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Jorge Cesar de Assis

A Lei 14.688/2023 e a pretendida compatibilização (mas nem tanto) do CP Militar com o CP Comum

A Lei 14.688, de 20 de setembro de 2023 - e com vigência declarada a partir de 60 dias de sua publicação, alterou o Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 (Código Penal Militar), a fim de compatibilizá-lo com o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e com a Constituição Federal; ao mesmo tempo, alterou a Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990 (Lei dos Crimes Hediondos), para classificar como hediondos os crimes militares que especifica.

A lei sancionada foi decorrência da aprovação pelo Congresso, do PL 2233/2022 do Senado Federal (PL 9.432/2017 na Câmara dos Deputados), tendo ocorrido uma mudança significativa no Código Penal Militar - CPM, que pode ser resumida da seguinte forma: foram revogados 14 dispositivos; houve alteração redacional em 88 artigos, tendo ocorrido 08 vetos que não foram ainda apreciados pelo Congresso. Houve também a manutenção de dispositivos decadentes, que poderiam ter sido corrigidos, mas não o foram.



I - DAS REVOGAÇÕES


A lei nova revogou os seguintes dispositivos: o art. 21, que conceituava o assemelhado, figura há muito inexistente no direito penal militar brasileiro; os arts. 51 e 52, que tratavam da equiparação aos maiores de 18 anos daqueles que ainda não tinham alcançado essa idade, por evidente contrariedade ao art. 228 da Constituição Federal; art. 55, alínea f (pena de suspensão do exercício do posto, graduação, cargo ou função) e alínea g (pena de reforma); art. 60 que tratava da pena do assemelhado; art. 64, que conceituava a pena de suspensão do exercício do posto, graduação, cargo ou função; art. 78, que tratava do criminoso habitual ou por tendência; art. 82, que tratava da ressalva à habitualidade presumida para fins de concurso de crimes idênticos ou de crime continuado; art. 86, III, que previa a revogação do sursis pela ocorrência de punição disciplinar de natureza grave; art. 123, V, que previa a extinção da punibilidade pela reabilitação; art. 127, que previa a prescrição no caso de reforma ou suspensão de exercício e; o art. 233, que previa o atentado violento ao pudor (revogado no CP desde 2009).



II - DAS ALTERAÇÕES REDACIONAIS


As alterações redacionais ocorridas podem ser definidas como:


De simples ajustes de termos ou expressões, v.g. art. 2º - lei supressiva de incriminação, igualando ao art. 2º do CP – lei penal no tempo; art. 9º, inciso II e alínea b do inciso III, retirando a referência ao assemelhado como agente ativo e passivo de crime militar, e substituindo o termo ‘funcionário’ por ‘servidor’ público; art. 11, com a substituição da expressão forças armadas por instituições militares, abarcando então as forças militares estaduais ao se referir aos militares estrangeiros; art. 14, ampliando o dispositivo, incluindo o ato de matrícula como passível de defeito ao lado da incorporação; art. 22, com a substituição da expressão forças armadas por instituições militares, abarcando então as forças estaduais no conceito de militar; o art. 24, que foi ampliado, diferenciando a superioridade vertical (decorrente dos quadros hierárquicos) da horizontal (decorrente da função), além de definir quem é o inferior hierárquico; o art. 27, ao definir quem são os servidores da Justiça, e excluindo o Ministério Público; art. 38, § 2º, acrescentando o adjetivo hierárquico para designar o inferior que cumpre a ordem criminosa; art. 47, I e II, acrescendo o adjetivo hierárquico aos substantivos superior e inferior; art. 48, melhora a redação do parágrafo único ampliando as hipóteses de redução da pena; art. 50, deixa evidente o entendimento da inimputabilidade dos menores de 18 anos; art. 53, § 5º, acrescido o adjetivo hierárquicos ao substantivo inferiores na questão dos cabeças; art. 70, alínea h, substituído o termo velho por pessoa maior de 60 anos, e acrescido os termos mulher grávida e pessoa com deficiência; art. 77, alterado a rubrica, de pena-base para cálculo da pena, aproximando-o do sistema trifásico do art. 59, do CP; art. 79, mudou a redação para tratar apenas do concurso material de crimes; art. 79-A, novo, tratando apenas do concurso formal de crimes; art. 80, nova redação para o tratamento do crime continuado; art. 84, nova redação para os pressupostos da suspensão condicional da pena, com aumento do prazo do sursis; art. 86, I, melhora a redação para a revogação obrigatória da suspensão em caso de condenação criminal e deu nova redação para a revogação facultativa do § 1º; art. 98, VII, adequou a redação do dispositivo, para a incapacidade para o exercício do poder familiar, abandonando a expressão pátrio poder; art. 103, exclusão do assemelhado, na perda da função pública; art. 105, alteração no título e na redação, para prever a “Incapacidade para o exercício do poder familiar, da tutela ou da curatela’; art. 109, II, ajuste redacional, da perda em favor da Fazenda Nacional para Fazenda Pública, abarcando assim, a Fazenda Estadual e do Distrito Federal; art. 110, nova redação para o tratamento das medidas de segurança; art. 111, exclusão do assemelhado, do rol das pessoas sujeitas à medida de segurança; art. 112, alteração da internação em manicômio judiciário para Estabelecimento de Custódia e Tratamento, prazo de internação, perícia médica e desinternação ou liberação condicional; art. 113, nova redação para a hipótese de substituição da pena para internação; art. 121, admissão da ação privada subsidiária da pública no parágrafo único; art. 122, alterou a dependência de requisição para a ação penal quando o réu for militar nos crimes dos arts. 136 a 141 do CPM, do Ministro da Força, para o Comandante da Força; art. 123, dentre as causas de extinção da punibilidade, inseriu a hipótese de graça no inciso II e, incluiu o inciso VII - perdão judicial, nos casos previstos em lei; art. 124, alteração redacional para as espécies de prescrição; art. 125, aumento do prazo prescricional no inciso VII, mais inclusão do inciso III no § 4º, prevendo suspensão da prescrição em caso de embargos de declaração ou recurso ao STF se estes forem considerados inadmissíveis; art. 149, pela exclusão da referência a assemelhados; art. 150, pela exclusão da referência a assemelhados; art. 152, pela exclusão da referência a assemelhados; art. 154, pela exclusão da referência a assemelhado; art. 155, inclusão do termo ‘eletrônico’, dentre os meios de incitação previstos no parágrafo único;


De criação de novos tipos penais, ajustes, aumento e substituição de penas, v.g., art. 170, pela previsão de pena de detenção ao invés de suspensão; art. 171, exclusão do termo assemelhado; art. 174, previsão de pena de detenção ao invés de suspensão; art.175, aumento da pena de detenção para 3 meses a 2 anos; art. 176, aumento da pena para detenção de 1 a 2 anos; art. 177-A, inclusão da resistência qualificada pelo resultado morte + alteração no § 2º para adequar a cumulação de penas; art. 197, previsão de pena de detenção em lugar de suspensão; art. 201, previsão de pena de detenção em lugar de suspensão; art. 204, previsão de pena de detenção em lugar de suspensão; art. 205, inclusão do inciso VII, no § 2º, criando a figura do homicídio funcional; art. 206, o § 1º passa a ser nomeado de ‘aumento de pena’ no homicídio culposo, tratada nos incisos I e II + inclusão do § 3º com a figura do perdão judicial; art. 207, alteração na rubrica do § 1º para aumento ao invés de agravação de pena que passa a ser duplicada +aumento da pena da provocação indireta ao suicídio prevista no § 2º; art. 209, inclusão no §1º, da possibilidade de aceleração de parto e ocorrência de perigo de vida nas hipóteses de lesão grave + inclusão da possibilidade de aborto no § 2º + alteração redacional do § 3º, e inclusão do § 3º-A prevendo a morte preterdolosa; art. 210, inclui no § 1º, a possibilidade de aumento de pena se o agente não procura diminuir as consequências do seu ato ou foge para evitar prisão em flagrante + inclusão do § 3º prevendo perdão judicial; art. 212, incluído um § 3º prevendo as hipóteses de aumento de pena; art. 213, incluído um § 3º prevendo as hipóteses de aumento de pena; art. 216, incluído um § 1º com as hipóteses em que o juiz pode deixar de aplicar pena e um § 2º com previsão de injúria qualificada; art. 218, no inciso III, substituição do termo funcionário por servidor público e, no inciso IV incluído o adjetivo hierárquico após o termo inferior; art. 222, aumento da pena ao autor do constrangimento; art. 225, no § 1º, fixação de pena maior + alteração redacional do inciso I incluindo a companheira do agente e o maior de 60 anos como vítima + inclusão do inciso IV prevendo fins libidinosos do sequestro; art. 226, alteração redacional no § 2º, substituindo o termo funcionário por servidor público; art. 232, ampliação da figura da vítima do estupro com aumento de pena + inclusão do § 1º com a figura do estupro qualificado pela lesão de natureza grave ou vítima entre 14 e 18 anos + inclusão do § 2º, com a figura do estupro qualificado pelo resultado morte + inclusão do § 3º, com a figura do estupro de vulnerável; art. 234, mudança do preceito primário da corrupção de menores com aumento de pena; art. 235, da mudança da rubrica marginal e do preceito primário em face do julgamento da ADPF 291; art. 240, no § 5º, substituição do termo Fazenda Nacional para Fazenda Pública + inclusão do § 6º-A, prevendo a mesma pena do § 6º a quem subtrai arma, munição, explosivo ou outro material de uso restrito militar ou que contenha sinal indicativo de pertencer a instituição militar e § 7º estendendo atenuações; art. 241, parágrafo único, inclusão dos termos embarcação, aeronave ou arma dentre as hipóteses de aumento de pena; art. 242, § 2º, incluídos os incisos VII, VIII e IX dentre as hipóteses de roubo qualificado; art. 244, incluído o § 4º prevendo a colaboração premiada; art. 254, renumerado o parágrafo único em § 1º, e incluído um § 2º, prevendo a receptação qualificada; art. 265, mudança no preceito primário, substituindo a expressão engenho de guerra motomecanizado por outros equipamentos militares; art. 266, alterado o preceito primário em face da revogação da pena de suspensão de exercício e reforma; art. 290, inclusão de um § 3º punindo a apresentação sob efeito de substância entorpecente + inclusão de um § 4º, aumentando a pena se o crime ocorre em serviço e + inclusão de um § 5º, prevendo o crime de tráfico; art. 291, alteração do preceito primário para excluir o adjetivo militar em relação ao médico, dentista ou farmacêutico + alteração da redação do inciso I, do parágrafo único para excluir o adjetivo militar em relação ao médico, dentista ou farmacêutico; art. 300, alteração do preceito primário, substituindo-se a expressão funcionário por servidor público; art. 303, alteração no § 2º, da expressão funcionário para servidor público + idêntica mudança no § 3º que prevê o peculato culposo; art. 308, inclusão do verbo ‘solicitar’ no preceito primário da corrupção passiva, com aumento de pena; art. 324, alteração no preceito secundário com aumento de pena; art. 326, alteração no preceito primário com inclusão dos §§ 1º e 2º, com aumento de pena; art. 332, ajuste redacional do preceito primário para excluir a figura do assemelhado, com substituição do termo funcionário para servidor público; art. 334, ajuste redacional no preceito primário para substituir a expressão funcionário por servidor público; art. 335, aumento da pena; art. 336, alteração redacional do preceito primário + aumento de pena; art. 340, alteração da pena de suspensão por detenção, com aumento de pena; art. 350, § 1º; e art. 353, ajuste redacional no preceito primário.



III – AQUILO QUE PODERIA TER SIDO ATUALIZADO, MAS NÃO O FOI


Mas houve omissões injustificáveis para a alegada grandeza do projeto de lei aprovado. O ilustre professor Fernando Galvão – Desembargador do Tribunal de Justiça Militar mineiro, lembrou de maneira perspicaz que, as alterações trazidas pela Lei 14.688/2023 promovem uma atualização necessária em um estatuto repressivo que foi por muito tempo negligenciado pelo legislador e que não incorporou os aprimoramentos que foram consolidados no estatuto repressivo comum mas, ainda permanecem no Código Penal Militar referências sobre o modelo de teoria do crime que não se concilia com o que á adotado na legislação comum, e cita o art. 33 que foi preservado em sua concepção de que dolo e culpa são espécies de culpabilidade, lembrando que o estudo da parte especial do CPM, no entanto, permite concluir que dolo e culpa distinguem os tipos penais incriminadores e não podem constituir espécies de culpabilidade (...)


Fernando Galvão lembra, ainda que o art. 69 do CPM, considera como circunstâncias judiciais a intensidade do dolo e o grau da culpa, referências que indicam o acolhimento do modelo teórico neoclássico para a identificação da conduta criminosa, com a concepção psicológica-normativa de culpabilidade (modelo adotado pelo CP de 1940 em que o grau de reprovação pessoal decorria da mensuração do dolo e da culpa, sendo que o intensidade do dolo e o grau da culpa constituíam índices para aferir a responsabilidade do agente).


Adverte Fernando Galvão, que com a Reforma da Parte Geral promovida pela Lei 7.209/84, o CP comum passou a conter dispositivos que sinalizam para a adoção de um modelo teórico diferente, v.g., o art. 20 tratando do erro de tipo e deixando claro que o dolo integra o tipo penal incriminador, mudança conciliatória com os tipos penais incriminadores descritos na parte geral. O art. 59, por sua vez, substituiu as circunstâncias judiciais da intensidade do dolo e do grau da culpa pela circunstância judicial culpabilidade (...)


Sustentando que o Código Penal Militar não estabeleceu parâmetros para medir a intensidade do dolo e grau da culpa, questão também não resolvida pela Doutrina, o ilustre Professor indaga se seria possível sustentar que em um caso de homicídio, por exemplo, o sujeito teria mais vontade de matar que o sujeito de outro homicídio? Nos termos em que o conceito de dolo é formulado no CPM (art. 33, inciso I), não é possível mensurar a intensidade do dolo (...)


É de se concluir então que no art. 69 do Código Penal Militar ainda consta referência às circunstâncias judiciais da intensidade do dolo e do grau da culpa. No entanto, tais circunstâncias não podem ser utilizadas pelo julgador para aumentar a pena-base, seja pela incompatibilidade com a teoria do crime mais aprimorada que o CP comum introduziu ao ordenamento jurídico brasileiro, seja porque não permitem fundamentação racional que explique a gradação que pretendem realizar sobre os elementos psicológicos da conduta criminosa. E é por isso que a oportunidade de alteração do Código Penal Militar (promovida pela Lei 14.688/23) poderia ter sido aproveitada para sanar os problemas decorrentes de seus dispositivos que indicam a acolhida da concepção psicológico-normativa da culpabilidade [1], mas não o foi.


IV – DOS VETOS AO PROJETO DE LEI APROVADO


O PL 2233/2022 do Senado Federal (PL 9.432/2017 na Câmara dos Deputados), sofreu 08 vetos, a saber:


VETO nº 01: Art. 2º do Projeto de Lei, na parte em que altera o § 1º do art. 9º do Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 - Código Penal Militar:


“§ 1º Os crimes militares de que trata este artigo, incluídos os previstos na legislação penal, nos termos do inciso II do caput deste artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares contra civil, serão da competência do Tribunal do Júri.”


Razões do veto


“Não obstante a boa intenção do legislador, a proposição legislativa contraria o interesse público ao permitir a interpretação equivocada de que crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis constituem infrações penais militares, em vez de infrações penais comuns, cuja competência é do Tribunal do Júri. Além de contradizer o entendimento majoritário da doutrina e da jurisprudência sobre o tema, a medida aumentaria a insegurança jurídica em torno da atribuição da investigação desses delitos à Polícia Civil ou à Polícia Militar.”


VETO nº 02: Art. 2º do Projeto de Lei, na parte em que altera o inciso V do caput do art. 98 do Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 - Código Penal Militar:


“V - a perda da função pública;”


VETO nº 03: Art. 2º do Projeto de Lei, na parte em que altera o art. 107 do Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 - Código Penal Militar:


“Art. 107. Salvo os casos do art. 99 e do inciso II do caput do art. 103 deste Código, a imposição da pena acessória deve constar expressamente da sentença.” (NR)”


Razões do veto


"Em que pese a boa intenção do legislador, a proposição legislativa contraria a Constituição Federal ao permitir o entendimento de que a suspensão dos direitos políticos não constitui efeito automático das condenações por crimes militares, ao contrário do que ocorre com as condenações por crimes não militares.


Com relação ao inciso V do caput do art. 98 do Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 - Código Penal Militar, a regra de suspensão dos direitos políticos, prevista no inciso III do caput do art. 15 da Constituição, é autoaplicável e consequência imediata da sentença penal condenatória transitada em julgado, independentemente da natureza da pena imposta (privativa de liberdade, restritiva de direitos, suspensão condicional da pena, dentre outras hipóteses). Assim, para um civil, a perda da função eletiva e a suspensão dos direitos políticos são consequências inafastáveis em caso de condenação penal, sob tal aspecto incide, também, o dispositivo em afronta ao princípio da isonomia. Considerando que a norma legal, com a alteração proposta, restringe os efeitos da condenação apenas à perda da função pública, excluída a eletiva, incide em afronta à Constituição, haja vista que a Lei Maior dispõe que a suspensão dos direitos políticos se reveste em efeito automático da condenação criminal, nos termos do disposto no inciso VI do caput do art. 55 e no inciso III do caput do art. 15 da Constituição.


Ademais, a alteração proposta poderá revestir-se em insegurança jurídica, em afronta ao disposto no inciso XXXVI do caput do art. 5º da Constituição, tendo em vista a abertura legal para a proliferação de interpretações judiciais acerca da supressão do termo “ainda que eletiva”, o que não contribui para a estabilidade das relações jurídicas.


No que tange à alteração no art. 107 do Decreto-Lei nº 1.001, de 1969 - Código Penal Militar, ao suprimir a menção ao art. 106, que, por sua vez, faz referência à suspensão dos direitos políticos durante a execução da pena privativa de liberdade ou da medida de segurança, incide em inconstitucionalidade, por arrastamento, considerando os mesmos vícios apontados com relação ao inciso V do caput do art. 98 do referido Decreto-Lei, ou seja, afronta ao inciso III do caput do art. 15 e ao inciso VI do caput do art. 55 da Constituição.”


VETO nº 04: Art. 2º do Projeto de Lei, na parte em que altera o §3º do art. 9º do Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 - Código Penal Militar:


“§ 3º Excetuam-se deste artigo os delitos tipificados como crimes sexuais ou praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da legislação penal e especial vigentes, desde que praticados em lugar que não esteja sujeito à administração militar.” (NR)”


Razões do veto


“Embora a boa intenção do legislador, a proposta é contrária ao interesse público, pois estabelece, contrario sensu, que os crimes sexuais ou praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da legislação penal e especial, praticados em lugar sujeito à administração militar, serão de competência da Justiça Militar. Os crimes de que trata o dispositivo, em razão da sua sensibilidade e gravidade, merecem tratamento específico, a fim de potencializar o caráter preventivo e protetivo do atendimento às vítimas, inclusive com o estabelecimento de juízos especializados para processamento e julgamento das causas, mostrando-se contrária ao interesse público em razão da previsão legal de hipóteses em que tais crimes seriam de competência da Justiça Militar.”


VETO nº 05: Art. 2º do Projeto de Lei, na parte em que acresce o art. 31-A ao Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 - Código Penal Militar:


“Arrependimento posterior Art. 31-A. Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços).”


Razões do veto


“Em que pese a boa intenção do legislador, a proposição legislativa contraria o interesse público, pois o texto proposto, ao admitir a figura do arrependimento posterior nos crimes militares de modo indiscriminado, resultaria em estímulo negativo à manutenção da ordem e da dignidade das instituições militares, revelando-se incompatível com os princípios da hierarquia e da disciplina.”


VETO nº 06: Art. 2º do Projeto de Lei, na parte em que altera o art. 102 do Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 - Código Penal Militar:


“‘Exclusão das instituições militares e da perda da graduação

Art. 102. A condenação de praça a pena privativa de liberdade por tempo superior a 2 (dois) anos, por crimes comuns e militares, pode acarretar a sua exclusão das instituições militares, desde que submetida, mediante processo específico, ao crivo do Tribunal Militar competente.


§ 1º Os militares condenados por crimes comuns e militares somente perderão a graduação por meio de processo específico no Tribunal de Justiça Militar.


§ 2º Nas unidades da Federação em que não houver o Tribunal de Justiça Militar, o processo específico será de competência do Tribunal de Justiça do Estado.


§ 3º Aplica-se ao processo específico de que trata este artigo o mesmo procedimento destinado aos oficiais.’ (NR)”


Razões do veto


“Em que pese a boa intenção do legislador, a proposição legislativa contraria a Constituição Federal. A previsão constitucional limitou aos oficiais a garantia formal de procedimento específico para a perda do posto, posterior à condenação criminal. O tratamento constitucional diferenciado possui justificativa no primado da hierarquia e da disciplina que servem de base à organização das instituições militares. A extensão da regra às praças, pela via da legislação ordinária, poderia ir além da decisão do Poder Constituinte, que não estabeleceu o rito como necessário para os não-oficiais. Assim, a alteração proposta incide em afronta aos incisos VI e VII do § 3º do art. 142 da Constituição”.


VETO nº 07: Art. 2º do Projeto de Lei, na parte em que altera o parágrafo único do art. 42 do Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 - Código Penal Militar:


“Art. 42. ...............................................................................

Parágrafo único. Não há igualmente crime quando o militar na função de comando, na iminência de perigo ou de grave calamidade, compele os subalternos, por meios violentos, a executar serviços e manobras urgentes, para salvar a unidade ou vidas ou para evitar o desânimo, o terror, a desordem, a rendição, a revolta ou o saque.” (NR)”


Razões do veto


“Em que pese a boa intenção do legislador, a proposição legislativa é contrária ao interesse público. A ampliação do instituto da excludente de ilicitude para uso da violência contra subalternos na iminência de perigo ou grave calamidade o tornaria aplicável potencialmente a todo militar em função de comando, o que causaria insegurança jurídica em razão da diversidade de interpretações possíveis em relação às hipóteses fáticas para as quais seria autorizado o uso da violência.”


VETO nº 08: Art. 2º do Projeto de Lei, na parte em que altera o art. 166 do Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 - Código Penal Militar:


“Art. 166. Publicar o militar, sem licença, ato ou documento oficial, ou criticar publicamente superior hierárquico por ato de ofício ou assunto atinente à disciplina militar: ............................................................................................... (NR)”


Razões do veto


“Em que pese a boa intenção do legislador, a alteração do art. 166 do Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969, com a exclusão de tipicidade da conduta de “publicar o militar, sem licença, ato ou documento oficial ou criticar qualquer resolução de governo”, atenta contra os princípios constitucionais da hierarquia e da disciplina, e também contra as próprias instituições militares, haja vista que as Forças Armadas são instituições nacionais permanentes e regulares, sob a autoridade suprema do Presidente da República, de forma que criticar resoluções de Governo afronta os princípios mencionados, nos termos do disposto no caput do art. 142 da Constituição.”


Demonstrado os vetos procedidos pelo Presidente da República, em princípios apenas alguns deles merecem maiores considerações, senão vejamos:


Em relação ao Veto nº 04 – o inusitado § 3º do art. 9º


Nos termos do novel § 3º, em boa hora vetado, ficou assegurado que, excetuam-se deste artigo os delitos tipificados como crimes sexuais ou praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da legislação penal e especial vigentes, desde que praticados em lugar que não esteja sujeito à administração militar.


Era curiosa a redação do dispositivo para se dizer o mínimo. Cícero Robson Coimbra Neves, com a agudeza que lhe é peculiar, em artigo publicado anteriormente à sanção da Lei 14.688/2023 [2], lembrou que pretensamente, o dispositivo colocaria termo em discussões como o acalorado debate sobre a natureza militar ou não dos crimes categorizados como violência doméstica, praticados de militar da ativa contra militar da ativa, tema que, nitidamente, conhecia divergência entre os tribunais militares, que consideravam o crime como militar, e os Tribunais Superiores, notadamente o STF e o STJ , que têm tendência oposta.


Ele lembrou que o parágrafo foi inaugurado com a expressão “Excetuam-se deste artigo”, ou seja, não são enquadrados no art. 9º, portanto não seriam crimes militares em tempo de paz aqueles atingidos pelo universo definido pelo dispositivo, exceto se praticados em lugar sujeito à administração militar, quando o serão.


Para o professor Cícero Coimbra – e com ele concordamos, a técnica escolhida, com o devido respeito, não parece ter sido a melhor, pois inaugura-se uma exceção – não configuração de crime militar por não enquadramento no art. 9º – parindo, concomitantemente, uma “exceção da exceção” – salvo se for em lugar sujeito à administração militar –, tornando a análise e a aplicação muito mais complexa do que ocorreria com a simples técnica de dizer que diretamente “os crimes sexuais praticados com violência doméstica ou familiar contra a mulher, praticados em lugar não sujeito à administração militar, não são crimes militares”, em uma proposição direta.


Percebam que a redação do § 3º criava a inusitada exceção em relação a duas espécies de crimes, ligadas pela conjunção “ou”, quais sejam, os crimes sexuais e aqueles decorrentes de violência doméstica contra a mulher.


Em relação ao Veto nª 06 – perda da graduação das praças


A alteração proposta para o art. 102, do CPM, mudou sensivelmente o tratamento dado à matéria. Seja porque pela redação proposta, a imposição de pena de exclusão das instituições militares deixaria de ser acessória pela condenação a pena privativa de liberdade superior a dois anos (o termo ‘pode’ indica uma possibilidade), o que se alia ao fato de que a proposição legislativa contraria a Constituição Federal. A previsão constitucional limitou aos oficiais a garantia formal de procedimento específico para a perda do posto, posterior à condenação criminal. O tratamento constitucional diferenciado (nos termos do veto) possui justificativa no primado da hierarquia e da disciplina que servem de base à organização das instituições militares. A extensão da regra às praças, pela via da legislação ordinária, poderia ir além da decisão do Poder Constituinte, que não estabeleceu o rito como necessário para os não-oficiais.


Ademais, com o julgamento unânime, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, do Tema 1.200 da Repercussão Geral [3], em junho de 2023, a proposta de alteração da norma, se sancionada apenas 03 meses depois, estaria indo de encontro ao que foi decidido pelo STF, quando restou decidido que: a) é desnecessário um procedimento específico para fins da perda da graduação de praça militar estadual; b) é possível a exclusão da praça militar estadual em razão de faltas disciplinares apuradas em âmbito administrativo – Súmula 673; c) é possível a perda do cargo público da praça e do oficial da polícia militar em razão de condenação, pela Justiça Comum, por crime comum, com fundamento no art. 92, I, ‘b’, do Código Penal ou em Lei Especial e; d) a ausência de declaração da perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças como efeito secundário da condenação pela prática de crime militar ou comum, não impede a análise do fato e a posterior deliberação sobre a perda do posto / patente / graduação pelo Tribunal Militar Estadual, em procedimento específico, à luz dos valores e do pundonor militares.


Em relação ao 7º veto – estado de necessidade justificante específico do comandante


Esse veto chama a atenção em razão de ter mencionado que “a proposição legislativa é contrária ao interesse público; e que a ampliação do instituto da excludente de ilicitude para uso da violência contra subalternos na iminência de perigo ou grave calamidade o tornaria aplicável potencialmente a todo militar em função de comando, o que causaria insegurança jurídica em razão da diversidade de interpretações possíveis em relação às hipóteses fáticas para as quais seria autorizado o uso da violência”.


A alteração proposta – e que foi vetada, simplesmente procedeu a troca da expressão “o comandante de navio, aeronave ou praça de guerra”, pela expressão “o militar na função de comando”, suficiente para identificar o comandante de qualquer fração de tropa [4].


Não nos pareceu que estivesse a ampliar o instituto do uso de violência contra subalternos. Mesmo porque, conforme já manifestado alhures, as unidades militares citadas pelo artigo em tempo de paz, navio e aeronave e a que estiver em praça de guerra, devem sempre estar em condições de eficiência e utilização. Situação de grave perigo ou calamidade, v.g., ataque repentino de força militar inimiga, erupção de um vulcão, eclosão de terremoto ou maremoto podem causar a desordem nas guarnições militares, ou levar seus integrantes ao desânimo, ao terror, e destes, à rendição ou, o que é pior, despidos da condição de mantenedores da lei e da ordem, passarem ao saque que é uma das piores formas de agressão, pois acompanha sempre a desgraça pública.


Ao comandante, então, é imposto o dever de manter sua tropa controlada, destinando o CPM inclusive algumas figuras típicas de modo a punir aquele que se omite em manter a força sob seu comando em estado de eficiência (art. 198) e mesmo aquele que se omite de tomar providências para salvar seus comandados (art. 200) [5].


Em relação ao 8º veto – art. 166 – redução do alcance da publicação de crítica indevida


A alteração proposta aperfeiçoava a redação do artigo, excluindo a figura do “assemelhado”, há muito inexistente no direito militar pátrio e adicionava ao termo “superior” o adjetivo “hierárquico”. Mas reduzia o alcance da norma, pois manteve apenas a tipicidade da conduta de publicar o militar, sem licença, ato ou documento oficial, ou criticar publicamente superior hierárquico por ato de ofício ou assunto atinente à disciplina militar. A redação pelo PL proposta excluía, no entanto, a tipicidade da crítica por parte de militar a qualquer resolução do Governo.


Assim, deu ensejo ao veto, que em suas razões explicou que a exclusão de tipicidade da conduta de “publicar o militar, sem licença, ato ou documento oficial ou criticar qualquer resolução de governo”, atenta contra os princípios constitucionais da hierarquia e da disciplina, e também contra as próprias instituições militares, haja vista que as Forças Armadas são instituições nacionais permanentes e regulares, sob a autoridade suprema do Presidente da República, de forma que criticar resoluções de Governo afronta os princípios mencionados, nos termos do disposto no caput do art. 142 da Constituição.



V – A LEI 14.688/2023 E OS VÍCIOS DE CONSTITUCIONALIDADE APONTADOS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO MILITAR


Pois bem, em 16 de outubro de 2023, o Procurador-Geral da Justiça Militar (PGJM) encaminhou para a Procuradora-Geral da República em exercício [6], ofício no qual apontou vícios de constitucionalidade detectados na análise da Lei 14.688/2023 e conhecida como reforma do Código Penal Militar, e que relacionam-se aos delitos de injúria racial e homofóbica e de estupro de vulnerável, em razão de possíveis retrocessos em conquistas de direitos fundamentais, especificamente quanto à tutela penal de vítimas de crimes sexuais e de crimes decorrentes de preconceito de raça ou de cor, que resultaram em déficit de proteção no direito penal militar. Em decorrência disso, o PGJM representou pelo ajuizamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade.


A Representação está fundamentada na análise detida da nova lei, procedida pelo culto e dedicado membro do Ministério Público Militar, o professor Cícero Robson Coimbra Neves, pedindo-se vênia para a transcrição necessária [7]:


“1. primeira e possível inconstitucionalidade diz respeito à inserção no CPM dos delitos de injúria racial e homofóbica como injúria qualificada, junto à injúria religiosa e à ofensa à honra subjetiva em razão da condição de pessoa idosa ou com deficiência, trazendo a novel redação o seguinte texto:


Art. 216. (...)

(...)


Injúria qualificada

§ 2º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, a cor, a etnia, a religião, a origem, a orientação sexual ou a condição de pessoa idosa ou com deficiência: Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos.


1.2. Ocorre que, com relação à injúria racial [8], neste mesmo ano de 2023, mais precisamente em 11 de janeiro, foi sancionada a Lei 14.532, que, segundo sua ementa, tipificou "como crime de racismo a injúria racial", para apenar a ofensa à honra subjetiva "em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional" com reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, além de multa, nos termos do art. 2º-A, da Lei 7.716/1989 (Lei do Crime Racial), inserido pelo art. 1º daquele primeiro diploma legal, sem contar o aumento de pena do parágrafo único, igualmente inexistente no CPM, verbis:


Art. 2º-A Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional.


Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.


Parágrafo único. A pena é aumentada de metade se o crime for cometido mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas.


1.3. Poucos meses depois, em movimento contrário e, portanto, caracterizador de evidente e incompreensível retrocesso em matéria de conquista de direitos fundamentais, inseriu-se no Código Penal Militar previsão quase idêntica (e até desnecessária, considerando-se o disposto no art. 9º, II, do CPM, com a redação dada pela Lei 13.491/2017), para apenar a injúria racial com reprimenda de 1 (um) a 3 (três) anos de reclusão, ou seja, com pena praticamente à metade daquela prevista pela Lei 7.716/1989 e sem previsão de multa.


1.4. Assim, em razão do princípio da especialidade, que reclamaria a aplicação do dispositivo previsto no CPM para fatos que se almodam às hipóteses do art. 9º daquele codex, em detrimento da "Lei de Racismo", a Justiça Militar, não sendo sanado o vício, poderá ser palco para a violação aos princípios da vedação à proteção deficiente à dignidade, à honra e à imagem das pessoas vítimas de preconceito e segregação e da proibição de retrocesso nessa temática.


1.5. Em outras palavras, era preferível que o legislador não tivesse se ocupado de tratar desse tema na reforma do CPM.


1.6. Ora, por força do art. 9º, II, do CPM, com a redação dada pela Lei 13.491/2017, o delito previsto no art. 2º-A da Lei do Crime Racial pode ser caracterizado como crime militar extravagante, quando, por exemplo, praticada de militar da ativa contra militar da ativa, ou por militar em serviço contra um civil, mostrando-se desnecessário o acréscimo no Código Penal Militar.


1.7. Não há, porém, justificativa alguma para que fossem tipificadas as mesmas condutas no Código Penal Militar com pena substancialmente inferior, uma vez que os bens jurídicos tutelados pelo tipo penal em questão derivam do princípio republicano de repúdio ao racismo (art. 4º, VIII) e de direito fundamental (art. 5º, XLII), e não dos princípios da hierarquia e disciplina, sob os quais se organizam as instituições militares.


1.8. E essa disparidade não ocorrerá apenas nessa situação, mas igualmente com relação ao delito de injúria homofóbica, inserido pelo legislador primeiramente na legislação penal militar, quase que de forma concomitante à decisão do Supremo Tribunal Federal nos embargos de declaração no Mandado de Injunção (MI) 4.733.


1.9. Em 21 de agosto de 2023, ao concluir o julgamento dos aclaratórios no MI 4.733, a Suprema Corte decidiu que "a prática da homotransfobia pode configurar crime de injúria racial".


1.10. Desse modo, para crimes comuns de injúria homofóbica, segundo a decisão do STF, incidirá, enquanto não sanada a omissão legislativa (no direito penal comum), o art. 2º-A da Lei do Crime Racial (que tipifica atualmente o delito de injúria racial), ao passo que, para crimes militares dessa natureza, deverá ser aplicado o art. 216, § 2º, do CPM, com o mesmo déficit de proteção supradestacado.


1.11. Outra distorção, violadora também da isonomia, ocorrerá quanto à injúria transfóbica, não contemplada pela reforma do CPM, já que a elementar do art. 216, § 3º, é de "orientação sexual", sem referência a questões de identidade de gênero. Nesse sentido, o crime militar de injúria homofóbica será apenado com reprimenda praticamente à metade, em atenção ao princípio da especialidade, enquanto o crime igualmente militar de injúria transfóbica, em atenção ao MI 4.733, e por força do art. 9º, II, do CPM, será apenado com reprimenda praticamente ao dobro.


1.12. Contudo, na linha do que parece ter sinalizado a Suprema Corte, ao decidir pela equiparação tanto da injúria homofóbica quanto da transfóbica à racial, não há justificativa alguma para que haja tratamento distinto entre as duas primeiras ofensas.


2. A segunda e igualmente possível inconstitucionalidade relaciona-se ao art. 232 do CPM, que tipifica o estupro. Esse dispositivo foi integralmente reformulado pela Lei 14.688/2023, para afastar-se, sobretudo, a concepção há muito ultrapassada de que somente a mulher poderia ser vítima desse delito.

2.1. Também quanto a esse tema, que envolve tutela penal que deriva diretamente do princípio constitucional da dignidade humana (art. 1º, III), e que, portanto, não deveria comportar tratamento diverso nos sistemas criminais comuns e militares, o que se observa é que teria sido muito mais conveniente que o legislador tivesse se ocupado de simplesmente revogar os dispositivos do CPM referentes ao estupro, ao atentado violento ao pudor e à corrupção de menores.

2.2. Preferiu, contudo, a adaptação, mas a Lei 14.688/2023, ao dar nova redação ao art. 232 do CPM, incorreu em vício quanto à tipificação incompleta do estupro de vulnerável, no § 3º daquele dispositivo, que tem como correspondente o art. 217-A do Código Penal comum:

Estupro

Art. 232. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:

Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.

§ 1º Se da conduta resulta lesão de natureza grave, ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (quatorze) anos:

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.

§ 2º Se da conduta resulta morte: Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.

§ 3º Se a vítima é menor de 14 (quatorze) anos ou, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato ou, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência:

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

2.3. O vício, caracterizador de proteção deficiente de vítimas de crimes sexuais, consiste na omissão quanto ao apenamento, no CPM, dos resultados lesão corporal de natureza grave e morte, a título de preterdolo, punido pelo Código Penal comum nos §§ 3º e 4º do art. 217-A:


Estupro de vulnerável


Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:


Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.


§ 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.


§ 2º (VETADO)


§ 3º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave: Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.


§ 4º Se da conduta resulta morte: Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.


§ 5º As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime.


2.4. Em rigor, a ausência de qualificadora quanto ao resultado morte, no CPM, não traz consequência prática alguma, uma vez que a pena prevista pelo CP comum para o resultado morte no caso de estupro de vulnerável (art. 217-A, § 2º), de reclusão de 12 a 30 anos, é idêntica ao resultado morte no caso do estupro previsto no art. 213, que igualmente coincide com a pena prevista para o resultado morte no caso do estupro previsto no art. 232, § 2º, do CPM, com a redação dada pela Lei 14.688/2023.


2.5. O problema está na omissão do apenamento do resultado lesão corporal de natureza grave no caso de estupro de vulnerável, o qual, no CP comum, é reprimido com reclusão de 10 a 20 anos (art. 217-A, § 3º).


2.6. No CPM, a partir da Lei 14.688/2023, somente haverá essa qualificadora atrelada ao caput do art. 232, em seu § 1º, com apenamento substancialmente inferior, de 8 a 12 anos de reclusão.


2.7. Isto é, se é possível valer-se do apenamento do resultado morte do CPM para o estupro previsto no caput do art. 232 em razão da equivalência das penas daquele codex e do CP comum (tanto para o estupro do caput do art. 213 quanto para o estupro de vulnerável, previsto no art. 217-A), sem que disso resulte déficit de proteção da vítima no âmbito militar, o mesmo não pode ser feito com relação ao resultado lesão corporal de natureza grave, que tem penas distintas no CP comum no caso do estupro previsto no art. 213 e no caso de estupro de vulnerável:


Estupro

Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:


Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.


§ 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:


Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos. (...)


Estupro de vulnerável

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:


Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.


§ 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.


§ 2º (VETADO)


§ 3º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave:


Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.


2.8. Não há justificativa alguma para a proteção deficitária das vítimas de tais crimes na esfera militar, o que viola não só o princípio da dignidade humana, em uma visão mais ampla, mas também os arts. 24, XIV, e 227 da CRFB, que reclamam especial proteção às pessoas com deficiência e às crianças e adolescentes.


3. A última questão, não propriamente relacionada à reforma do CPM de 2023, diz respeito ao termo a quo do prazo prescricional para os crimes contra a dignidade sexual ou que envolvam violência contra a criança e o adolescente.


3.1. Diz-se não propriamente relacionada à reforma porque o CPM, em sua redação original, por exemplo, já dispunha no sentido da presunção de violência no caso de vítima não maior de quatorze anos (art. 236, I) e já previa o delito de corrupção de menores (art. 234), de modo que a incorporação da regra de início da contagem do prazo prescricional apenas quando a vítima completar 18 anos, inserida no CP em 2012 pela Lei 12.650 (para os crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes) e reformulada em 2022 pela Lei 14.344 (para os crimes contra a dignidade sexual ou que envolvam violência contra a criança e o adolescente), já fazia sentido ao menos há uma década.


3.2. Contudo, ainda que preocupado com o tratamento do estupro de vulnerável no CPM, também quanto a esse ponto o que se verifica é uma proteção insuficiente dessas vítimas, se prevalecer o entendimento de que, em se aplicando o tipo penal previsto no Código Penal Militar (art. 232, § 3º), não se possa valer-se da regra especial de contagem de prescrição prevista no art. 111, V, do CP comum, ao singelo argumento de inexistência na parte geral do CPM.


3.3. De todo modo, esse é só um exemplo, pois a regra do art. 111, V, do CP comum contempla outras tantas hipóteses, e é bastante abrangente: se até 2022 limitava-se aos "crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes", hoje se aplica aos "crimes contra a dignidade sexual ou que envolvam violência contra a criança e o adolescente".


3.4. Observe-se que, embora na visão deste subscritor [o professor Cícero Coimbra] o argumento de silêncio eloquente não deva prevalecer, porque, evidentemente, não há razão alguma para o tratamento distinto de vítimas no âmbito da Justiça Militar (ainda mais para pior), e, portanto, o caso é de esquecimento ou distração do legislador, é certo que esperar soluções no âmbito doutrinário e jurisprudencial, quando possível a correção do vício pela Suprema Corte, por meio de instrumentos de controle concentrado de constitucionalidade, não é postura mais recomendada, ainda mais pelo Ministério Público, enquanto titular da ação penal.


3.5. Aliás, quanto à omissão detectada a respeito do termo a quo da prescrição para os crimes contra a dignidade sexual ou que envolvam violência contra a criança e o adolescente no CPM, para vozes que eventualmente se levantem no sentido de analogia in malam partem no caso de aplicação do art. 111, V, do CP, a irresignação não faz sentido, já que o instituto nada tem a ver com a índole do direito penal militar.


3.6. Note-se, outrossim, que a própria Suprema Corte, em questão de ordem no Inquérito 567, apesar de não haver previsão expressa na Constituição quanto à suspensão da prescrição na imunidade processual temporária de que trata o art. 86, § 4º, considerou aplicável o art. 53, § 5º, referente à suspensão da prescrição decorrente da sustação de processos criminais movidos em desfavor de parlamentares por deliberação da Casa respectiva.


4. Registre-se, por fim, que a "compatibilização" do CPM ao CP comum e à CF, embora tenha ficado aquém do esperado e, por isso, tenha produzido resultados inconstitucionais, ao menos na visão deste subscritor, está expressa justamente na ementa e no art. 1º da Lei 14.688/2023:


Altera o Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 (Código Penal Militar), a fim de compatibilizá-lo com o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e com a Constituição Federal, e a Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990 (Lei dos Crimes Hediondos), para classificar como hediondos os crimes que especifica.


(...)


Art. 1º Esta Lei altera o Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 (Código Penal Militar), a fim de compatibilizá-lo com o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e com a Constituição Federal, bem como altera a Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990 (Lei dos Crimes Hediondos), para classificar como hediondos os crimes que especifica.”



VI – À GUISA DE CONCLUSÃO


Não há de forma alguma intenção de se definir o entendimento sobre questão tão importante. São apenas apontamentos iniciais – passíveis de equívocos involuntários, feitos com a singela intenção de se demonstrar o alcance da Lei 14.688/2023, e seu impacto na Reforma do Código Penal Militar.


Houve alterações de há muito necessárias – outras nem tanto, como a busca pela similitude de tipos penais da legislação penal comum com o Código Penal Militar, providência que, convenhamos, tornou-se dispensável após o advento da Lei 13.491/2017 que trouxe à lume a categoria dos novos crimes militares por extensão (também chamados de crimes militares extravagantes).


Também houve omissões no processo de aprimoramento do Código, permitindo a manutenção de institutos indicadores da acolhida da concepção psicológica-normativa da culpabilidade, como o art. 69, que faz referência às circunstâncias judiciais da intensidade do dolo e grau de culpa, de impossível aferição.


Chama a atenção – e isso enseja acompanhamento, a iniciativa da Chefia do Ministério Público Militar em representar perante a Procuradoria-Geral da República, buscando a interposição de Ação Direta de Inconstitucionalidade, relacionada aos delitos de injúria racial e homofóbica e de estupro de vulnerável, em razão de possíveis retrocessos em conquistas de direitos fundamentais, especificamente quanto à tutela penal de vítimas de crimes sexuais e de crimes decorrentes de preconceito de raça ou de cor, que resultaram em déficit de proteção no direito penal militar, com a edição da nova lei.


Jorge Cesar de Assis é Advogado inscrito na OAB-PR. Membro aposentado do Ministério Público Militar da União. Integrou o Ministério Público paranaense. Oficial da Reserva Não Remunerada da Polícia Militar do Paraná. Sócio Fundador da Associação Internacional das Justiças Militares – AIJM. Membro correspondente da Academia Mineira de Direito Militar e da Academia de Letras dos Militares Estaduais do Paraná – ALMEPAR. Coordenador da Biblioteca de Estudos de Direito Militar da Editora Juruá. Administrador do site JUS MILITARIS - www.jusmilitaris.com.br.


NOTAS


[1] GALVÃO, Fernando. Intensidade do Dolo e Grau de Culpa, Revista Direito Militar nº 160, julho-agosto de 2023, pp. 07-12.

[3] STF, Plenário, ARE 1.320.744, relator Min. Alexandre de Moraes, unânime, julgado em sessão virtual de 16 a 23 de junho de 2023.

[4] Nos termos do art. 23 do CPM, equipara-se ao comandante, para aplicação da lei penal militar, toda autoridade com função de direção.

[5] Comentários ao Código Penal Militar, 11ª edição, Curitiba: Juruá, 2022.

[6] Ofício nº 1417/GAB-PGJM/MPM, de 06 de outubro de 2023, assinado pelo Procurador-Geral da Justiça Militar Antônio Pereira Duarte.

[7] Comunicação Interna nº 17/CH.GAB/GAB-PGJM/MPM, Brasília, 06 de outubro de 2023, assinada pelo Promotor da Justiça Militar Cícero Robson Coimbra Neves.

[8] Vide STF, Habeas Corpus n° 154.248.

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