A Lei 14.321, de 31 de março de 2022, alterando a Lei do Abuso de Autoridade (LAA)[1], passou a tipificar o crime de violência institucional. E o fez, ao incluir na LAA o art. 15-A com a seguinte redação:
Violência Institucional
Art. 15-A. Submeter a vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade:
I - a situação de violência; ou
II - outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.
§ 1º Se o agente público permitir que terceiro intimide a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena aumentada de 2/3 (dois terços).
§ 2º Se o agente público intimidar a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena em dobro.
Informam Adriano Souza Costa, Eduardo Fontes e Henrique Hofmann, que a nova lei é fruto da repercussão nacional do julgamento de uma acusação de estupro em Santa Catarina, em que a vitima, Mariana Ferrer, foi ridicularizada e humilhada pela defesa do acusado durante uma audiência, sem que o membro do Ministério Público e o juiz tomassem providências. Esse mesmo caso originou a Lei 14.245/21 [2] que incluiu os artigos 400-A[3] e 474-A [4] , no CPP para limitar o modo com que as oitivas são feitas na instrução judicial de crimes sexuais ou contra a vida [5] .
A violência institucional é uma forma de abuso de autoridade e, partindo desta premissa, somente aquele que detém esta condição pode cometer o crime. No art. 2º da Lei nº 13.869/2019 há um rol de agentes públicos que podem ser considerados como sujeito ativo em potencial do novo crime.
Todavia, há que se levar em conta que o art. 15-A da LAA, descreve a conduta criminosa com o ato de "submeter a vitima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade: I - a situação de violência; ou II - outras situações potencialmente potencialmente geradoras de sofrimento ou estignatização", o que reduz, nos parece, o espectro de agentes públicos ao magistrado (tutela da administração da justiça) e ao membro do Ministério Público caso a violência ocorra em juízo ou na instrução do procedimento de investigação criminal - PIC; ao Delegado de Polícia durante o auto de prisão em flagrante ou inquérito policial ou; a autoridade militar encarregada de auto de prisão em flagrante ou inquérito policial militar (tutela da administração pública ou administração militar). Claro, não se pode descartar a hipótese de a violência institucional ser eventualmente cometida por peritos designados para a realização de exames e laudos periciais, em especial os relacionados aos crimes contra a dignidade sexual, mas essa hipótese nos parece mais remota.
Em relação ao sujeito passivo do crime de violência institucional temos duas situações, a vítima de infração penal e a testemunha de crimes violentos, sendo de se destacar que a conjunção “ou” ligando as duas palavras indica uma alternância, e assim se pode afirmar que a testemunha será sempre a de crimes violentos - aqueles praticados com emprego de violência física contra a pessoa, enquanto a vítima será de qualquer crime (infração penal).
Crimes violentos são aqueles que implicam necessariamente no uso da violência ou grave ameaça, como o estupro e o estupro de vulnerável, a extorsão e a extorsão mediante sequestro, o homicídio, o roubo, o sequestro e o cárcere privado, todos em sua forma consumada ou tentada, o latrocínio, a violência doméstica, o tráfico de pessoas etc.
A consumação do crime é explicativa pela própria redação do dispositivo legal, submissão (imposição) da vítima de infração penal ou da testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos (que agridem a intimidade da pessoa), que a leve a reviver (rememorar), sem estrita necessidade: I - a situação de violência; ou II - outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização”, v.g., de cunho racista, ou, como apontado por Adriano Souza Costa, Eduardo Fontes e Henrique Hofmann, resultante de qualquer tipo de discriminação, conforme decidido pelo Supremo Tribunal Federal no Mandado de Injunção 4733/DF, que reconheceu ser atentatório ao Estado Democrático de Direito qualquer tipo de discriminação, inclusive a que se fundamenta na orientação sexual das pessoas ou em sua identidade de gênero[6], e na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26/DF, que reconheceu a exposição e sujeição dos homossexuais, transgêneros e demais integrantes da comunidade LBGTI+ a graves ofensas aos seus direitos fundamentais em decorrência de superação irrazoável do lapso temporal necessário à implementação dos mandamentos constitucionais de criminalização instituídos pelo texto constitucional (CF, art. 5º, incisos XLI e XLII [7]).[8]
Não se pode esquecer, entretanto, que a violência institucional é uma das formas de abuso de autoridade e, nos termos do § 1º, do art. 1º, da Lei nº 13.869/2019, para a caracterização do crime de abuso de autoridade, é necessário um especial fim de agir (elemento subjetivo do injusto), caracterizado em três hipóteses pelas expressões: “com a finalidade específica de prejudicar outrem [1ª hipótese] ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro [2ª hipótese], ou ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal [3ª hipótese]”, sem o que o delito não se perfaz.
Feitas estas considerações iniciais é de se perguntar se existe o crime militar de violência institucional, a resposta será positiva, desde que cometidos em uma das hipóteses do inciso II, do art. 9º, do Código Penal Militar[9]:
[...]
a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado;
b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;
c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil; (Redação dada pela Lei nº 9.299, de 8.8.1996) d) por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;
e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar; f) revogada. (redação dada pela Lei nº 9.299, de 8.8.1996) [...]
Se o fato criminoso for cometido em uma das hipóteses acima será um crime militar por extensão, e o enquadramento mais adequado, s.m.j, será na alínea ‘c’, cometido por militar atuando em razão da função. Nos termos do art. 23 do Estatuto dos Militares, função militar é o exercício das obrigações inerentes ao cargo militar, e assim teremos a função de presidente do auto de prisão em flagrante-APF de crime militar e do encarregado do inquérito policial militar-IPM, exercidas por oficial que pode, em tese, vir a ser agente ativo do crime de violência institucional. Ou seja, s.m.j., eventual crime militar de violência institucional por extensão somente pode ser cometido por oficiais que estejam presidindo o auto de prisão em flagrante ou encarregados do inquérito policial militar.
Os §§ 1º e 2º, do art. 15-A da Lei de Abuso de Autoridade preveem a intimidação da vitima como geradora de revitimização a qual, se for praticada por terceiro perante o encarregado do IPM ou presidente do APF, aumenta a pena deste oficial em 2/3. Já o terceiro intimidador não responde pela violência institucional, mas im por crime diverso como constrangimento ilegal, ameaça, coação no curso do processo, injúria ou injúria real, a ser verificado no caso concreto.
Se o próprio encarregado do IPM ou Presidente do APF intimidar a vitima de crime violento, a pena que lhe couber será aplicada em dobro.
Percebam que a intimidação da vitima, conquanto prevista no mesmo tipo penal, é crime diverso da violência institucional. Enquanto a "violência" se caracteriza pelo ato de submeter a vitima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, a "intimidação" pode ser feita fora dos mesmos procedimentos, antes que se inicie o ato constante do procedimento investigatório extrapenal, por exemplo, enquanto se aguarda o início da instrução do ato investigatório, podendo ser praticado tanto pela autoridade militar como por terceiro. Por fim, considerando que a violência institucional ocorre com relação à vitima de infração penal e à testemunha de crimes violentos durante a apuração do ato delituosos, fica desde já afastada a possibilidade de sua ocorrência durante o desenrolar de procedimentos administrativos disciplinares em gerais, porque estes destinam-se à apuração de eventual transgressão disciplinar do militar, e não de crimes por ele cometidos. Aliás, mesmo tratando-se as infrações-crime, naquelas hipóteses em que a Administração Militar resolve apurar a responsabilidade funcional do mesmo fato pelo qual o servidor se encontra respondendo por um processo penal, não se pode esquecer do mandamento da Súmula 18, do STF, segundo o qual, a possibilidade de punição administrativa do servidor público - nele incluído o militar - fica atrelada à falta residual não compreendida na absolvição pelo juízo criminal.
Por isso entendemos pela impossibilidade de ocorrência do crime de violência institucional durante o desenrolar de processos disciplinares militares, seja porque eles não apuram crimes, mas sim transgressões/contravenções disciplinares, seja porque não existe comunicabilidade das decisões da Administração para a Justiça, mas sim o contrário, em determinadas e restritas hipóteses. Mas é possível de ocorrer a intimidação, tanto da parte do encarregado do processo disciplinar quanto de terceiros, será um crime diverso como constrangimento ilegal, ameaça, coação no curso do processo, injúria ou injúria real, a ser verificado no caso concreto.
Jorge Cesar de Assis é Advogado inscrito na OAB-PR. Membro aposentado do Ministério Público Militar da União. Integrou o Ministério Público paranaense. Oficial da reserva não remunerada da Polícia Militar do Paraná. Sócio Fundador da Associação Internacional das Justiças Militares – AIJM. Membro correspondente da Academia Mineira de Direito Militar -Casa de Tancredo Neves e da Academia de Letras dos Militares Estaduais do Paraná-ALMEPAR. Coordenador da Biblioteca de Estudos de Direito Militar da Editora Juruá. Administrador do Site JUS MILITARIS: www.jusmilitaris.com.br
NOTAS [1] Lei 13.896, de 05.09.2019. [2] Lei nº 14.245, de 22.11.2021 - Altera os Decretos-Leis nos 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), e a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais), para coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas e para estabelecer causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo (Lei Mariana Ferrer). [3] Art. 400-A. Na audiência de instrução e julgamento, e, em especial, nas que apurem crimes contra a dignidade sexual, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas: I - a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos; II - a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas. (Incluído pela Lei nº 14.245, de 2021) [4] Art. 474-A. Durante a instrução em plenário, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão respeitar a dignidade da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz presidente garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas: I - a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos: II - a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas. (Incluído pela Lei nº 14.245, de 2021) [5] COSTA, Adriano Sousa; FONTES, Eduardo e HOFMANN, Henrique. Crime de violência institucional: abusando da Lei contra o abuso de autoridade, Consultor Jurídico, disponível em https://www.conjur.com.br/2022-abr-05/academia-policia-crime-violencia-institucional-abusando-lei-abuso?imprimir=1 acesso em 06.04.2022. [6] STF, Plenário, MI 4.733/DF, relator Min. Edson Fachin, julgado em 13.06.2019, maioria. [7] STF, Plenário, ADO 26/DF, relator Min. Celso de Melo, julgado em 13.06.2019, maioria. [8] Idem. [9] Com a redação que lhe deu a Lei 13.491/2017.
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