Entre a Lei e a Guerra: o Brasil de Luís Mir e os morros do Rio
- Amilcar Fagundes Freitas Macedo
- há 2 dias
- 7 min de leitura
"A violência brasileira é estrutural. Não é um desvio: é o próprio modo como o Estado se constituiu."Luís Mir, Guerra Civil, Estado e Trauma (2004)
Diante dos recentes acontecimentos no Morro da Penha e no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, durante a chamada Operação Contenção, fui revisitar um velho livro que adquiri em 2004, quando ainda era Promotor de Justiça: trata-se de Guerra Civil, Estado e Trauma, de Luís Mir — velho pelo tempo em que o comprei, mas novo e atual pelo que prega, alerta e ensina. A leitura, à luz do que se viu nos últimos dias, parece escrita para o nosso presente e talvez para o espelho mais incômodo da nossa história.
Logo no prefácio, Mir recorre a Hannah Arendt para iluminar o que chama de banalidade do mal brasileiro. Não se trata do mal épico e deliberado, mas do mal cotidiano, burocrático e silencioso, aquele que se perpetua pela omissão, pela indiferença e pela obediência sem reflexão. Arendt via em Eichmann, o funcionário exemplar do genocídio nazista, o protótipo do homem comum que faz o mal não por ódio, mas por incapacidade de pensar. Mir aplica essa chave ao Brasil: aqui, o mal não é apenas individual, é institucional. Ele se reproduz na frieza das estatísticas, na letargia da opinião pública, na conivência de quem transforma a violência em rotina e o sofrimento alheio em ruído de fundo.Guerra Civil, Estado e Trauma desnuda a hipocrisia do discurso pacífico do Estado brasileiro. Mir afirma que vivemos, há séculos, uma guerra civil não declarada, de baixa intensidade, travada nos becos das grandes cidades e nas periferias esquecidas. Nessa guerra, o inimigo é interno: o pobre, o negro, o favelado, o jovem sem acesso a direitos. A lógica é a mesma dos conflitos coloniais, o Estado não reconhece parte de seus cidadãos como pertencentes à nação, e por isso se autoriza a eliminá-los.
Guerra Civil, Estado e Trauma desnuda a hipocrisia do discurso pacífico do Estado brasileiro. Mir afirma que vivemos, há séculos, uma guerra civil não declarada, de baixa intensidade, travada nos becos das grandes cidades e nas periferias esquecidas. Nessa guerra, o inimigo é interno: o pobre, o negro, o favelado, o jovem sem acesso a direitos. A lógica é a mesma dos conflitos coloniais, o Estado não reconhece parte de seus cidadãos como pertencentes à nação, e por isso se autoriza a eliminá-los.
Para Mir, o Brasil não falhou em construir a paz; ele nunca deixou de estar em guerra. Desde a escravidão e do genocídio indígena, a violência estatal foi o cimento da ordem social. A história republicana apenas sofisticou os mecanismos: em vez do tronco, o fuzil; em vez do pelourinho, a operação policial; em vez da senzala, a favela. A estrutura permanence, apenas muda de uniforme.
Na madrugada de 28 de outubro de 2025, a Operação Contenção mobilizou milhares de agentes nos complexos da Penha e do Alemão. Blindados cruzaram vielas, helicópteros sobrevoaram telhados, e o som de rajadas varou a madrugada. O saldo: mortos e feridos em números que se disputam, escolas fechadas, moradores sem poder sair de casa. Houve apreensões e prisões, mas também corpos recolhidos por vizinhos e a sensação de que o Estado entrou e saiu deixando o rastro do medo.
O episódio parece retirado das páginas de Mir. Para ele, a violência policial nas periferias é expressão contemporânea da guerra civil brasileira: o Estado atua como força de ocupação, não como garantidor de direitos. A operação, apresentada como combate ao crime organizado, repõe o padrão que o autor denunciava: a legalização da exceção, a normalização da morte como instrumento de governo. Quando o Estado mata em nome da ordem, mas sem reconstrução, sem investigação e sem memória, converte-se em parte do próprio mal que combate.
No prefácio, Mir descreve um país que aprendeu a conviver com o horror. A cada massacre, a comoção dura horas; a cada operação, o noticiário muda antes de os mortos serem enterrados. É a banalidade do mal em versão tropical: o mal que se normaliza, o sofrimento que não mobiliza, a morte que não comove.
Mir observa que o Estado não apenas tolera a violência, ele a administra. O crime é funcional à ordem; o medo, uma ferramenta de controle social; a brutalidade, confundida com eficiência. É o mal travestido de racionalidade, legitimado por discursos de segurança, planilhas e metas, por coletivas que transformam tragédias em números. A máquina estatal, movida pela lógica do resultado, esquece o essencial: cada número é uma vida, cada operação é uma história interrompida. A analogia com Arendt torna-se evidente: assim como o burocrata “cumpria ordens”, aqui o servidor, o policial, o gestor ou o eleitor justificam a violência com indiferença moral. A crueldade se dilui na rotina; ninguém se sente responsável, e todos participam.
Mir insiste: essa guerra silenciosa produz um trauma social crônico, comparável ao de sociedades que viveram guerras declaradas. Mas aqui o trauma é mais perverso: não se reconhece, não se elabora, não se cura. A dor é cotidiana e invisível, transmitida de geração em geração nas comunidades marcadas pelo medo. A cada operação, o trauma se renova: mães que enterram filhos, crianças que dormem no chão, jovens que distinguem calibres pelo som. O resultado é um Estado traumatizado, uma sociedade que perdeu a capacidade de sentir. Essa anestesia moral é o último estágio da banalidade do mal: quando a violência se torna tão comum que o sofrimento alheio deixa de gerar empatia. A ausência de indignação é, para Mir, a verdadeira derrota civilizatória do Brasil.
O mais perturbador em Mir é a constatação de que o Estado brasileiro é simultaneamente vítima e algoz. Vítima, porque reage aos sintomas da miséria que ele próprio produz; algoz, porque reprime os excluídos sem jamais incluí-los. Na Operação Contenção, o Estado enfrentou o crime com aparato bélico, mas não levou escola, saneamento, proteção social. Em vez de reconstruir, destruiu; em vez de curar, reabriu feridas. Essa lógica é autodestrutiva: o Estado combate a si mesmo, pois os jovens mortos são seus cidadãos e a favela é parte do seu território. Quando o Estado mata, é o próprio corpo da nação que sangra. E quando o sangue vira rotina, a república desliza para a necropolítica, o regime em que o poder se mede pela capacidade de decidir quem pode viver e quem deve morrer.
Do ponto de vista jurídico, operações como a da Penha testam os limites do Estado de Direito. Em tese, atuam sob a legalidade; na prática, instituem a exceção. A Constituição promete dignidade, devido processo e presunção de inocência; mas, nos territórios esquecidos, essas promessas soam distantes. Mir advertia que a violência estatal sempre se disfarça de ordem. Quando o poder público se vê autorizado a matar em nome da lei, sem reflexão ética, a fronteira entre justiça e barbárie se dissolve. É aqui que a banalidade do mal ganha contornos jurídicos: o mal não é cometido “contra” a lei, mas em nome dela. A obediência cega à norma, sem consciência moral, produz o mesmo efeito da transgressão: a lei, destituída de humanidade, vira instrumento de destruição.
Nesses enfrentamentos extremos, o Estado parece abandonar o Direito Penal dos Códigos [o direito que limita, garante e humaniza o poder de punir] e adotar a velha máxima de aplicar a “lei mais conveniente”: a lei da eliminação sumária. Julga, condena e executa no mesmo ato, ao arrepio do devido processo legal e das garantias civilizatórias inscritas na Constituição. Como lembra Luigi Ferrajoli, o núcleo do garantismo penal é exatamente o oposto: submeter a potência punitiva a vínculos rígidos de legalidade estrita, taxatividade, jurisdicionalidade, contraditório e proporcionalidade, sob o primado da dignidade humana. Sempre que o Estado substitui o Direito Penal do cidadão pela lógica do Direito Penal do inimigo, o atalho que confunde suspeita com culpa e presença territorial com periculosidade , regressa ao Estado de polícia, em que a utilidade e a vingança eclipsam a razão jurídica. O resultado, previsível, é a erosão do próprio direito, e com ele, da confiança pública no pacto constitucional.
Arendt dizia que o mal se torna banal quando os homens deixam de pensar. Ferrajoli adverte que o poder sem limites é a negação da razão jurídica. Mir acrescenta: no Brasil, o mal se torna banal quando o Estado e a sociedade deixam de sentir. A combinação de indiferença, impunidade e desumanização cria um círculo vicioso no qual a violência se reproduz como cultura. A cada operação, a cada chacina, a cada omissão, a alma nacional se acostuma um pouco mais à barbárie.
Não há monstros nem tiranos isolados, há uma multidão de conformismos, segundo Mir. O policial que aperta o gatilho, o político que autoriza, o juiz que arquiva, o jornalista que relativiza e o eleitor que aplaude, todos participam, em maior ou menor medida, dessa engrenagem. O mal não tem rosto, mas tem sistema. E o sistema se perpetua porque cada um acredita estar apenas “cumprindo seu papel”.
Reabrir Guerra Civil, Estado e Trauma depois da Operação Contenção é um exercício de lucidez dolorosa. Mir, há duas décadas, já enxergava o que o noticiário ainda hesita em admitir: o Brasil é um país em guerra consigo mesmo. A cada incursão armada, o Estado tenta apagar o incêndio com gasolina, confundindo segurança com repressão, autoridade com força, paz com silêncio.
A banalidade do mal, no Brasil, veste farda, terno, toga ou indiferença. E continuará viva enquanto aceitarmos a morte como política e o trauma como normalidade. Romper o ciclo exige mais do que reformas: requer uma refundação moral do Estado e da sociedade. É preciso restituir ao direito a sua alma, à política o seu sentido ético, e ao cidadão a capacidade de indignar-se. Porque, como advertia Arendt, o mal prospera onde o pensamento se cala; e, como lembra Ferrajoli, o poder que não encontra limites no direito rapidamente abandona o terreno da civilização. Enquanto o Estado insistir em se comportar como força de ocupação, e o cidadão como espectador resignado, a guerra seguirá, sem fronteiras claras, sem fim previsível e o que é mais grave, sem espanto.
Amilcar Fagundes F. Macedo é Desembargador do Tribunal de Justiça Militar do Estado do Rio Grande do Sul.



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