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  • Jorge Cesar de Assis

O Supremo Tribunal Federal e a competência para julgar militares

eventualmente participantes dos atos criminosos de 08 de janeiro


1 - Introdução ao tema

Chamou a atenção da comunidade jurídica – e da imprensa, a decisão tomada pelo Min. Alexandre de Moraes, no Inquérito 4.923-DF[1], sob sua relatoria, versando sobre aspectos de competência da Justiça Militar.

Constou da r. Decisão que a Polícia Federal solicitou autorização para a instauração de procedimento investigativo para apuração de autoria e materialidade de eventuais crimes cometidos por integrantes das Forças Armadas e Polícias Militares relacionados aos atentados contra a Democracia que culminaram com os atos criminosos e terroristas do dia 8 de janeiro de 2023, da seguinte maneira: “que seja reconhecida a atribuição investigativa da atuação da Polícia Federal e jurisdicional do Supremo Tribunal Federal para processamento do presente caso em especial em relação aos servidores militares das forças armadas e polícia militar”.


A Polícia Federal informou ainda que, com a deflagração da 5ª fase da Operação Lesa Pátria, notadamente através das decisões proferidas nos autos da Pet 10.921/DF e 10.931/DF, os policiais militares ouvidos indicaram possível participação/omissão dos militares do Exército Brasileiro, responsáveis pelo Gabinete de Segurança Institucional e pelo Batalhão da Guarda Presidencial.


Defendeu ainda a PF que, no caso, a apuração de autoria e materialidade de eventual crime cometido por militar das Forças Armadas fosse da atribuição investigativa da Polícia Federal, a teor do art. 144, § 1º, da Constituição Federal, eis que a SUPREMA CORTE determinou a deflagração da persecutio criminis para a apuração dos delitos previstos nos arts. 359-L (abolição violenta do Estado Democrático de Direito) e 359-M (golpe de Estado), do Código Penal, além de outros conexos.


Para o Ministro Relator, em total e absoluta observância aos princípios do Devido Processo Legal e do Juiz Natural, a competência do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL para a presidência dos inquéritos que investigam os crimes previstos nos artigos 2º, 3º, 5º e 6º (atos terroristas, inclusive preparatórios) da Lei 13.260/16, e nos artigos 147 (ameaça), 147-A, § 1º, III, (perseguição), 163 (dano), art. 286 (incitação ao crime), art. 250, § 1 º, inciso I, alínea ''b" (incêndio majorado), 288, parágrafo único (associação criminosa armada), 359-L (abolição violenta do Estado Democrático de Direito), 359-M (golpe de Estado), todos do Código Penal, não distingue servidores públicos civis ou militares, sejam das Forças Armadas, sejam dos Estados (policiais militares).


Ao se referir à competência da Justiça Militar, assentou que o Código Penal Militar não tutela a pessoa do militar, mas sim a dignidade da própria instituição das Forças Armadas competência ad institutionem, conforme pacificamente decidido pela SUPREMA CORTE ao definir que a Justiça Militar não julga "CRIMES DE MILITARES", mas sim "CRIMES MILITARES" (HC 118047, Rel. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, DJe de 21/11/2013; HC 107146, Rel. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJe de 22/6/2011; HC 100230, Rel. AYRES BRITTO, Segunda Turma, DJe de 24/9/2010; CC 7120, Rel. CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, DJ de 19/12/2002).


A possibilidade de ação / omissão criminosa da parte de militares nos ataques à sede dos Três Poderes infelizmente não parece difícil de se evidenciar. Ao revés, transmitida ao vivo e em cores para o Brasil e para o Mundo, a horda criminosa – em vários momentos, pareceu não encontrar resistência efetiva da parte daqueles a quem cabia por dever legal, a proteção não só do patrimônio, mas principalmente da independência e do livre exercício dos Poderes da República.


2 - Da caracterização do crime militar


Como se sabe, a Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei, e assim, o ponto de partida para esta análise é o Código Penal Militar - CPM.


Já assinalei em outro espaço, que com o advento da Lei 13.491/2017, houve um impacto no tocante ao conceito de crime militar impróprio. Ao dar ao inciso II, do art. 9º, deste Código uma redação muito mais ampla, a alteração legislativa mudou o conceito até então pacífico sobre o que seria o crime militar impróprio. Este, sempre se caracterizava quando um fato típico estivesse previsto, ao mesmo tempo no CPM embora também estivesse, com igual definição na lei penal comum. Os exemplos eram facilmente identificáveis: furto, lesão corporal, injúria, difamação, calúnia etc. Agora, o legislador abandonou a expressão “embora também o sejam com igual definição na lei penal comum”, para agasalhar a expressão “e os previstos na legislação penal”, significando que não mais existe necessidade de identidade de definição penal, criando outra categoria de crime militar, que passa a ser, qualquer crime previsto na legislação penal [Código Penal e legislação extravagante específica]. a ensejar o processo e julgamento por uma Justiça Especial, a castrense[2].


Por sua vez, a identificação do crime militar enseja um exercício de reflexão que comporta fases distintas e consecutivas (tipificação indireta), a saber: a) verificar se o fato apontado como delituosos encontra identidade no Código Penal Militar ou na legislação penal; b) verificar se esse fato agora tido como delituoso foi praticado em uma das hipóteses previstas no art. 9º do CPM; c) verificar a existência de eventual causa excludente de criminalidade pois o tipo legal indicia a antijuridicidade e; d) analisar a efetiva ofensa à instituição militar considerada como elemento determinante da caracterização de crime militar e, de consequência, da determinação de competência da Justiça Castrense.


Isto posto, passemos um olhar sobre as possibilidades de ocorrência de crimes praticados por militares – federais ou estaduais, no fatídico dia 08 de janeiro de 2023.


3 - Crimes cometidos em 08 de janeiro, por militares federais ou estaduais que se encontravam de folga


É possível que militares de folga tenham participado dos atos criminosos de 08 de janeiro na Praça dos Três Poderes. Para muitos deles essa possibilidade tornou-se certeza ao serem identificados, inclusive por autogravação em vídeos compartilhados pelas redes sociais, configurando a autoprodução de provas contra si mesmo.


Os crimes de que possam ter participação serão, conforme já referido acima, previstos nos artigos 359-L (abolição violenta do Estado Democrático de Direito), 359-M (golpe de Estado), todos do Código Penal são o ponto central da investigação, claro, em conexão com outros tantos, como os previstos nos artigos 2º, 3º, 5º e 6º (atos terroristas, inclusive preparatórios) da Lei 13.260/16, e nos artigos 147 (ameaça), 147-A, § 1º, III, (perseguição), 163 (dano), art. 286 (incitação ao crime), art. 250, § 1 º, inciso I, alínea ''b" (incêndio majorado), 288, parágrafo único (associação criminosa armada).


Nos graves crimes eventualmente praticados por militares – federais ou estaduais, que se encontravam de folga, trajados civilmente, deve ser analisado se ocorreu efetiva ofensa à instituição militar considerada, lembrando que a Justiça Militar tem em vista a natureza dos bens juridicamente tutelados como fator determinante de sua competência: a tutela das instituições militares.


Cabe destacar que, conforme anotado na r. Decisão do Min. Alexandre de Moraes, “estando o processo afeto, ratione materiae , à jurisdição do Supremo Tribunal Federal, e cabendo à Polícia Federal atuar junto à referida Corte na condição de polícia judiciária da União (art. 144, IV, da CF/88), incumbência constitucional que exerce com exclusividade, restam afastadas, no presente caso, potenciais divergências quanto a eventual atribuição investigativa militar, na medida em que, reitere-se, (i) o caso trata de crime contra a ordem política e social; (ii) a competência jurisdicional é do Supremo Tribunal Federal, e não da Justiça Castrense”.


Relembre-se que, nos termos do art. 144, § 1º, da Constituição Federal, é competência da Polícia Federal: I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei; (...) IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.


Infração penal contra a ordem política e social implica dizer que se trata de crime político. Nem a CF nem a legislação penal definem crime político.

Todavia, existe consenso na doutrina e na jurisprudência, que crime político é aquele que viola o Estado Democrático de Direito. Os crimes políticos estavam previstos na antiga Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/1983) agora revogada. A Lei de Segurança Nacional inicialmente trazida a lume pelo DL 898/69 previa até pena de morte.


Com a revogação da LSN pela Lei 14.197/2021, foi acrescentado o Título XII na Parte Especial do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), relativo aos crimes contra o Estado Democrático de Direito: Capítulo I - DOS CRIMES CONTRA A SOBERANIA NACIONAL, arts. 359-I até 359-K; Capítulo II - DOS CRIMES CONTRA AS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS: arts. 359-L até 359-M; Capítulo III - DOS CRIMES CONTRA O FUNCIONAMENTO DAS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS NO PROCESSO ELEITORAL: arts. 359-N e 359-P; Capítulo IV: DOS CRIMES CONTRA O FUNCIONAMENTO DOS SERVIÇOS ESSENCIAIS: art. 359-R.


Pela Lei 7.170/1983, a competência de processo e julgamento do crime político era da Justiça Militar (LSN, art. 30; CF/69, art.129, § 1º), com a apuração através de inquérito pela Polícia Federal (art. 31) ou IPM se o agente fosse militar (art. 32), ressalvada a competência originária do STF.


Com o advento da CF/1988, a competência passou a ser da Justiça Federal (art. 109, IV).


Não se tem dúvida de que a investigação desses atos criminosos está sendo presidida por Ministro do Supremo Tribunal Federal, o que, aliás, já foi referendado pelo Plenário da Corte. Para aqueles que não detém foro privilegiado, a competência será da Justiça Federal, com espeque no art. 109, competindo aos juízes federais processar e julgar: I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho; (...) IV - os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral.


Conquanto o julgamento e análise de crimes políticos, fique a cargo dos juízes federais, que são os competentes para julgar e processar os crimes políticos, compete ao Supremo Tribunal Federal analisar e julgar os recursos advindos de processos de crimes políticos, conforme preceitua a Constituição Federal (art. 102, II, ‘b’).


Assim, tendo o ataque sido contra o Estado Democrático de Direito (contra a ordem política e social; crime político), os militares, federais ou estaduais ou do Distrito Federal, que estando de folga, participaram dos atos criminosos de 08 de janeiro serão investigados pela Polícia Federal com a Presidência do Inquérito afeta ao STF, e julgados pela Justiça Federal, com recurso ordinário ao Supremo Tribunal Federal.


4 - Crimes comissivo por omissão cometidos, em tese por militares em serviço, nos atos criminosos de 08 de janeiro


Se a questão dos militares de folga participantes dos ataques às sedes dos Três Poderes não trouxe maiores dúvidas, a análise de eventual participação / omissão, por parte de militares federais ou estaduais que se encontravam em serviço naquele dia merece uma reflexão mais apurada, eis que poderemos estar frente aos chamados crimes comissivos por omissão, também chamados de omissão imprópria. Nos crimes comissivos por omissão ocorre a violação do dever jurídico de agir.


Pedimos vênia para trazer a lume para o que já nos referimos alhures:


Nestes crimes (comissivos por omissão) ao lado do preceito proibitivo (p. ex., não matar), existe o dever legal de agir. Surge, pois, a figura do Garantidor ou Garante do § 2º do art. 29 do Código Penal Militar, que é aquele que tem o dever jurídico de agir.


O Dever de Agir decorre: a) de quem tenha por lei a obrigação, como os policiais e os militares em relação com a sociedade; os pais em relação aos filhos menores; b) de outra forma, assumiu o encargo, como aquele que foi contratado especificamente para servir de guia, de guarda costa ou segurança pessoal; c) com o seu comportamento, criou o risco, como o militar que instrui os recrutas sob uso de granadas, e culmina por detoná-las pela falta de atenção e cuidado. Como não se pode afirmar que a omissão produza um resultado, pela razão de que “o nada causa nada”, o legislador penal militar estabeleceu no § 2º do art. 29, que a relação de causalidade nos crimes comissivos impróprios é normativa. Não existe nexo causal entre a abstenção e o resultado, mas entre o resultado e o comportamento que o agente estava juridicamente obrigado a fazer.


Ou, como leciona Celso Delmanto (1986, p. 20), a omissão (conduta humana negativa ou abstenção de agir) é plenamente relevante quando o omitente (a pessoa que deixa de agir) devia e podia agir para evitar o resultado. É necessária, portanto, a conjugação de dois fatores: que aquele que se omitiu tivesse o dever de agir e pudesse de fato agir (dever legal + possibilidade real). Tanto a consciência da obrigação de agir como a possibilidade real de fazê-lo, sem risco pessoal, devem estar presentes. Então, se não agir para evitar o resultado, poderá ser responsável por este, a título de dolo ou culpa.


Para Jorge Alberto Romeiro, a ilicitude surge porque o agente não impediu o crime, quando devia e podia fazê-lo; os crimes comissivos por omissão não são geralmente descritos, por definição, na lei, como os omissivos próprios, que se configuram com a só omissão do agente, independentemente de qualquer resultado que ele possa produzir. Diante de determinado resultado, decorrente de uma norma proibitiva [ex: não matar], é que se pode verificar a existência de um crime comissivo por omissão, apurando-se se foi causa do resultado uma omissão do agente que tinha o dever de impedi-lo (1994, p. 99).


A omissão parece ser mais relevante em relação aos policiais e aos militares, federais e estaduais. Nesse caso, o dever jurídico é cristalino, seja nas orientações constitucionais (finalidade das Forças Armadas e das Polícias Civis e Militares), seja nas determinações dos Códigos processuais penal e penal militar, estampadas no dever de prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito, ou seja insubmisso, ou desertor. Assim, se um PM. p. ex., andando pela rua, topar com um crime de homicídio ou, de assalto a banco, sempre terá o dever de impedir o resultado, mas a questão é saber se poderá agir (estava fazendo parte da guarnição de uma viatura, equipada e com armamento à altura para entrar na ocorrência) ou, não poderá agir (estava passando, desarmado, com a família etc.). Bem por isso, o § 2º do art. 29 do CPM deve ser usado com extrema cautela e somente quando inexistir previsão legal em contrário[3]


Pois bem, trazendo a análise para os fatos, indiscutível que alguns pontos merecem uma investigação isenta de ânimo, mas aprofundada, visando a imputação de responsabilidades onde houver, v.g., o aparente suporte da administração militar na instalação e manutenção de acampamentos ditos golpistas, em especial o que foi montado em frente ao Quartel-General do Exército de onde teriam partido um grande contingente de pessoas que participaram do ataque à sede dos Três Poderes [aliás, um prenúncio do que seria o 08 de janeiro já havia se realizado em 12 de dezembro, com ataque à sede da Polícia Federal, e terror nas vias públicas, com destruição e incêndio de veículos, imposição de medo na população - na sequência, desarmamento de bomba caseira em caminhão de combustível no aeroporto etc].


Também chama a atenção a facilidade com que as sedes dos Três Poderes foram invadidas, destruídas e saqueadas, isto considerando a existência do Batalhão da Guarda Presidencial - BGP, e do Gabinete de Segurança Institucional - GSI, primeiros encarregados da segurança das instalações dos próprios da Presidência da República e da integridade física do mais alto mandatário do País. A ação da Polícia Militar do Distrito Federal também está sendo questionada, posto que mostrada ao vivo pela imprensa alguns momentos até mesmo comprometedores como aquele em que policiais foram flagrados em atitude passiva próximos à horda que avançava para a Praça dos Três Poderes e uma demora efetiva em reagir à altura dos acontecimentos, o que permitiu toda a sorte de vandalismo.


O dever jurídico de agir dos militares tem, inclusive assento constitucional: as Forças Armadas, a defesa da Pátria, a garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem (art. 142); as Polícias Militares, a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública (art. 144, § 5º).


Portanto, se comprovada a participação / omissão imprópria de militares federais ou estaduais em serviço no dia 08 de janeiro de 2023, a competência para investigação é da Polícia Federal em inquérito presidido pelo STF – já que estamos tratando de crimes contra a ordem social, crimes contra o Estado Democrático de Direito, e o processo e julgamento será de competência será da Justiça Federal com recurso ordinário para o Supremo Tribunal Federal, ou da mais alta Corte do País no caso de envolvimento de autoridades que estão sob sua jurisdição. Claro, responderão pelos crimes que deixaram de evitar.


A competência não é da Justiça Militar, porque a Justiça Especializada não tutela o Estado Democrático de Direito e nem a ordem política e social, mas sim os valores das instituições militares, sejam elas federais ou estaduais. Percebam que estamos tratando de crimes que não estão previstos no Código Penal Militar, cuja discussão se dá em razão da alteração dada pela Lei 13.491/2017, que deu nova redação ao inciso II, do art. 9º, do CPM, que resultou o surgimento de uma nova categoria de crime militar, o crime militar por extensão.


Todavia, anote-se, enquanto as alíneas ‘a’ até ‘d’, do referido inciso II, retratam hipóteses de cometimento de crime praticado por militar em situação de atividade (da ativa) contra pessoas em várias situações, a alínea ‘e’ retrata a hipótese de o delito ser cometido por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar.


Não parece haver dúvida que no fatídico episódio de 08 de janeiro, nenhum patrimônio da administração militar foi afetado.


Já no que diz respeito à ordem administrativa militar, o saudoso Célio Lobão lembrou que segundo o que decidiu o Supremo Tribunal Federal, são infrações que atingem a organização, existência e finalidade das Forças Armadas, bem como o prestígio moral da administração militar[4]. Refere-se à atividade da instituição militar na consecução de suas finalidades legais e constitucionais e, adotando o ensinamento de Manzini, diz respeito ao normal funcionamento, ao prestígio, decoro funcional e respeito à instituição militar[5].


Com toda certeza, a defesa do Estado Democrático de Direito e da Ordem Política e Social brasileira não se insere dentro do conceito de ordem administrativa militar, afastada, portanto, a competência da Justiça Militar sobre esse gravíssimo episódio maculador da História do Brasil.


À guisa de ilustração, já nos manifestamos sobre a inexistência de crimes militares eleitorais, no exemplo do militar em serviço, que venha causar dano físico na urna eletrônica usada na votação, no dia das eleições, e que incidirá no crime previsto art. 72, III, da Lei 9.504/1997. O fato de estar em serviço, não configura a hipótese de crime militar em razão da previsão contida no art. 9, II, “c”, do Código Penal Militar, exatamente pelo fato da Justiça Militar não possuir competência para processar e julgar crimes eleitorais.


Na ocasião procuramos demonstrar que que a Justiça Militar tutela os valores que são caros para as instituições armadas (Forças Armadas e Forças Auxiliares), estruturadas que são na disciplina e hierarquia e, a Justiça Eleitoral tutela os valores que são caros para o exercício pleno da cidadania, umbilicalmente ligados ao pluralismo político, à nacionalidade e suas distinções, à soberania popular, às condições de elegibilidade etc, competência que, a toda evidência, refoge da Justiça Castrense.


Nem muito menos tutela o regular desenvolvimento do processo eleitoral. Todo esse conjunto protetivo está constitucionalmente outorgado para a Justiça que lhe é própria: a Justiça Eleitoral!


Mesmo porque, e esta seria uma situação fática que afetaria inclusive o princípio do juiz natural, na hipótese [aqui aventada apenas à guisa de argumentação] de se aceitar que os crimes eleitorais, em tese cometido por militares, nas condições previstas no inciso II, do art. 9º do CPM sejam julgados pela Justiça castrense implicaria, naturalmente, em reconhecer que seu processo e julgamento caberia ao Conselho de Justiça, sequer ao magistrado togado de forma monocrática[6].

Ora, o Conselho de Justiça é um órgão jurisdicional colegiado sui generis, formado por um juiz togado (auditor) e quatro juízes militares, pertencentes à força a que pertencer o acusado. Tem previsão constitucional: arts. 122, II e; 125, § 3º. É sui generis em razão de sua divisão prevista no art. 16 da Lei 8.457/1992 (LOJMU), aplicável igualmente à Justiça Militar Estadual.


Vejamos. O Conselho Permanente de Justiça, que processa e julga os crimes militares cometidos por praças ou civis, tem seus juízes renovados a cada trimestre, sem vincular os juízes militares ao processo nos quais atuarem naquele período. Já o Conselho Especial de Justiça, destinado a processar e julgar oficiais até o posto de Coronel ou Capitão de Mar e Guerra, tem seus juízes militares escolhidos para cada processo. A composição heterogênea do Conselho é fundamental para a Justiça Militar.


Assim, e apenas para argumentar, o julgamento desse “crime militar eleitoral” seria da competência do Conselho de Justiça. Em relação à Justiça Militar Federal, a Lei 8.457/1992 – Lei de Organização da Justiça Militar da União, a jurisdição monocrática do Juiz Federal da Justiça Militar está dirigida aos crimes militares cometidos por civis, enquanto em relação à Justiça Militar Estadual, a Emenda Constitucional 45/2004, conferindo ao Juiz de Direito do Juízo Militar a jurisdição monocrática, o fez, tão-somente, em relação aos crimes militares cometidos contra civis, ressalvada a competência do Tribunal do Júri e, em relação às ações judiciais contra os atos disciplinares militares.


Se a hipótese já se apresenta como esdrúxula, nunca é demais lembrar que, não basta ao aplicador da lei penal militar, realizar o exercício de tipicidade indireta[7] para verificar se o fato posto em análise é ou não crime militar. Há que se verificar, sempre, a efetiva ofensa às instituições militares como elemento determinante para a caracterização do crime militar.


Inexistindo ofensa efetiva à instituição militar, de crime militar não se trata. A situação em relação aos crimes contra o Estado de Direito Democrático porventura praticados por ação / omissão de militares em serviço no dia 08 de janeiro será a mesma, não sendo crível que a Justiça Militar tutele os altos valores diretamente envolvidos com a Ordem Política e Social do Estado Brasileiro, o que implicaria aceitar que eventuais processos fossem processados e julgados pelos Conselhos de Justiça, suposição carente de suporte constitucional e legal.


5 - Outros crimes militares cometidos no contexto dos atos antidemocráticos de 08 de janeiro – ausência de conexão


Por fim, importa analisar a possibilidade de cometimento de crime militar em tese, praticado no dia 08 de janeiro, por militar da ativa ou da reserva remunerada ou reformado.


Como exemplo, pode ser citado um vídeo transmitido pelas redes sociais, onde um oficial superior da reserva remunerada do Exército aparece nas cenas dos ataques às sedes dos Poderes da República, xingando generais do Exército e as Forças Armadas com toda sorte de impropérios.


A mídia informou ter sido instaurado um inquérito policial militar de imediato para apurar as ofensas e, nesse caso, é mais do que evidente a competência da Justiça Militar para o processo e julgamento do feito.


Nos termos do art. 9º, inciso III, alínea ‘a’, do Código Penal Militar, consideram-se crimes militares em tempo de paz, os crimes praticados por militar da reserva, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, contra a ordem administrativa militar.


Em uma primeira análise é possível verificar a ocorrência de crimes militares (previstos no CPM) em tese, contra a honra, a saber: difamação[8], injúria[9], ofensa às forças armadas[10], levando-se em conta o aumento de pena pela circunstância de ter sido praticado contra superior e por meio que facilite a divulgação da calúnia, da difamação ou da injúria[11], não se olvidando da equivocidade da ofensa, prevista no art. 221 do Código Penal Militar, e, segundo o qual, se a ofensa é irrogada de forma imprecisa ou equívoca, quem se julga atingido pode pedir explicações em juízo. Se o interpelado se recusa a dá-las ou, a critério do juiz, não as dá satisfatórias, responde pela ofensa; ou o desacato a superior[12], todos ofensivos à disciplina e hierarquia e, de consequência, contra a ordem administrativa militar.


Nesse caso, independente do cometimento simultâneo de eventuais crimes contra o Estado Democrático de Direito em tese, a competência será da Justiça Militar, não se podendo falar em conexão, devendo os processos serem separados. Nesse sentido, o art. 101, do Código de Processo Penal Militar, estabelecendo as regras de determinação de competência por conexão ou continência, deixou claro em seu inciso I, que no concurso entre a jurisdição especializada e a cumulativa, preponderará aquela, sendo tal regra repetida no art. 78, do Código de Processo Penal comum[13]. Aliás, já em seu art. 1º, inciso III, o CPP deixou bem claro que o processo penal reger-se-á, em todo o território brasileiro, por este Código, ressalvados os processos da competência da Justiça Militar.


Com isso, pode-se concluir que os naqueles casos em que houve cometimento simultâneo de crime militar e crime contra o Estado Democrático de Direito, praticados em tese por militares inativos, ou da ativa, mas que se encontravam de folga no dia 08 de janeiro, haverá que haver a separação de processos, cabendo à Justiça Militar o julgamento dos crimes previstos no CPM que ofenderem a disciplina e hierarquia, e de consequência a ordem administrativa militar.


Jorge Cesar de Assis é Advogado inscrito na OAB/PR. Membro aposentado do Ministério Público Militar da União. Integrou o Ministério Público paranaense. Oficial da reserva não remunerada da PMPR. Sócio Fundador da Associação Internacional de Justiças Militares e atualmente seu Secretário-Geral. Coordenador da Biblioteca de Estudos de Direito Militar da Editora Juruá. Administrador do site: www.jusmilitaris.com.br.

NOTAS

[1] STF, Inq 4923/DF, relator Min. Alexandre de Moraes, decisão de 27 de fevereiro de 2023. [2] Crime Militar e Processo – Comentários à Lei 13.491/2017, 3ª edição, revista e atualizada, Curitiba: Juruá,2022, pp. 37-40. A 1ª edição foi publicada logo em seguida à vigência da Lei. [3] Comentários ao Código Penal Militar, 11ª edição, revista e atualizada, Curitiba: Juruá, 2022, pp.178-179. [4] STF, HC 39.412. [5]A esse respeito conferir nosso artigo: ASSIS, J. C.. A Lei 13.491/17 e a necessidade decorrente em saber quais são exatamente os crimes contra a ordem administrativa militar. REVISTA DO MINISTERIO PUBLICO MILITAR, v. único, p. 275-292, 2021. Também disponível em OrdemAdmMilitar.pdf (jusmilitaris.com.br) [6] Crime Militar e Processo – Comentários à Lei 13.491/2017, 3ª edição ..... pp. 40-49. [7] PASSOS A SEREM SEGUIDOS PARA IDENTIFICAR O CRIME MILITAR: 1º) verificar se o fato está previsto na Parte Especial do Código Penal Militar, ou, agora, previsto na legislação penal comum em geral; 2º) verificar se está previsto em uma das hipóteses do art. 9º do CPM; 3º) verificar eventual existência de causa excludente de criminalidade e; 4º) verificar a efetiva ofensa como elemento determinante para a caracterização do crime militar. [8] Art. 215. Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação: Pena - detenção, de três meses a um ano. Parágrafo único. A exceção da verdade somente se admite se a ofensa é relativa ao exercício da função pública, militar ou civil, do ofendido. [9] Art. 216. Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: Pena - detenção, até seis meses. [10] Art. 219. Propalar fatos, que sabe inverídicos, capazes de ofender a dignidade ou abalar o crédito das forças armadas ou a confiança que estas merecem do público: Pena - detenção, de seis meses a um ano. Parágrafo único. A pena será aumentada de um terço, se o crime é cometido pela imprensa, rádio ou televisão. [11] Art. 218. As penas cominadas nos antecedentes artigos deste capítulo aumentam-se de um terço, se qualquer dos crimes é cometido: I (...); II - contra superior; III (...); IV - na presença de duas ou mais pessoas, ou de inferior do ofendido, ou por meio que facilite a divulgação da calúnia, da difamação ou da injúria. [12] Art. 298. Desacatar superior, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, ou procurando deprimir-lhe a autoridade: Pena - reclusão, até quatro anos, se o fato não constitui crime mais grave. Parágrafo único. A pena é agravada, se o superior é oficial general ou comandante da unidade a que pertence o agente. [13] Art. 78. Na determinação da competência por conexão ou continência, serão observadas as seguintes regras: (...) IV - no concurso entre a jurisdição comum e a especial, prevalecerá esta.

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