no âmbito do Ministério Público Militar e seus reflexos na Justiça Militar estadual
Em janeiro de 2020, entrou em vigor o Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/19); um conjunto de alterações promovidas no ordenamento jurídico, em matéria penal e processual sem que, no entanto, se possa dizer sistematizadas.
Dentre as alterações legais, destaca-se a inclusão do art. 28-A do Código de Processo Penal, que trata do acordo de não persecução penal; instituto cujo berço e inspiração se encontram nos países de tradição jurídica consuetudinária – Inglaterra e suas ex-colônias.
Inicialmente previsto em resolução do Conselho Nacional do Ministério Público (Res. 181/17), o ANPP passou a ser previsto em lei com a entrada em vigor da Lei nº 13.964/19 (Pacote anticrime), em janeiro de 2020.
Contudo, ao contrário do que previa a resolução administrativa, a nova lei não trouxe regramento explícito acerca de sua aplicabilidade no processo penal militar.
Tal omissão legal levou parte da doutrina a interpretar o não cabimento do acordo de não persecução penal na Justiça Militar, sob a alegação de que, em se tratando o Código de Processo Penal Militar de norma especial, não haveria a possibilidade de aplicação subsidiária do Código de Processo Penal comum. Em precedente do Superior Tribunal Militar acerca do tema, fez-se referência a um “silêncio eloquente” do legislador.
Ocorre que o Código de Processo Penal Militar prevê a aplicação por analogia do Código de Processo Penal, nos casos omissos (CPPM, Art. 3º, a), o que torna plenamente possível a aplicação do art. 28-A do CPP na Justiça Militar. A ausência de previsão de aplicação do ANPP na seara dos crimes militares pela Lei nº 13.964/19 não pode ser interpretada como o silêncio eloquente do legislador referido na jurisprudência da Justiça Militar da União.
No âmbito da Justiça Militar estadual, a 2ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios já teve a oportunidade de analisar questão envolvendo ANPP referente a crimes militares e, apesar da questão discutida ser a possibilidade de celebração do ANPP após o oferecimento da denúncia, em nenhum momento posicionaram-se os eminentes desembargadores contrários a aplicação do instituto na Justiça Militar.
Pelo contrário, ao analisar o caso, o qual envolvia crimes militares dos artigos 163 e 216 do CPM, foi frisado que o oferecimento do ANPP fica a cargo do Ministério Público, não podendo o não oferecimento ser suprido pelo Poder Judiciário. Foi também pontuado no julgado que o Ministério Público deve observância aos requisitos legais do art. 28-A do CPP:
APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME MILITAR. NÃO OFERECIMENTO DE ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. FACULDADE DO ÓRGÃO MINISTERIAL. IMPOSSIBILIDADE DE ANPP APÓS O OFERECIMENTO DA DENÚNCIA. PRELIMINAR REJEITADA. RECUSA DE OBEDIÊNCIA (ART. 163 DO CPM) NÃO DEMONSTRADA. ABSOLVIÇÃO MANTIDA. DESACATO A SUPERIOR. DESCLASSIFICAÇÃO PARA INJÚRIA MANTIDA. RECURSOS DESPROVIDOS. 1. O oferecimento de Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), introduzido no ordenamento jurídico através do art. 28-A do Código de Processo Penal, é uma faculdade oferecida pela lei ao Ministério Público para que, em circunstâncias onde o acusado preencha todos os requisitos objetivos estabelecidos e a realização da composição seja necessária e suficiente para reprovação e prevenção do crime, a instauração do processo judicial seja postergada. Uma vez cumprido o acordo pelo acusado, deverá ser declarada a extinção da punibilidade. 2. O oferecimento do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) fica a cago do Ministério Público, não podendo o não oferecimento ser suprido pelo Poder Judiciário, ainda mais quando sequer houve remessa ao órgão superior do Ministério Público, nos termos do art. 28-A, § 14 do CPP. 3. Iniciada a persecução penal em Juízo, é evidente a preclusão para oferecimento do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), cujo limite temporal é o oferecimento da denúncia, não havendo possibilidade de determinação do Juízo de origem para realização do ANPP após este momento. 4. As provas dos autos não são suficientes para demonstrar a ocorrência do crime de recusa de desobediência, uma vez que restou provado que o réu proferiu um xingamento ao seu superior, não existindo mais nenhum elemento probatório que justifique a condenação do acusado pelo crime previsto no art. 163 do CPM, tendo em vista que os fatos foram presenciados por apenas uma testemunha que afirmou ter ouvido apenas um xingamento. 5. O conjunto probatório produzido nos autos é claro em demonstrar a ocorrência do crime de injúria (art. 216 do CPM), uma vez que o acusado proferiu xingamento em desfavor da vítima, com o intuito de atentar contra a sua honra e dignidade, contudo, não há provas de que o xingamento tenha tido o condão de deprimir a autoridade da vítima, o que enseja a desclassificação da conduta para o crime de injúria. 6. RECURSOS CONHECIDOS E DESPROVIDOS. Sentença mantida. (Acórdão 1401599, 00032676220208070016, Relator: ROBSON BARBOSA DE AZEVEDO, 2ª Turma Criminal, data de julgamento: 10/2/2022, publicado no PJe: 4/3/2022. Pág.: Sem Página Cadastrada.)
É fato, no entanto, que, em diversos Ministérios Públicos estaduais, a possibilidade de oferecimento do acordo de não persecução penal na Justiça Militar estadual não é matéria pacificada; e, no Distrito Federal, é pacificada quanto à impossibilidade de oferecimento da proposta.
A Câmara de Coordenação e Revisão da Ordem Criminal do MPDFT editou o Enunciado nº 109, que traz a seguinte redação:
É incabível o Acordo de Não Persecução Penal em crime militar.
O princípio institucional do Ministério Público da independência funcional está previsto na CF (art. 127, §1º), e garante imunidade ao membro do Ministério Público contra as pressões externas (dos agentes dos poderes do Estado e dos agentes do poder econômico) e internas (dos órgãos da Administração Superior do Ministério Público).
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC137637, em caso que envolvia a atuação do MPDFT, entendeu de que é garantia do referido princípio constitucional que o membro do Ministério Público tenha atuação livre no plano técnico-jurídico, sem qualquer subordinação a eventuais recomendações exaradas pelos órgãos superiores da instituição:
HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL E PENAL. CRIMES DE QUADRILHA, CORRUPÇÃO PASSIVA, CORRUPÇÃO ATIVA E LAVAGEM OU OCULTAÇÃO DE BENS, DIREITOS E VALORES. ARTIGOS 288 (REDAÇÃO ANTERIOR), 317 E 333 DO CÓDIGO PENAL E ARTIGO 1º DA LEI Nº 9.613/98. INEXISTÊNCIA DE TERATOLOGIA, ABUSO DE PODER OU FLAGRANTE ILEGALIDADE. DESMEMBRAMENTO DE AÇÃO PENAL QUANTO A RÉU CUJA DENÚNCIA NÃO FORA RECEBIDA NA INSTÂNCIA SUPERIOR. OFERECIMENTO DE NOVA DENÚNCIA DE DISTINTO TEOR PERANTE O JUÍZO COMPETENTE. POSSIBILIDADE. APLICAÇÃO DO REGRAMENTO ATINENTE AO INSTITUTO DO ADITAMENTO À DENÚNCIA. PRINCÍPIO DA INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL DOS MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO. PRINCÍPIO DO PROMOTOR NATURAL. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DO “PAS DE NULLITÉ SANS GRIEF”. IMPOSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO DO HABEAS CORPUS COMO SUCEDÂNEO DE RECURSO OU REVISÃO CRIMINAL.
(...)
3. A teratologia ou abuso de poder ou flagrante ilegalidade não se caracteriza pelo fato dos membros do Ministério Público legitimados para atuar perante a 1ª instância da Justiça do Distrito Federal e Territórios alterarem a estratégia acusatória que fora adotada pelos agentes ministeriais legitimados para atuar perante o STJ e o TJDFT, uma vez que, independentemente de eventual subordinação administrativa, não há, quanto à atividade-fim, dado o princípio da independência funcional que é basilar à atuação do Ministério Público, qualquer espécie de vinculação técnica entre os membros da instituição que atuam perante instâncias diversas. 4. O princípio da independência funcional está diretamente atrelado à atividade finalística desenvolvida pelos membros do Ministério Público, gravitando em torno das garantias (a) de uma atuação livre no plano técnico-jurídico, isto é, sem qualquer subordinação a eventuais recomendações exaradas pelos órgãos superiores da instituição; e (b) de não poder ser responsabilizado pelos atos praticados no estrito exercício de suas funções. 5. Consoante o postulado do promotor natural, a definição do membro do Ministério Público competente para oficiar em um caso deve observar as regras previamente estabelecidas pela instituição para distribuição de atribuições em um determinado foro de atuação, obstando-se a interferência hierárquica indevida da chefia do órgão por meio de eventuais designações especiais 6. A proteção efetiva e substancial ao princípio do promotor natural impede que o superior hierárquico designe o promotor competente bem como imponha a orientação técnica a ser observada. 7. Os subprincípios da imparcialidade e do livre convencimento são corolários do princípio da independência funcional assegurado aos membros do Ministério Público, sem qualquer prejuízo ao postulado da obrigatoriedade que, como regra, pauta a ação penal pública no sistema jurídico brasileiro. 8. Consectariamente, ostenta o membro do Ministério Público plena liberdade funcional não apenas na avaliação inicial que faz, ao final da fase de investigação, para aferir a existência de justa causa para o oferecimento da peça acusatória; como também no exame que realiza, ao final da instrução processual, quanto à comprovação dos indícios de autoria originariamente cogitados, sendo certo que a imparcialidade na formação da opinio delicti se efetiva na hipótese em que o membro do Ministério Público é efetivamente livre na formação de seu convencimento, o que implica dizer, por óbvio, que sua atuação de modo algum poderá ser vinculada a eventual valoração técnico-jurídica pretérita dos fatos sob avaliação, mesmo que proveniente de outro membro da instituição que possua atribuição para atuar em instância superior àquele primeiro. 9. In casu, é irrelevante que outros membros do Ministério Público com atribuição para atuar em instância superior, em virtude da análise dos mesmos fatos, tenham, anteriormente, oferecido denúncia de diferente teor em face do ora paciente, uma vez que, conforme devidamente reconhecido pelos órgãos jurisdicionais a que submetida a pretensão, não eram aqueles, porquanto incompetente o juízo, os promotores naturais para exercer a pretensão acusatória. Consectariamente, possuindo o promotor natural – aquele com atribuição para atuar na 1ª instância – entendimento jurídico diverso e não se encontrando tecnicamente subordinado àqueles primeiros, não há qualquer nulidade na alteração do teor da peça acusatória que fora por eles oferecida.
(...)
(HC 137637, Relator(a): LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 06/03/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-080 DIVULG 24-04-2018 PUBLIC 25-04-2018)
O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, possui entendimento consolidado de que é garantia ao membro do Ministério Público a independência funcional, podendo-se adotar, inclusive no mesmo processo, posicionamento em sentido oposto ao adotado por outro membro que atuou no feito:
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA COLEGIALIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. MANIFESTAÇÕES CONTRÁRIAS DE MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO MESMO PROCESSO. POSSIBILIDADE. AUTONOMIA E INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO EXECUTÓRIA. OCORRÊNCIA. MARCO INICIAL. TRÂNSITO EM JULGADO PARA ACUSAÇÃO. AGRAVO IMPROVIDO.
(...)
2. Ainda que a atuação das partes no processo deva pautar-se pela utilidade e pela funcionalidade, mesmo porque não se trata de disputa acadêmica, a jurisprudência desta Corte já se consolidou no sentido de que a atuação dos membros do Ministério Público é independente, razão por que a emissão de parecer por um dos seus membros, pela incidência da prescrição, não impede que outro integrante do órgão, no mesmo processo, opine (com validade) em sentido oposto, devendo conviver em harmonia os princípios da unidade, indivisibilidade e independência funcional do Ministério Público enunciados no art. 127, § 1º, da CF.
(...)
5. Agravo regimental improvido.
(AgRg no HC n. 647.071/ES, relator Ministro Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), Sexta Turma, julgado em 17/8/2021, DJe de 20/8/2021.)
Em 24 de maio de 2022, o Conselho Superior do Ministério Público Militar editou a Resolução nº 126/CSMPM, para reincluir o art. 18, que regulamenta a aplicação do ANPP, na Justiça Militar da União, à Resolução 101/CSMPM.
O referido art. 18 passou a constar com a seguinte redação:
“Não sendo o caso de arquivamento, exclusivamente nos crimes militares de conceito estendido, tal como prevê o artigo 9º, II, do CPM, com a redação dada pela Lei 13.491/17, o Ministério Público Militar poderá propor ao investigado acordo de não persecução penal, quando, cominada pena mínima inferior a 4 (quatro) anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, inclusive violência doméstica, o investigado tiver confessado formal e circunstanciadamente a sua prática, mediante as seguintes condições, ajustadas cumulativa ou alternativamente: (...)”.
Manteve-se a proibição do oferecimento do negócio processual penal nas hipóteses, devidamente justificadas, de violação da hierarquia e da disciplina militar, a exemplo do que constava da Resolução 181/17 do CNMP:
§1º Não se admitirá a proposta nos casos em que:
(...)
X – o delito for cometido por militar, isoladamente ou em coautoria com civil, e afete a hierarquia e a disciplina, devidamente justificada.
Em seu sítio eletrônico oficial, o Ministério Público Militar esclarece, verbis:
“O fato de o CPP comum não restringir o ANPP a militares ou aos crimes militares, já permitiria, sem nenhuma necessidade de normatização por Resolução ou outro ato normativo, a aplicação do instituto à persecução penal militar, forte no que dispõe o art. 3º, alínea “a”, do Código de Processo Penal Militar (CPPM).
Mesmo sem a alteração da Resolução do CSMPM n. 101, os membros do Ministério Público Militar já poderiam celebrar o ANPP em suas atuações, amparados pelo CPPM e de acordo com a independência funcional assegurada constitucionalmente.”
E continua:
“O ANPP constitui instrumento de política criminal e está dentro do espírito de autocomposição e de atuação resolutiva que vem sendo incentivado pelo Conselho Nacional do Ministério Público, como se depreende da Resolução 118, de 1º de dezembro de 2014, e da Recomendação nº 54, de 28 de março de 2017”.
Saliente-se, no entanto, que o texto reintegrado à Resolução nº 101/CSMPM é restritivo em relação à posição tomada pelos Procuradores do Ministério Público Militar, durante o 9º Encontro do Colégio de Procuradores de Justiça Militar, realizado de 24 a 26 de novembro de 2021, em Brasília/DF; e do qual se originou o seguinte enunciado:
Enunciado 4: O Ministério Público Militar pode formalizar Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), com base no art. 3°, alínea “a”, do CPPM, c/c art. 28-A do CPP, tanto para civis, quanto para militares, desde que necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime militar.
A admissão de soluções negociadas, fundadas em um diálogo entre a parte suspeita e o acusador, constitui uma tendência marcante do direito penal contemporâneo; afinal, trata-se menos de desviar o procedimento penal, que de melhorá-lo.
O conservadorismo deve dar lugar à abordagem pragmática no enfrentamento dos problemas atinentes ao sistema judiciário como um todo; e, em especial, à Justiça Militar, em face da ampliação de sua competência para o julgamento dos chamados crimes militares impróprios por equiparação.
Flávio Milhomem é Promotor de Justiça do MPDFT há 25 anos, atuando na 3ª Promotoria de Justiça Militar do Distrito Federal.
Ricardo Cintra Campos de Oliveira Alves é Analista Processual do MPDFT, e assessor na 3ª Promotoria Militar do Distrito Federal.
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