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  • Jorge Cesar de Assis

Os PMs de Roraima e a violação do território venezuelano

A imprensa brasileira noticiou que em 24 de março de 2023 – uma quarta feira, ocorrera a detenção em território venezuelano de integrantes de uma guarnição da Polícia Militar de Roraima, mais especificamente do Grupamento Independente de Intervenção Rápida e Ostensiva (GIRO). Os PMs do GIRO foram vistos em vídeos e imagens que circularam nas redes sociais sendo abordados e detidos por soldados do exército venezuelano, após ultrapassarem a fronteira entre Santa Elena de Uairén, na Venezuela e, Pacaraima no Brasil. Tanto a viatura, como armamento, munição e equipamentos dos policiais militares foram apreendidos naquela ocasião.


Consta que a viatura estava atuando no município de Pacaraima, cidade fronteiriça entre os dois países, na Operação Hórus, destinada à apreensão de drogas e contrabando na região. A operação, que faz parte do programa Guardiões das Fronteiras, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, monitora a saída irregular de produtos lícitos e ilícitos do país através do transporte rodoviário.

Após uma negociação com as autoridades brasileiras, os policiais militares foram liberados no domingo seguinte, 26 de março, juntamente com a viatura, armamento e equipamento apreendidos.


Conforme noticiado na imprensa, de acordo com a corporação, o retorno ocorreu com a presença de autoridades venezuelanas e brasileiras. O comandante-geral da PMRR, coronel Miramilton, o comandante da Região Estratégica de Defesa Integral Guayana general Maior Alfredo Román Parra Yarza e o comandante da Zona Operativa de Defesa Integral Bolívar, general de Divisão Julmer Rafael Ochoa Romero estiveram presentes. O comandante do Comando de Zona da Guarda Nacional Bolivariana do Estado Bolívar Rafael José Hernández Aguirre e o diretor de Operações da Redi Guayana, general de Brigada Lorenzo Manzanares também participaram da ação.


O encontro possibilitou o alinhamento entre as forças policiais do Brasil, Venezuela e do Estado de Roraima para traçar metas para um trabalho em conjunto em operações na fronteira, além de estabelecer e fortalecer os laços entre os Comandos", informou a PM. Em nota, a PMRR esclareceu que o ingresso dos militares no país vizinho ocorreu por uma "intercorrência policial" e, após o incidente, deve fazer uma reavaliação nos procedimentos de operações de fronteira, para evitar qualquer ocorrência semelhante. "O objetivo é aperfeiçoar a gestão integrada das instituições envolvidas com a segurança pública nas áreas limites da fronteira, na busca contínua por diagnósticos precisos, além do conhecimento e troca de experiências com policiais que já atuam no ambiente[1].


Pois bem, uma vez contextualizados os fatos, resta saber se existe, por parte dos policiais militares brasileiros, indícios do cometimento de algum crime em tese e, de consequência, qual seria a Justiça competente para o processamento e julgamento da ação penal e os requisitos processuais para tanto.


Desde já se diga que a eventual ofensa seria contra a soberania da Venezuela, com a violação indevida de seu território pelos militares brasileiros. No Código Penal comum brasileiro não iremos encontrar previsão de algum tipo penal aplicável à espécie. Porém, o art. 139, do Código Penal Militar assim dispõe em seu Título I – Dos Crimes contra a Segurança Externa do País:


Violação de território estrangeiro


Art. 139. Violar o militar território estrangeiro, com o fim de praticar ato de jurisdição em nome do Brasil:

Pena - reclusão, de dois a seis anos.


Necessário assinalar que a hipótese ora examinada é de crime de perigo. A norma penal não tutela a integridade estrangeira e sim, a segurança externa de nossa Pátria do perigo que poderá advir da conduta ilícita do militar, conforme advertiu o saudoso Célio Lobão[2]. É crime propriamente militar, ratione personae, e somente militar pode cometê-lo. É igualmente de natureza formal, pois não exige a produção de um resultado. Enio Rossetto considera que o militar estadual e o civil podem concorrer para o crime como coautores ou partícipes[3].


Pois bem, já faz um certo tempo que imaginei a situação acima – que agora é real, com o exemplo dado à época em meu livro, em sua 7ª edição [já estamos na 11ª e o exemplo permanece]. Dizia eu nos comentários ao art. 139 do Código Penal Militar:


Como exemplo, podemos imaginar o militar que serve em fronteira com o Brasil, que, por iniciativa própria, viole território estrangeiro (Argentina, Paraguai, Uruguai) para capturar preso que interesse à justiça Brasileira, militar ou comum, ou sequestrar bens do devedor brasileiro. Se tal violação for feita com uma fração de tropa, e esta for surpreendida, poderá ocorrer uma reação do país vizinho com sérias consequências para a Nação [4].


Superada a fase inicial da adequação típica (CPM, art. 9º, inciso II, alínea ‘c’, 1ª figura[5]), o próximo passo é definir a competência para eventual julgamento do crime em tese.


Também já me manifestei em outro espaço, acerca dos crimes praticados no exterior por militares das Forças Auxiliares, mas a análise, baseou-se em hipotéticos casos de atuação dos militares estaduais em operações da Organização das Nações Unidas - ONU.


Até mesmo pela ausência de casos concretos a questão não se mostra tão simples assim sendo que a escassa doutrina se manifesta hipoteticamente.A nota de destaque na análise da questão é definir se o militar estadual que estiver prestando serviço nas missões da ONU estará, ao cometer um delito em território estrangeiro, ofendendo as instituições federais ou estaduais já que parece não restar dúvidas que ele representará o Brasil.


Em primeiro lugar há que se considerar que as missões de paz da ONU têm basicamente três vertentes: o componente civil, o componente militar e o componente policial. Os policiais, sejam eles civis ou militares integram o componente policial, subordinados ao Police Comissioner, o qual é, por sua vez, subordinado ao Representante do Secretário Geral na missão (SRSG, sigla em inglês). Portanto, as Forças Auxiliares atuam da mesma maneira que o fazem no Brasil, garantindo a lei e a ordem. Têm, nesse sentido, um relevante papel na supervisão, coordenação e controle das forças policiais locais, sendo responsáveis pela capacitação dessas forças.


As FFAA não controlam as forças policiais, entretanto o Exército Brasileiro, por meio do Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil (CCOPAB) e do Comando de Operações Terrestres (COTER) exercem um papel de preparo dos policiais que se dirigem a missões de paz. Nesse escopo, é de se destacar a missão do CCOPAB: “Apoiar a preparação de militares, policiais e civis brasileiros e de nações amigas para missões de paz e desminagem humanitária”.


Em tese, como o policial militar não estará incorporado aos efetivos da Força Terrestre, se coloca na mesma situação de um policial civil também atuando na ONU, que cometa crime no exterior, ocasião em que incidirá o princípio da extraterritorialidade previsto no art. 7º, inc. II, “b”, do CP comum, ou seja, estarão sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro, os crimes praticados por brasileiro, desde que observadas as condições previstas no § 2º do referido artigo. A competência, seria então, da Justiça Federal comum, enquadrando-se no art. 109, inc. IV da Constituição Federal (crimes em detrimento de bens, serviços ou interesses da União)[6].


Mas o raciocínio acima não se presta para o caso em análise, não se trata de missão da ONU, além do que, tratando-se de crime militar, o processamento e julgamento escapa da Justiça Federal, ante a ressalva constante do mandamento do art. 109, inciso IV, da Constituição Federal.


Ora, também não seria a competência da Justiça Militar Estadual, porque os bens jurídicos por ela tutelados são aqueles que são caros às instituições militares próprias – polícias militares e corpos de bombeiros militares. A Justiça Militar Estadual não tutela a soberania nem muito menos a segurança externa do Brasil, nem suas relações com países vizinhos. A competência, portanto, para o processamento e julgamento, seria da Justiça Militar da União.


Mas ainda que definida a competência em favor da Justiça Militar da União, não se pode olvidar que a questão se apresenta com um óbice de natureza processual, afinal, nos termos do art. 29 do Código de Processo Penal Militar - CPPM a ação penal é pública e somente pode ser promovida por denúncia do Ministério Público Militar. Já o art. 31 do CPPM, assevera que nos crimes previstos nos artigos 136 a 141 do Código Penal Militar (estamos tratando do art. 139), a ação penal; quando o agente for militar, depende de requisição, que será feita ao procurador-geral da Justiça Militar, pelo Ministério[7] a que o agente estiver subordinado; no caso do art. 141 do mesmo Código, quando o agente for civil e não houver coautor militar, a requisição será do Ministério da Justiça.


Ou seja, o termo “requisição” previsto na norma processual penal militar, frente ao mandamento constitucional do art. 129, I (promoção exclusiva da ação penal pública), associado ao art. 127, § 1º (independência funcional), deve ser entendido como “notícia-crime”, não sendo crível aceitar-se que uma norma arcaica, de mais de 50 anos atrás possa atribuir a alguma autoridade o poder de requisitar (exigir; quem é requisitado tem o dever de cumprir a requisição) do Ministério Público que inicie determinada persecução penal.


Assim, a pretensão de uma “requisição”, deve ser entendida como apresentação de notícia-crime, ou representação, dirigida ao Ministério Público Militar, que exercerá, inclusive, o juízo de admissibilidade do pedido.


Mas quem deve fazer a representação ao Ministério Público Militar, em um caso de cometimento em tese do crime do art. 139, do Código Penal Militar – violação de território estrangeiro?


Ora, sendo o(s) autor(es) policiais militares, é óbvio que não estavam subordinados a nenhuma das Forças Armadas, nem mesmo ao Exército do qual são forças auxiliares e reserva, mas sim ao Governador do Estado (CF, art. 144, § 6º); estavam em serviço de policiamento ostensivo na preservação da ordem pública conferida constitucionalmente (CF, art. 144, § 5º). Também não eram civis, pois sua condição de militar estadual deriva da própria Constituição (CF, art. 42). Uma interpretação conforme a Constituição e as leis enseja a conclusão de que, eventual oferecimento de notícia-crime (representação) ao Procurador-Geral da Justiça Militar deverá ser feito pelo Ministro da Defesa.


Claro, seria uma notícia-crime (representação) precedida de uma avaliação essencialmente política da parte do Governo Federal, tendo em vista os altos interesses da Nação.


A entrega formal dos policiais militares, quatro dias após a detenção, em uma solenidade oficial na fronteira sugere que não houve maiores danos diplomáticos além do incidente em si mesmo considerado.


As relações entre os dois países estavam suspensas desde 2019, quando o então presidente Jair Bolsonaro resolveu reconhecer o então líder opositor Juan Guaidó como “presidente interino” da Venezuela[8].


O restabelecimento das relações diplomáticas do Brasil com a Venezuela é visto como um acerto por uma parcela de especialistas em relações internacionais[9], ainda se mostra cedo para uma conclusão definitiva sobre esse aspecto. Mas foi essa retomada de relações, com certeza que levou a uma rápida e satisfatória solução do incidente entre a fronteira dos dois países.


Jorge Cesar de Assis é Advogado inscrito na OAB-PR. Membro aposentado do Ministério Público Militar da União. Integrou o Ministério Público paranaense. Oficial da Reserva Não Remunerada da Polícia Militar do Paraná. Sócio Fundador da Associação Internacional das Justiças Militares – AIJM. Membro correspondente da Academia Mineira de Direito Militar e da Academia de Letras dos Militares Estaduais do Paraná – ALMEPAR. Coordenador da Biblioteca de Estudos de Direito Militar da Editora Juruá. Administrador do site JUS MILITARIS - www.jusmilitaris.com.br.


NOTAS

[2] FERREIRA, Célio Lobão. Direito Penal Militar, Brasília, 1975, p. 38.

[3] ROSSETTO, Enio Luiz. Código Penal Militar Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 460.

[4] ASSIS, Jorge Cesar de. Comentários ao Código Penal Militar. 7ª edição, revista e atualizada, Curitiba: Juruá, 2010, p.299.

[5] Os crimes previstos no Código Penal Militar, praticados por militar em serviço.

[6] ASSIS, Jorge Cesar de. Comentários ao Código Penal Militar.11ª edição, revista e atualizada, Curitiba: Juruá, 2021. Uma análise detalhada sobre a competência para processar e julgar crimes cometidos por militares fora do território brasileiro se vê das páginas 92 a 97.

[7] Ao tempo da edição do CPPM, o termo “Ministério” se referia a cada uma das Forças Armadas, o que perdurou até a criação do Ministério da Defesa. Nos termos do art. 19, da LC 97/99, até que se proceda à revisão dos atos normativos pertinentes, as referências legais a Ministério ou a Ministro de Estado da Marinha, do Exército e da Aeronáutica passam a ser entendidas como a Comando ou a Comandante dessas Forças, respectivamente, desde que não colidam com atribuições do Ministério ou Ministro de Estado da Defesa.

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