Escolas da Magistratura, regime da informação e independência judicial: por uma pedagogia da reflexão crítica
- Fernando Galvão
- há 20 horas
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A atuação das Escolas da Magistratura tornou-se, nas últimas décadas, um elemento central para a consolidação de uma cultura judicial comprometida com a qualidade da jurisdição. Contudo, o amadurecimento institucional dessas escolas impõe hoje um desafio adicional: repensar seus modelos pedagógicos diante de um cenário marcado pelo excesso de informação, pela padronização decisória e pela crescente erosão do pensamento crítico no exercício da função jurisdicional.
Vivemos em uma sociedade submetida ao que tem sido denominado “regime da informação”, caracterizado pela pressão permanente por eficiência e produtividade, pela centralidade dos algoritmos e dos dados como orientadores de decisões, pela substituição da reflexão crítica por métricas de desempenho e pela valorização de respostas rápidas, produzidas no tempo da máquina. Nesse contexto, observa-se também uma crise da negatividade: a tendência à evitação do conflito, da divergência e da dúvida, elementos historicamente constitutivos do pensamento jurídico responsável.
1. O excesso de informação e a ilusão do conhecimento
A primeira constatação que se impõe é que a disponibilidade ilimitada de informações — precedentes, jurisprudência, doutrina, estatísticas, relatórios e decisões automatizadas — não equivale à produção de conhecimento. Ao contrário, a hiperabundância informacional pode comprometer o próprio processo cognitivo necessário à formação do juízo jurisdicional, na medida em que dispersa a atenção, fragmenta o foco e reduz o tempo indispensável à elaboração lenta, densa e responsável das decisões.
Como bem observa Byung-Chul Han ao analisar o regime informacional contemporâneo (Infocracia: Digitalização e a crise da verdade. Trad. Gabriel S. Philipson. Petrópolis: Vozes, 2022), o problema não é a escassez de dados, mas o seu excesso desorganizado, que ameaça transformar magistrados em meros operadores de fluxo decisório. O risco é a substituição da jurisdição reflexiva por uma atuação reativa, incapaz de alcançar a profundidade exigida pelo ato de julgar.
Esse cenário desafia diretamente as Escolas da Magistratura, exigindo a revisão de práticas pedagógicas que, embora adequadas em um primeiro momento de institucionalização, mostram-se insuficientes para enfrentar os dilemas atuais.
2. Da transmissão de informação à construção do conhecimento crítico
As Escolas da Magistratura cumpriram, com inegável mérito, uma etapa fundamental de consolidação institucional. Estruturaram programas de formação inicial, ampliaram a educação continuada, profissionalizaram a docência e modernizaram seus instrumentos pedagógicos. Muitas dispõem hoje de bancos de sentenças, repositórios de dados, ambientes virtuais de aprendizagem e capacidade de pesquisa aplicada.
Esse amadurecimento permite — e exige — um passo adicional: a superação do modelo centrado na mera transmissão de informações, em favor de uma pedagogia judicial orientada à construção do conhecimento crítico. Conhecimento, nesse sentido, não se produz pela simples soma de dados, mas pela capacidade de gerar sentido, formular distinções, identificar pressupostos, questionar paradigmas e sustentar decisões com fundamentos próprios e consistentes.
Paradoxalmente, o excesso de informação tende a produzir homogeneização. Algoritmos replicam resultados semelhantes, repositórios reproduzem linhas argumentativas dominantes e cursos padronizados reforçam visões consolidadas. Nesse ambiente, formam-se verdadeiras câmaras de eco jurídicas, nas quais crenças e interpretações se retroalimentam, dificultando a crítica interna e a inovação decisória. O perigo é julgar por inércia, não por convicção, em ambiente no qual precedentes convertem-se em dogmas e problemas complexos são reduzidos a fórmulas simplificadoras.
3. Independência judicial e coragem epistêmica
Uma magistratura confinada em câmaras de eco não é capaz de responder aos desafios de uma sociedade plural, complexa e conflitiva. A jurisdição exige coragem epistêmica: a disposição para pensar contra automatismos, facilidades e, quando necessário, contra tradições consolidadas.
Nesse ponto, as peculiaridades da Justiça Militar revelam desafios específicos. A independência judicial assume contornos ainda mais sensíveis em órgãos colegiados de primeiro grau, nos quais juízes militares, que exercem jurisdição temporária, atuam ao lado de magistrados de carreira. Situações em que juízes militares podem ser estimulados a “rever” seus votos para evitar decisões impopulares ou desconfortáveis configuram formas inaceitáveis de violência institucional.
Na Justiça Militar, o julgamento proferido pelos juízes militares é elemento essencial desse ramo especializado do Judiciário. Uma Justiça Militar que não assegura a independência material desses julgadores — isto é, a liberdade efetiva de compreender os fatos, atribuir-lhes significado e decidir com autonomia — compromete sua própria legitimidade. A independência judicial não se esgota em garantias formais; ela se constrói na reflexão, na dúvida, no conflito argumentativo e na liberdade de decidir.
4. O papel das Escolas da Magistratura na formação da independência
É nesse contexto que se redefine a missão das Escolas da Magistratura. Sua função não é produzir juízes conformados, mas juízes pensantes. Isso implica estimular a reflexão crítica sobre os fundamentos dos precedentes, promover o diálogo com o dissenso argumentado, valorizar a pluralidade doutrinária e recriar espaços protegidos de divergência, mesmo quando isso gera desconforto.
A experiência demonstra que uma escola que apresenta apenas uma visão forma apenas um tipo de juiz; uma escola que apresenta múltiplas perspectivas forma juízes capazes de escolher. Atividades dialógicas, substituindo cursos exclusivamente expositivos por debates estruturados, oficinas argumentativas, simulações e críticas cruzadas, contribuem para o desenvolvimento de competências deliberativas. Leituras lentas, grupos permanentes de estudo de decisões paradigmáticas, de doutrina clássica e até de textos filosóficos funcionam como resistência à lógica acelerada do regime informacional.
A pesquisa empírica crítica, especialmente a partir de bancos de sentenças, permite diagnosticar a cultura decisória e discutir a necessidade de revisão de práticas consolidadas.
5. Autonomia pedagógica e resistência à padronização
Para que as Escolas da Magistratura possam cumprir esse papel, a autonomia pedagógica é condição indispensável. A imposição de conteúdos curriculares uniformes, definidos de maneira centralizada e alheios às realidades jurisdicionais locais, promove a padronização simplificadora das respostas e reforça a racionalidade digital orientada exclusivamente para a eficiência administrativa.
Um sistema que dita previamente conteúdos e abordagens corre o risco de formar magistrados incapazes de responder às expectativas sociais que recaem sobre sua função. A centralização curricular pode transformar o juiz em um executor automático de protocolos, dissociado do contexto social concreto em que atua.
Um exemplo emblemático que evidencia os riscos dessa lógica de padronização é o caso das diretrizes que, nas audiências de custódia, privilegiam exclusivamente a investigação de eventuais abusos policiais, sem considerar a situação concreta da vítima. As orientações que visam apurar possível violência policial expressam uma simplificação normativa que ignora a complexidade da jurisdição penal. Uma análise das orientações estabelecidas para a condução das audiências de custódia permite concluir que a resposta judicial responsável exige ponderação equilibrada entre direitos fundamentais do conduzido e proteção efetiva da vítima — algo que não pode se amparar em respostas prontas.
6. Procedimentos democráticos na concepção das ações pedagógicas
A autonomia ora reivindicada para as Escolas da Magistratura não se destina a legitimar decisões de uma elite funcional, mas a viabilizar práticas democráticas internas na definição de prioridades formativas. Uma escola que pretende formar juízes independentes não pode reproduzir internamente estruturas centralizadoras e conformistas.
Inspirada na noção de ação comunicativa, a formação judicial deve ser concebida como um processo discursivo e cooperativo, no qual as melhores práticas emergem do diálogo fundamentado. Conciliar demandas nacionais com necessidades locais significa preservar espaço para que as realidades específicas sejam consideradas na elaboração das ações pedagógicas a serem desenvolvidas.
Somente por meio de práticas internas democráticas, que assegurem liberdade discursiva e fundamentação racional das escolhas, será possível formar magistrados livres, autênticos e criativos, capazes de resistir à padronização e de decidir com responsabilidade.
Conclusão
A magistratura do século XXI exige mais do que técnica. Exige densidade intelectual, abertura ao debate, coragem institucional e capacidade de enfrentar problemas novos com ferramentas adequadas. As Escolas da Magistratura têm diante de si a oportunidade de deixar de ser meras reprodutoras de conteúdo para se tornarem verdadeiros laboratórios de independência judicial.
Ao promover a reconexão entre informação e conhecimento, entre formação e reflexão, entre ensino e liberdade, essas instituições podem contribuir decisivamente para a formação de magistrados aptos a enfrentar a complexidade do seu tempo e a exercer a jurisdição com autonomia, legitimidade e compromisso social.
Fernando A. N. Galvão da Rocha é Desembargador Civil Diretor da Escola Judicial Militar do Tribunal de Justiça Militar do Estado e Minas Gerais e Professor Titular de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.



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