que graduação é o grau hierárquico da praça, conferido pela autoridade militar competente. As forças militares estaduais têm disposições estatutárias semelhantes, já que são, inclusive por mandamento constitucional, força auxiliar e reserva do Exército Brasileiro. Trocando em miúdos, existe uma identidade do cargo militar com a graduação da praça, por exemplo, o sargento, que poderá estar exercendo a função de almoxarife, ou, de Comandante de Destacamento de um município menor, ou até mesmo respondendo pelo Comando de um Pelotão em razão da falta temporária no efetivo de oficiais, algo que sói acontecer nas polícias militares. Guardadas as devidas proporções em face de suas peculiaridades, o mesmo poderá ocorrer em sede de Corpo de Bombeiros.
Cabe aqui se valer do silogismo feito por Semmer Neto e Bóing quando discorreram sobre as prerrogativas constitucionais dos militares estaduais, afirmando que “o cargo está para o servidor público como o posto [graduação] está para o oficial [praça]” ... “o oficial [praça] da polícia militar não recebe seus subsídios por ocupar o comando de um batalhão ou chefia de uma seção, mas sim por seu posto [graduação], que tem a mesma funcionalidade que o cargo público para o civil. O lugar ocupado pelo oficial [praça] se traduz pelo quadro organizacional (QO), cujas vagas são criadas por lei. Não é possível, portanto, separar posto [graduação] e cargo público que se confundem e são indissociáveis”.
“Assim é na seara dos servidores civis. Na Polícia Civil, a título de exemplo, o cargo público é de Delegado, cujas funções serão determinadas e temporárias, como a chefia de uma subdivisão ou delegacia regional. O recebimento de seus vencimentos é em razão de seu cargo público de Delegado e não em virtude de estar desempenhando determinada função pública”.[6]
Portanto, perdendo a sua graduação em razão de condenação criminal, a praça militar, de consequência, perde também seu cargo ou função pública. E isso pode ser declarado já na sentença condenatória de primeiro grau, seja na Justiça Militar, seja na Justiça comum, cabendo ao condenado levar sua irresignação em apelo à superior instância.
Em leis especiais, como a Lei 9.455, de 07.04.1997 – que define os crimes de tortura, a condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada, sendo efeito automático da sentença (art. 1º, § 5º). A perda da função pública da praça militar também pode ocorrer em razão de condenação pela prática de improbidade administrativa (Lei 8.429, de 02.06.1992, art. 20).
DA DESNECESSIDADE DE PROCEDIMENTO ESPECÍFICO PARA FINS DE PERDA DA GRADUAÇÃO DE PRAÇA MILITAR ESTADUAL PERANTE O TRIBUNAL COMPETENTE
Ao compatibilizar a perda da graduação da praça militar estadual em decorrência de sentença penal condenatória pela Justiça Militar ou pela Justiça comum, nos termos do Código Penal Militar e do Código Penal, e em razão em razão de idêntica previsão em legislação específica, o Supremo Tribunal Federal bateu o martelo sobre a desnecessidade de um procedimento específico para tanto, a ser instaurado perante o tribunal competente, cujo corolário se traduz pela 1ª tese fixada: " A perda da graduação da praça pode ser declarada como efeito secundário da sentença condenatória pela prática de crime militar ou comum, nos termos do art. 102 do Código Penal Militar e do art. 92, I, "b", do Código Penal, respectivamente”.
Mas o Supremo Tribunal Federal parece ter afirmado ao mesmo tempo, que a desnecessidade não significa que o procedimento específico para a perda da graduação da praça militar estadual não possa mais subsistir. É o que se deduz da 2ª tese fixada no mesmo julgamento do Tema 1200 da Repercussão Geral: “Nos termos do artigo 125, § 4º, da Constituição Federal, o Tribunal de Justiça Militar, onde houver, ou o Tribunal de Justiça são competentes para decidir, em processo autônomo decorrente de representação do Ministério Público, sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças que teve contra si uma sentença condenatória, independentemente da natureza do crime por ele cometido".
Ora, ao afirmar definitivamente a validade e compatibilidade do art. 102 do CPM e art. 92, I, ‘b’, do CP, no tocante à perda da graduação da praça militar estadual, a Suprema Corte já decidira com a 1ª tese, pela desnecessidade de um procedimento específico para tanto, ante o teor do art. 125, § 4º, da Constituição Federal.
Já em relação à efetiva aplicação da 2ª tese da repercussão geral, ela sugere duas possibilidades:
Na primeira delas, que a praça militar estadual foi condenada em pena privativa de liberdade a mais de 2 anos na Justiça Militar ou, a mais de 4 ou por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública na Justiça comum, e a sentença de primeiro grau não decretou a referida perda da graduação. Ora, nessa hipótese o Ministério Público sempre poderá apelar da decisão buscando a declaração de perda da graduação, e se esta ocorrer porque o tribunal julgou procedente o apelo, não há necessidade de se iniciar um novo processo específico.
Na segunda hipótese, transitando em julgado a sentença condenatória que não declarou a perda da graduação, o Ministério Público junto ao tribunal competente poderá ofertar a chamada representação pela perda da graduação perante o tribunal competente, o que já vinha ocorrendo, pela previsão regimental dos tribunais de justiça militar de Minas Gerais[7], São Paulo[8] e Rio Grande do Sul[9].
Em relação aos tribunais de justiça das demais unidades da Federação, lembramos já faz algum tempo, que foi atento ao problema, que o então Procurador-Geral de Justiça do Estado de Santa Catarina, Dr. Moacyr de Moraes Lima Filho, editou o Ato PGJ 1.342, de 01.11.1997, onde determinou aos Promotores de Justiça daquele Estado com atribuição nas áreas criminais que, tão logo transitada em julgado sentença penal condenatória que tenha imposto a Oficiais ou praças graduadas da PM pena privativa de liberdade superior a 2 (dois) anos, promovessem de imediato o encaminhamento das peças principais do respectivo processo-crime, tais como denúncia, defesa prévia, termo de declarações, alegações finais, sentença, acórdão, certidão de trânsito em julgado, devidamente autenticadas, à Procuradoria-Geral de Justiça do Estado, para o oferecimento de Representação junto ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado, visando o afastamento definitivo dos apenados dos quadros da PM estadual, providência dispensável na hipótese de praça graduado condenado já excluído da Corporação por ato administrativo. (Apud Jornal da AMAJME 12, nov./dez. 1997, p. 14-15)[10].
O TEMA 1200 DA REPERCUSSÃO GERAL E A PERDA DA GRADUAÇÃO PELA VIA ADMINISTRATIVA DISCIPLINAR
Finalmente, o julgamento do Tema 1200 sedimentou a questão da possibilidade de perda da graduação da praça militar estadual pela via administrativa disciplinar, o que, aliás, já foi sumulado pelo STF no verbete 673, relativizando no ponto o dispositivo constitucional atinente às praças militares estaduais: “O art. 125, § 4º, da Constituição não impede a perda da graduação de militar mediante procedimento administrativo[11].”
Para além da súmula, o Supremo Tribunal Federal já tinha como pacificada “ser possível a exclusão, em processo administrativo, de policial militar que comete faltas disciplinares, independentemente do curso de ação penal instaurada em razão da mesma conduta”, reconhecendo a repercussão geral no ARE 691.306-RG, Rel. Min. Cezar Peluso, Plenário, julgado em 23.08.2012, publicado no DJE 178 de 11.09.2012, Tema 565. Na ocasião, reafirmou-se jurisprudência da Corte, no sentido de que não há óbice à aplicação de sanção disciplinar administrativa antes do trânsito em julgado da ação penal, pois são relativamente independentes as instâncias jurisdicional e administrativa”. Eis a ementa do mencionado julgado:
SERVIDOR PÚBLICO. Policial Militar. Processo administrativo. Falta disciplinar. Exclusão da corporação. Ação penal em curso, para apurar a mesma conduta. Possibilidade. Independência relativa das instâncias jurisdicional e administrativa. Precedentes do Pleno do STF. Repercussão geral reconhecida. Jurisprudência reafirmada. Recurso extraordinário a que se nega provimento. Apresenta repercussão geral o recurso que versa sobre a possibilidade de exclusão, em processo administrativo, de policial militar que comete faltas disciplinares, independentemente do curso de ação penal instaurada em razão da mesma conduta.
O TEMA 1200 DA REPERCUSSÃO GERAL E A POSSÍVEL ALTERAÇÃO LEGISLATIVA
Pois bem, ao tempo em que o Supremo Tribunal Federal bateu o martelo sobre a questão da necessidade ou não de um procedimento específico para processar e julgar a representação pela perda da graduação das praças militares estaduais, a ser apresentada pelo Ministério Público perante o tribunal competente, em decorrência face do previsto no art. 125, § 4º, da Constituição Federal, verifica-se um movimento legislativo – avançado, no sentido de, além de garantir o procedimento específico que o STF julgou agora desnecessário para as praças militares estaduais, também o estende às praças das Forças Armadas.
O PL 2233/2022, do Senado Federal[12] (originário do PL 9.432/2017 na Câmara dos Deputados), que altera o Código Penal Militar, a fim de compatibilizá-lo com o Código Penal, e com a Constituição Federal, deu uma nova redação ao art. 102:
Exclusão das instituições militares e da perda da graduação
Art. 102. A condenação de praça a pena privativa de liberdade por tempo superior a dois anos, pelos crimes comuns e militares, pode acarretar na sua exclusão das instituições militares, desde que submetida, mediante processo específico, ao crivo do Tribunal Militar competente.
§ 1º Os militares condenados por crimes comuns e militares somente perderão a graduação por meio de processo específico no Tribunal de Justiça Militar.
§ 2º Nas unidades da Federação em que não houver o Tribunal de Justiça Militar, o processo específico será de competência do Tribunal de Justiça do Estado.
§ 3º Aplica-se ao processo específico de que trata este artigo o mesmo procedimento destinado aos oficiais. (NR)
Não é difícil de constatar que o PL 2233/2022 do Senado Federal está na contramão do Tema 1200 da Repercussão Geral julgado pelo STF, pois transforma a pena acessória de “exclusão das Forças Armadas” em “exclusão das instituições militares”, conceito mais amplo em que se incluem as forças militares estaduais, ao mesmo tempo em que torna tal pena acessória facultativa, caracterizada pela expressão “pode acarretar”, impondo um “processo específico ao crivo do tribunal competente”.
Mais que isso, o § 1º do proposto novo art. 102 do CPM, cria a garantia de que as praças militares, federais ou estaduais, somente perderão a graduação quando condenados por crime comum ou militar, por meio do processo específico no Tribunal de Justiça Militar ou, nos termos do § 2º, no Tribunal de Justiça. O § 3º, por sua vez, garante às praças o mesmo procedimento destinado aos oficiais.
Não se vai aqui analisar a proposta legislativa, isso irá acontecer com certeza se ela for aprovada e a nova lei sancionada, e eventual discussão deverá chegar ao STF, a quem caberá a última palavra.
Jorge César de Assis é Advogado inscrito na OAB-PR. Membro aposentado do Ministério Público Militar da União. Integrou o Ministério Público paranaense. Oficial da Reserva Não Remunerada da Polícia Militar do Paraná. Sócio Fundador da Associação Internacional das Justiças Militares – AIJM. Membro correspondente da Academia Mineira de Direito Militar e da Academia de Letras dos Militares Estaduais do Paraná – ALMEPAR. Coordenador da Biblioteca de Estudos de Direito Militar da Editora Juruá. Administrador do site JUS MILITARIS - www.jusmilitaris.com.br.
NOTAS
[1] Art. 102. A condenação da praça a pena privativa de liberdade, por tempo superior a dois anos, importa sua exclusão das forças armadas.
[2] Art. 92 - São também efeitos da condenação: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) I - a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo: (Redação dada pela Lei nº 9.268, de 1º.4.1996) a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública; b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos nos demais casos. (Incluídos pela Lei nº 9.268, de 1º.4.1996).
[3] Lei 9455, de 07.04.1997, art. 1º Constitui crime de tortura: (...) § 5º A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada. Com a edição da Lei 13.491/2017, a tortura, desde que cometida em uma das hipóteses do inciso II, do art. 9º, do CPM torna-se crime militar por extensão, e seu processo e julgamento corre perante a Justiça Militar.
[4] Lei 13.869, de 05.09.2019, dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade, art. 4º São efeitos da condenação: (...) III - a perda do cargo, do mandato ou da função pública.
[5] Estatuto dos Militares.
[6] OING, Élio; SEMMER NETO, José. Vitaliciedade ou estabilidade; as prerrogativas constitucionais dos militares estaduais. Revista do Ministério Público nº 38, novembro de 2022, pp. 44-45.
[7] RITJMMG, Art. 12. Compete ao Tribunal Pleno: I - processar e julgar originariamente: (...) e) representação para perda da graduação.
[8] RITJMSP, Art. 99. A perda do posto e da patente dos oficiais e a perda da graduação das praças serão decididas pelo Pleno.
[9] RITJMRS, Art. 6º – Ao Tribunal de Justiça Militar compete: (...) VII – processar e julgar originariamente: (...) e) a representação para decretação da perda da graduação das praças da Brigada Militar;
[10] ASSIS, Jorge Cesar de. Direito Militar – Aspectos penais, processuais penais e administrativos, 4ª edição, Curitiba: Juruá, 2021, p. 214.
[11] Súmula 673 aprovada na Sessão Plenária de 24/09/2003. Publicada no DJ de 13/10/2003.
[12] Relator o Senador Hamilton Mourão.
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