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Jorge Cesar de Assis

A Lei 14.688/2023 e as alterações procedidas no crime militar de drogas


A guisa de introdução

 

Tentando compatibilizar o Código Penal Militar com o Código Penal comum e a Constituição da República [é assim que ela se apresenta], a Lei 14.688/2023 incursionou no inebriante art. 290 do CPM.


Manteve intacto o caput, Receber, preparar, produzir, vender, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, ainda que para uso próprio, guardar, ministrar ou entregar de qualquer forma a consumo substância entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica, em lugar sujeito à administração militar, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, com pena de reclusão, até cinco anos e, também os casos assimilados do § 1º, Na mesma pena incorre, ainda que o fato incriminado ocorra em lugar não sujeito à administração militar: I - o militar que fornece, de qualquer forma, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica a outro militar; II - o militar que, em serviço ou em missão de natureza militar, no país ou no estrangeiro, pratica qualquer dos fatos especificados no artigo e; III - quem fornece, ministra ou entrega, de qualquer forma, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica a militar em serviço, ou em manobras ou exercício.


No § 2º está a forma qualificada [a redação é a original], quando o agente for farmacêutico, médico, dentista ou veterinário, porque há, no caso, uma grave violação do Código de Ética e Honra de cada uma destas profissões, que dão aos seus profissionais conhecimentos seguros sobre os efeitos danosos das substâncias entorpecentes ou que determinam dependência física ou psíquica. A pena, nesses casos, passa a ser de reclusão de dois a oito anos.


Anote-se, entretanto, que para esta qualificação não há necessidade de que o farmacêutico, médico ou dentista sejam militares, conditio sine qua non, para o aperfeiçoamento do delito do art. 291 do CPM na redação originária, e que agora foi suprimida pela Lei 14.688/2023. Portanto, o § 2º do art. 290 e o art. 291 punem a conduta criminosa do farmacêutico, médico, dentista ou veterinário que está atuando em lugar sob administração militar, independente da sua condição de profissional civil ou militar.

 

 

A punição pelo uso pretérito da droga

 

A Lei 14.688/2023 também incluiu um novo § 3º ao art. 290 [e aí é que mora o perigo], segundo o qual, na mesma pena [reclusão de 02 a 08 anos] incorre o militar que se apresentar para o serviço sob o efeito de substância entorpecente. Essa hipótese chama a atenção, pois além de não se enquadrar em nenhuma das ações típicas previstas no caput do artigo, implica em dizer que o militar será punido pelo simples uso pretérito da substância entorpecente, independentemente do local e do lapso temporal onde esse uso teria ocorrido [o caput do artigo é taxativo quanto ao locus delicti estar sob administração militar].


A situação a ser punida – apresentar-se sob efeito de substância entorpecente, decorre de posse e uso pretérito da substância ilegal que sequer foi apreendida com o agente e, a comprovação de estar sob efeito de substância entorpecente dependerá sempre de perícia médica materializada pela realização de exames toxicológicos no sangue e urina do militar. Guilherme de Souza Nucci refere que se pode constatar esse estado de três maneiras diferentes: a) exame clínico: contato direto com a pessoa, analisando-se o hálito, o equilíbrio físico, o controle neurológico, as percepções sensoriais, o modo de falar, a cadência da voz, entre outros; b) exame de laboratório: dosagem etílica (quantidade de álcool no sangue); c) prova testemunhal: pode atestar as modificações de comportamento do agente[1].


Ora, uma vez mais não foi feliz o legislador de 2023, pois como se sabe – e aqui vale relembrar Cleber Couto e Túlio Leno Góes Silva, ao afirmarem que “o uso pretérito do entorpecente não é crime, pois se a droga não mais existe – eis que consumida – o risco de difusão e propagação do entorpecente deixa de existir. O princípio da alteridade ou transcendentalidade proíbe a incriminação de atitude meramente interna do agente e que, por essa razão, só faz mal a ele mesmo e a mais ninguém. Sem que a conduta transcenda a figura do autor e se torne capaz de ferir o interesse do outro (altero), é impossível ao direito penal puni-la. O princípio da alteridade impede o direito penal de castigar o comportamento de alguém que está prejudicando apenas a sua própria saúde e interesse. Com efeito, o bem jurídico tutelado pela norma é sempre o interesse de terceiros, de forma que seria inconcebível, por exemplo, punir um suicida malsucedido ou um fanático que se açoita. É por isso que a autolesão não é crime”.[2]


Mas, diga-se em complemento, que um simples passar de olhos sobre o novel dispositivo qualificador irá demonstrar que ele foi mal colocado no Código. Com efeito, o art. 290 [e com ele o § 3º] situa-se no Título VI [dos crimes contra a incolumidade pública], Capítulo III [dos crimes contra a saúde] e, da forma como está previsto o referido dispositivo,“se apresentar para o serviço sob o efeito de substância entorpecente”, demonstra estar buscando tutelar o “serviço” para o qual o militar está se apresentando, e nunca a saúde pública.

 

Aliás, no Título III [dos crimes contra o serviço militar e o dever militar], Capítulo III [do abandono de posto e de outros crimes em serviço], iremos encontrar o tipo penal da embriaguez em serviço, prevista no art. 202, segundo o qual, embriagar-se o militar, quando em serviço, ou apresentar-se embriagado para prestá-lo, sujeita o agente a uma pena de detenção, de seis meses a dois anos.

Percebam que o art. 202 do CPM, ao prever a embriaguez do militar não especifica se essa embriaguez é decorrente do uso do álcool ou de outra substância inebriante, o que está previsto, por exemplo, no art. 279 – embriaguez ao volante, que é crime de perigo comum previsto no Capítulo I, do Título do Título VI [dos crimes contra a incolumidade pública].


Sendo assim, em relação ao novel § 3º, do art. 290, do CPM, há que necessariamente se perquirir, dentre outros possíveis os seguintes questionamentos: a) qual seria o bem jurídico tutelado pela nova norma? B) é possível a embriaguez por conta do uso de drogas, que neste caso teria efeito análogo? c) em sendo positiva a resposta, estaremos diante de concurso aparente de normas com o art. 202 do código penal castrense? 


Não será tarefa fácil e a culpa, é do reformador do Código. Mas, na doutrina, é a opinião abalizada de Cezar Roberto Bitencourt, que tudo o que foi dito sobre a embriaguez pelo álcool aplica-se aos efeitos decorrentes de outras substâncias tóxico-entorpecentes ou outras substâncias de efeitos análogos[3]. E isso porque, alerta Guilherme de Souza Nucci, a embriaguez é uma intoxicação aguda provocada pelo álcool ou por substância de efeito análogo[4]. No mesmo sentido Enio Luiz Rossetto, lembrando Anibal Bruno, que a embriaguez é um processo agudo de intoxicação resultante da ação do álcool ou substâncias equivalentes sobre o sistema nervoso[5].


Ricardo Henrique Alves Giuliani conceitua a embriaguez como a intoxicação aguda e transitória causada pelo álcool ou substância de efeitos análogos (drogas em geral) que privam o sujeito da capacidade normal de discernimento[6].


Esta equiparação de efeitos das hipóteses de embriaguez, foi bem-feita por Marreiros, Rocha e Freitas, para quem a acepção de embriaguez do art. 28. II, e §§ 1º e 2º, do CP comum, e do art. 49 do CP Militar tanto é abrangente de quem ingeriu sozinho uma garrafa de vodka quanto quem cheirou várias ‘carreiras’ de cocaína, desde que a pessoa atinja estágio de intoxicação/excitação aguda, concluindo que a embriaguez é voluntária quando o agente ingere álcool ou consome droga com o fim deliberado de embriagar-se, ou culposa se a ingestão do álcool ou consumo de droga pelo agente ocorre sem intuito algum de embriagar-se, porém mesmo assim atinge o estado de ebriez, daí porque é chamada culposa (embriagou-se sem o desejar)[7].

 

Nova causa de especial aumento de pena

 

Pois bem, tratando ainda sob a rubrica da “forma qualificada”, a Lei 14.688/2023 incluiu um novo § 4º ao art. 290 do CPM, segundo o qual dobra-se a pena se as condutas descritas no caput são cometidas por militar em serviço. Tecnicamente falando, trata-se de uma majorante especial, lembrando-se que já existe uma agravante genérica, que sempre agrava a pena, quando não integrante ou qualificativa do crime, prevista no art. 70, II, alínea ‘l, que é o fato de estar o agente em serviço.

 

 

Tráfico de drogas

 

E a lei nova também passou a prever a hipótese do tráfico de drogas como crime militar, ao incluir o novel § 5º ao art. 290, prevendo uma pena de 5 a 15 anos de reclusão para o agente, neste ponto equiparando-a ao que se encontra previsto no art. 33 da Lei 11.343/2006, mas sem prever a pena de pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa que a lei penal comum estabelece de forma concomitante, o que faz com que, nessa equiparação pela metade, a prática do tráfico de drogas de natureza militar seja mais benéfico ao agente que o tráfico previsto na legislação penal comum.

           

Rodrigo Foureaux e Luiz Paulo Spinola, defendendo a aplicação da pena de multa nos crimes militares por extensão, lembraram que a Lei 14.688/2023 promoveu alterações nos preceitos secundários da parte especial do Código Penal Militar, mas não previu a pena de multa que se encontra prevista no crime correspondente na legislação penal comum. Para eles, o legislador teve a oportunidade de inserir expressamente a pena de multa, mas assim não procedeu, tendo inclusive, alterado várias penas e nada dito a respeito da pena de multa.

           

Os autores citam os crimes que foram alterados pela Lei 14.688/2023, sem previsão da pena de multa, estabelecendo uma comparação com tipos penais semelhantes do Código Penal comum que prevê a pena pecuniária, como o tráfico de drogas (art. 290, § 5º do CPM – art. 33, caput, da Lei 11.343/2006)[8].

 

           

Conclusão

 

A pergunta que não quer calar: era necessária a alteração no art. 290 do CPM? A bem da verdade, a alteração legal procedida era dispensável – como a maioria dos dispositivos da Lei 14.688, de técnica imperfeita ou equivocada.


Com efeito, com o advento da Lei 13.491/2017, qualquer crime da legislação comum – inclusive da Lei de Drogas, desde que cometido em uma das hipóteses do inciso II, do art. 9º, do Código Penal Militar, transforma-se em crime militar por extensão [também chamado de extravagante].


Da mesma forma, já existia uma legislação específica sobre drogas, a Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006, e os crimes nela previstos, em tese sempre poderiam vir a tornar-se crimes militares por extensão, o que afastaria qualquer necessidade de ajuste ou reforma no art. 290, principalmente da forma equivocada como foi feita.

           

A Lei disse mais do que devia, e menos do que pretendia. É o que parece. Com a palavra os Tribunais!


Jorge Cesar de Assis é advogado inscrito na OAB-PR. Membro aposentado do Ministério Público Militar da União. Integrou o Ministério Público paranaense. Oficial da Reserva Não Remunerada da Polícia Militar do Paraná. Sócio Fundador da Associação Internacional das Justiças Militares – AIJM. Membro correspondente da Academia Mineira de Direito Militar e da Academia de Letras dos Militares Estaduais do Paraná – ALMEPAR. Coordenador da Biblioteca de Estudos de Direito Militar da Editora Juruá. Administrador do site JUS MILITARIS - www.jusmilitaris.com.br.          

 

NOTAS

[1] NUCCI, Guilherme de Souza, Código Penal Militar Comentado, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p.103.

[2] COUTO, Cleber; SILVA, Túlio Leno Góes. A (in)constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Droga. Disponível no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/42689 , acesso em 08.09.2023.

[3] BITENCOURT, Cezar Roberto, Código Penal Comentado, 10ª edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2019, p.196.

[4] NUCCI, Guilherme de Souza, Código Penal Militar Comentado, p.102.

[5] ROSSETTO, Enio Luiz. Código Penal Militar Comentado, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 253.

[6] GIULIANI, Ricardo Henrique Alves, Direito Penal Militar – Série Concursos, Porto Alegre: Editora Verbo Jurídico, 2007, p.80.

[7] FREITAS, Ricardo; ROCHA, Guilherme; MARREIROS, Adriano Alves. Direito Penal Militar – Teoria Crítica & Prática, São Paulo: Editora Método, 2015, pp.611, 612 e 613.

[8] FOUREAUX, Rodrigo & SPINOLA, Luiz Paulo. A aplicação da pena de multa no Direito Penal Militar diante da minirreforma do Código Penal Militar (Lei 14.688/2023), Florianópolis: Direito Militar nº 161, setembro – outubro de 2023, pp. 24-25.

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