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Jorge Cesar de Assis

A Lei 14.365/2022 e o exercício da advocacia pelos militares que se encontram na ativa



1 - Introdução ao tema


Em data de 02.06.2022, foi sancionada a Lei 14.365[1], alterando com mais intensidade a Lei 8.906, de 04.07.1994 - Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil, além de dispositivos do Código de Processo Penal e do Código de Processo Civil.


O artigo 28, do EAOAB, situado no capítulo VII, que trata das incompatibilidades e impedimentos para o exercício da Advocacia ganhou dois novos parágrafos, assim dispostos:


§ 3º As causas de incompatibilidade previstas nas hipóteses dos incisos V e VI do caput deste artigo não se aplicam ao exercício da advocacia em causa própria, estritamente para fins de defesa e tutela de direitos pessoais, desde que mediante inscrição especial na OAB, vedada a participação em sociedade de advogados.

§ 4º A inscrição especial a que se refere o § 3º deste artigo deverá constar do documento profissional de registro na OAB e não isenta o profissional do pagamento da contribuição anual, de multas e de preços de serviços devidos à OAB, na forma por ela estabelecida, vedada cobrança em valor superior ao exigido para os demais membros inscritos.


Um olhar atento para a redação do referido art. 28 se faz necessário:


Art. 28. A advocacia é incompatível, mesmo em causa própria, com as seguintes atividades:

I - chefe do Poder Executivo e membros da Mesa do Poder Legislativo e seus substitutos legais;

II - membros de órgãos do Poder Judiciário, do Ministério Público, dos tribunais e conselhos de contas, dos juizados especiais, da justiça de paz, juízes classistas, bem como de todos os que exerçam função de julgamento em órgãos de deliberação coletiva da administração pública direta e indireta; (Vide ADIN 1.127-8)

III - ocupantes de cargos ou funções de direção em Órgãos da Administração Pública direta ou indireta, em suas fundações e em suas empresas controladas ou concessionárias de serviço público;

IV - ocupantes de cargos ou funções vinculados direta ou indiretamente a qualquer órgão do Poder Judiciário e os que exercem serviços notariais e de registro;

V - ocupantes de cargos ou funções vinculados direta ou indiretamente a atividade policial de qualquer natureza;

VI - militares de qualquer natureza, na ativa;

VII - ocupantes de cargos ou funções que tenham competência de lançamento, arrecadação ou fiscalização de tributos e contribuições parafiscais;

VIII - ocupantes de funções de direção e gerência em instituições financeiras, inclusive privadas.

§ 1º A incompatibilidade permanece mesmo que o ocupante do cargo ou função deixe de exercê-lo temporariamente.

§ 2º Não se incluem nas hipóteses do inciso III os que não detenham poder de decisão relevante sobre interesses de terceiro, a juízo do conselho competente da OAB, bem como a administração acadêmica diretamente relacionada ao magistério jurídico.

§ 3º As causas de incompatibilidade previstas nas hipóteses dos incisos V e VI do caput deste artigo não se aplicam ao exercício da advocacia em causa própria, estritamente para fins de defesa e tutela de direitos pessoais, desde que mediante inscrição especial na OAB, vedada a participação em sociedade de advogados. (Incluído pela Lei nº 14.365, de 2022)

§ 4º A inscrição especial a que se refere o § 3º deste artigo deverá constar do documento profissional de registro na OAB e não isenta o profissional do pagamento da contribuição anual, de multas e de preços de serviços devidos à OAB, na forma por ela estabelecida, vedada cobrança em valor superior ao exigido para os demais membros inscritos. (Incluído pela Lei nº 14.365, de 2022)


Por aí se vê que a novel Lei 14.365/2022 excepcionou do rol de incompatibilidades, os ocupantes de cargos ou funções vinculados direta ou indiretamente a atividade policial de qualquer natureza e os militares de qualquer natureza na ativa, para o exercício da advocacia em causa própria, estritamente para fins de defesa e tutela de direitos pessoais, desde que mediante inscrição especial na OAB, vedada a participação em sociedade de advogados.


Nos termos do novel § 3º, do art. 28, do EAOAB, a incompatibilidade inerente aos ocupantes de cargo policial de qualquer natureza[2], assim como a dos militares que se encontram na ativa[3], ficará afastada desde que o exercício da advocacia seja em causa própria e estritamente para fins de defesa e tutela de direitos pessoais.


A expressão “em causa própria” dispensa comentários, ou seja, a advocacia só poderá ser exercida pelo próprio interessado em nome próprio. O termo “estritamente” atrela o exercício da Advocacia para fins de defesa (tanto penal como administrativa, a lei não distingue), bem como para buscar a tutela de direitos pessoais, anote-se, dos mais variados matizes.


Nos ocuparemos apenas dos militares da ativa. Assim, estando na condição de indiciado no inquérito policial comum ou militar – IP ou IPM, de preso no auto de prisão em flagrante – APF ou réu no processo penal comum ou militar, o advogado militar poderá exercer sua defesa. Da mesma forma, poderá buscar em causa própria, qualquer direito pessoal que entenda lhe tenha sido violado, por meio de habeas corpus, mandado de segurança ou mesmo ação ordinária, além da defesa em processo criminal, anote-se, em qualquer juízo ou tribunal!


Convém, ainda, distinguir a incompatibilidade do impedimento. Enquanto aquela é a proibição total do exercício paralelo da advocacia com as atividades que estão relacionadas no artigo 28 e incisos da Lei 8.906 de 04 de julho de 1994, o impedimento (previsto no art. 30) é a restrição parcial do exercício profissional do advogado em relação a determinadas pessoas jurídicas.


O objetivo deste ensaio é verificar, estreme de dúvida, se a nova lei será possível de ser aplicada aos militares da ativa, tanto das Forças Armadas como das Polícias e Corpos de Bombeiros Militares em face de sua destinação e estruturação constitucional.



2 - Da gênese da Lei 14.365/2022


A Lei 14.365/2022 é fruto da aprovação bicameral do Projeto de Lei – PL 5284/2020, de iniciativa do Deputado Paulo Abi-ackel (PSDB/MG), podendo-se afirmar que teve uma rápida tramitação nas duas casas até a sua transformação em lei.


O PL original, destinado a alterar a Lei n° 8.906, de 4 de julho de 1994, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, para incluir disposições sobre a atividade privativa de advogado, a fiscalização, a competência, as prerrogativas, as sociedades de advogados, o advogado associado, os honorários advocatícios e os limites de impedimentos ao exercício da advocacia, apresentando uma NOVA EMENTA, nos seguintes termos:


Altera as Leis nºs 8.906, de 4 de julho de 1994 (Estatuto da Advocacia), e 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), e o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), para incluir disposições sobre a atividade privativa de advogado, a fiscalização, a competência, as prerrogativas, as sociedades de advogados, o advogado associado, os honorários advocatícios, os limites de impedimentos ao exercício da advocacia e a suspensão de prazo no processo penal.


A redação original do projeto de lei não se referiu ao exercício da advocacia por policiais em geral e pelos militares brasileiros da ativa.


O projeto recebeu 18 emendas na Câmara, sendo que a de nº 14, de autoria do Deputado Capitão Wagner (PROS/SP), com a inserção dos §§ 3º e 4º ao art. 28 do EAOAB permitiu aos policiais em geral e aos militares na ativa em todo o País, que possuam a devida formação acadêmica em Direito e tenham obtido aprovação no Exame de Ordem da OAB, o exercício da advocacia em causa própria. Para o Deputado autor da Emenda, sua motivação foi a situação vivenciada, cotidianamente, pelos militares e profissionais de segurança pública, os quais, no exercício da atividade policial e militar, não poucas vezes, se deparam com situações que, por infortúnio, os impele a ter que responder administrativamente ou judicialmente por atos cometidos no exercício profissional ou em decorrência deles. Com efeito, embora seja assegurada a assistência jurídica a esses profissionais, nem sempre a defesa é feita por operadores do Direito que realmente conheçam as peculiaridades que envolvem o exercício de suas atribuições, as dificuldades que enfrentam e os desafios cotidianos das atividades da segurança pública. Da mesma forma, apesar de, hoje, existirem muitos policiais (civis, militares, rodoviários e federais) e militares das Forças Armadas com formação jurídica, esses profissionais são impedidos de exercer a advocacia em causa própria, por força da vedação inserta nos incisos V e VI do art. 28 da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da OAB). Assim, nos termos da Emenda, permitiu-se a defesa daqueles que possuem a devida formação acadêmica em Direito, desde que regularmente aprovados no Exame de Ordem e que voluntariamente optem por exercer sua defesa e tutelar seus direitos em juízo. E, para dar transparência à verificação de compatibilidade e impedimentos, sugere-se uma inscrição especial na OAB, em que se registre a limitação ao exercício da advocacia para que seja apenas em causa própria.


Aprovado na Câmara Federal, seguiu ao Senado, onde recebeu 19 emendas, tendo sido finalmente aprovado em Plenário da Casa em 11.05.2022, e remetida à sanção do Presidente da República que sancionou o projeto de lei com veto parcial.



3 - Dos primeiros reflexos acerca da Lei 14.365/2022


Ao fim da primeira fase da votação do projeto de lei, notícia da Câmara dos Deputados, em 17.02.2022, dava conta da aprovação exercício da advocacia em causa própria para policiais e militares, destacando que a medida vale para bacharéis em Direito com registro na Ordem, desde que para fins de defesa ou tutela de direitos pessoais, e que decorreu depois de extensa mobilização, que contou com os representantes da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef).


Após a sanção presidencial ao projeto aprovado e transformado em lei, a mídia brasileira tem dado amplo destaque à mudança em relação ao exercício da advocacia em causa própria. As redes sociais pululam festejando a inovação.


O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, principal destinatária da norma, imediatamente à promulgação da lei, e sob o título de Nova lei fortalece a advocacia e o cidadão, festejou afirmando que ela traz mudanças significativas em aspectos centrais para a advocacia brasileira. Resultado da articulação conjunta da diretoria nacional da OAB com presidentes de seccionais, a nova legislação reforça a importância e a própria figura dos honorários advocatícios e estabelece novos critérios de fiscalização do exercício profissional dos advogados[4].


Também enumerou as 10 conquistas da Advocacia com a nova lei: 1) É atividade de advogadas e advogados a atuação em processo administrativo e em processo legislativo e na produção de normas; 2) Consultoria e assessoria jurídicas podem ser exercidas de modo verbal ou por escrito, independente de outorga de mandato ou de formalização por contrato de honorários; 3) A nova lei veda a colaboração premiada de advogada e advogado contra seus clientes; 4) A nova lei assegura a competência exclusiva da OAB para fiscalizar o efetivo exercício profissional e o recebimento de honorários; 5) O texto amplia a pena do crime de violação das prerrogativas do advogado para de 2 a 4 anos de detenção; 6) Regulamenta a figura do advogado associado, assegurando a autonomia contratual interna dos escritórios de advocacia; 7) Assegura o pagamento de honorários de acordo com o previsto pelo Código de Processo Civil, nos termos da decisão recente da Corte Especial do STJ; 8) Amplia o direito à sustentação oral de advogadas e advogados; 9) Garantia de destaque de honorários dos advogados; 10) Prevê as férias dos advogados na área penal, suspendendo os prazos processuais penais entre 20 de dezembro e 20 de janeiro[5].


Por sua vez, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil endereçou o ofício circular 008/2022-GPR, datado de 06 de junho de 2022, e dirigido aos Presidentes de todas as Seccionais (reconhecendo a vigência da lei mas ponderando que a eficácia da norma condiciona-se à regulamentação pelo Conselho) informando que o Conselho Federal instaurou procedimento para regulamentação da norma legal e, determinando a suspensão de todos os pedidos de inscrição especial a que se refere o art. 28, § 3º, da Lei 8.906/1994, até a conclusão da análise da matéria pelo CFOAB, ocasião em que será editado provimento regulamentando a matéria.



4 - Da análise da constitucionalidade dos dispositivos permissivos do exercício da advocacia aos militares da ativa


Desde já respeitadas as opiniões em contrário – e de todo respeitadas, em relação aos novéis §§ 3º e 4º, do art. 28, do EAOAB, trazidos à lume pelo advento da Lei 14.365/2022, parece haver inconstitucionalidade tanto formal quanto material. Como se sabe, a inconstitucionalidade é formal quando fere regras ou procedimento previsto na Constituição para elaboração de uma norma. Será material quando fere o conteúdo, princípios, direitos e garantias assegurados pela Constituição. O vício de inconstitucionalidade formal refere-se ao procedimento ou forma de elaboração da norma.


Pois bem, os dois parágrafos acima referidos, inaugurando uma exceção à regra, dispuseram que a incompatibilidade inerente aos ocupantes de cargo policial de qualquer natureza[6], assim como a dos militares que se encontram na ativa[7], ficará afastada desde que o exercício da advocacia seja em causa própria e estritamente para fins de defesa e tutela de direitos pessoais, determinando, inclusive que a OAB providencie, inclusive, uma inscrição especial para tais categorias.


Tomando por base os dispositivos constitucionais, há que se verificar qual é a natureza jurídica dos militares, a fim de que, se possa confrontá-la com o exercício da atividade da Advocacia, concluindo se existe ou não compatibilidade entre ambos.


Anotamos, em outro espaço, que


(...) os militares são servidores públicos lato sensu. Por ocasião da edição da CF/88, o constituinte originário consignou em seu texto a clássica distinção, prevendo no art. 39 uma seção tratando dos servidores públicos civis e, no art. 42, a existência dos servidores públicos militares, distinguindo-os inclusive em duas espécies: servidores militares federais os integrantes das Forças Armadas e servidores militares dos Estados, Territórios e Distrito Federal, os integrantes de suas Polícias Militares e de seus Corpos de Bombeiros Militares.


Posteriormente, com a edição da EC 18/98, o constituinte derivado destinou o art. 42 para tratar dos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, ficando o art. 142 tratando das Forças Armadas e, de consequência, dos militares federais.


Entretanto, apesar de estarem tratados em artigos diversos, manteve-se a distinção operada em 1988: servidor militar é um gênero, com duas espécies: federais e estaduais e do DF.


Interessa-nos, no entanto, a natureza jurídica dos integrantes das instituições armadas, que é peculiar.


Nesse sentido o § 3º do art. 142 da CF/88 consignou que “os membros das Forças Armadas são denominados militares”, fixando-lhes garantias e deveres, proibindo-lhes a sindicalização e a greve, dispondo sobre a perda do posto e da patente de seus oficiais, estendendo-lhe alguns direitos sociais, e, acima de tudo, estabelecendo que Lei especial disporá sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares, considerando as peculiaridades de suas atividades.


A Lei referida no dispositivo Constitucional é a Lei 6.880, de 09.12.1980, que, denominando-os militares, refere que os membros das Forças Armadas, em razão de sua destinação constitucional[8], formam uma categoria especial de servidores da Pátria.


É a própria Carta Magna, em seu art. 42, § 1º, que remete para Lei Estadual a mesma competência da Lei Federal referida no inc. X do art. 142.


Portanto, a natureza jurídica dos membros das Instituições armadas brasileiras é a de categoria especial de servidores da Pátria, dos Estados e do Distrito Federal, com regime jurídico próprio, no qual se exige dedicação exclusiva, restrição a alguns direitos sociais, e sob permanente risco de vida”[9].


Por sua vez, tratando da Advocacia-Pública, dispôs a Constituição Federal, em seu art. 131, que a Advocacia-Geral da União-AGU é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo. A referência é feita para lembrar que, independentemente da importância e essencialidade das missões que cabem às Forças Armadas (CF, art. 142), serão elas, sempre, representadas pela AGU, por não estarem dotadas de capacidade postulatória.


E, nos termos do art. 133, da CF, o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.


Portanto, a inconstitucionalidade dos §§ 3º e 4º, do Estatuto da OAB, trazidos pela lei 14.365/2022, é formal, porque ela passou a garantir novos direitos aos militares da ativa, e, a garantia de direitos e prerrogativas somente pode ser feita pela Lei específica, que no caso dos militares federais é a Lei 6.880/1980 (artigos 50 e 73) – Estatuto dos Militares que é a lei específica, nos exatos termos do art. 142, § 3º, X, da Carta Magna. Da mesma forma, uma alteração no Estatuto da OAB, não poderia gerar direitos ou prerrogativas aos militares estaduais, competência dos Estados e do Distrito Federal conforme mandamento do art. 42, § 1º, da CF asseverando caber a lei estadual específica dispor sobre as matérias do art. 142, § 3º, inciso X, sob pena de caracterizar violação da autonomia do Ente Federativo.


Os parágrafos que ressalvam as incompatibilidades para o exercício da Advocacia assumem ares de inconstitucionalidade, pois criam, dentro da Ordem dos Advogados do Brasil - para usarmos a expressão do Juiz Federal Eduardo José da Fonseca Costa, “uma categoria anti-isonômica de privilegiados”, sem que os demais ocupantes dos cargos e funções tidas por incompatíveis possam igualmente ser beneficiados.


Mas não é só, a Lei 14.365/2002, parece padecer igualmente de inconstitucionalidade material, e isso é facilmente verificável no cotejo dos dispositivos que regulam tanto os militares da ativa quanto os advogados.


Com efeito, nos termos do art. 142, da Carta Magna, as Forças Armadas são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República. Por sua vez, os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios (CF, art. 42), e estão subordinados aos respectivos Governadores (CF, art. 144, § 6º).


Eis o trinômio constitucional caracterizador da atividade militar: hierarquia – disciplina – subordinação.


Em contrapartida, conforme mandamento constitucional do art. 133, o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.


Caracteriza o exercício da advocacia sob o aspecto constitucional: indispensabilidade à administração da justiça – inviolabilidade por seus atos e manifestações.


Não é difícil perceber que, ao menos em um primeiro momento, parece ser inconciliável a simultaneidade das duas atividades, de militar da ativa e de advogado, ainda que em causa própria, senão vejamos:


Os princípios constitucionais da hierarquia e disciplina estão conceituados no art. 14, do Estatuto dos Militares:


Art. 14. A hierarquia e a disciplina são a base institucional das Forças Armadas. A autoridade e a responsabilidade crescem com o grau hierárquico.

§ 1º A hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da estrutura das Forças Armadas. A ordenação se faz por postos ou graduações; dentro de um mesmo posto ou graduação se faz pela antiguidade no posto ou na graduação. O respeito à hierarquia é consubstanciado no espírito de acatamento à sequência de autoridade.

§ 2º Disciplina é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar e coordenam seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes desse organismo.

§ 3º A disciplina e o respeito à hierarquia devem ser mantidos em todas as circunstâncias da vida entre militares da ativa, da reserva remunerada e reformados.


A seu turno, os princípios constitucionais da indispensabilidade à administração da justiça e da inviolabilidade por seus atos e manifestações, próprios do advogado, estão esmiuçados pelo seu Estatuto, dos quais, salvo omissão indesejada, apresentamos apenas aqueles direitos capazes de ocorrer em organizações militares e nelas gerar algum conflito com o encarregado do processo/procedimento, seja na investigação e processo administrativo, seja na investigação de crime militar e no auto de sua prisão em flagrante, quando o militar advogado for o acusado:

Lei 8.906/1994:


(...) Art. 6º Não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, devendo todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos;


(...) Art. 7º São direitos do advogado:


I - Exercer, com liberdade, a profissão em todo o território nacional;


(...) V - não ser recolhido preso, antes de sentença transitada em julgado, senão em sala de Estado Maior, com instalações e comodidades condignas, e, na sua falta, em prisão domiciliar; (Vide ADIN 1.127-8)

VI - Ingressar livremente:


(...) b) nas salas e dependências de audiências, secretarias, cartórios, ofícios de justiça, serviços notariais e de registro, e, no caso de delegacias e prisões, mesmo fora da hora de expediente e independentemente da presença de seus titulares;

c) em qualquer edifício ou recinto em que funcione repartição judicial ou outro serviço público onde o advogado deva praticar ato ou colher prova ou informação útil ao exercício da atividade profissional, dentro do expediente ou fora dele, e ser atendido, desde que se ache presente qualquer servidor ou empregado;


(...) VII - permanecer sentado ou em pé e retirar-se de quaisquer locais indicados no inciso anterior, independentemente de licença;


(...) XI - reclamar, verbalmente ou por escrito, perante qualquer juízo, tribunal ou autoridade, contra a inobservância de preceito de lei, regulamento ou regimento;


(...) XIV - examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital;(Redação dada pela Lei nº 13.245, de 2016)

XV - ter vista dos processos judiciais ou administrativos de qualquer natureza, em cartório ou na repartição competente, ou retirá-los pelos prazos legais;

XVI - retirar autos de processos findos, mesmo sem procuração, pelo prazo de dez dias;

XVII - ser publicamente desagravado, quando ofendido no exercício da profissão ou em razão dela;

XVIII - usar os símbolos privativos da profissão de advogado;


(...) XXI, a: apresentar razões e quesitos;


(...) § 3º O advogado somente poderá ser preso em flagrante, por motivo de exercício da profissão, em caso de crime inafiançável, observado o disposto no inciso IV deste artigo.


(...) § 5º No caso de ofensa a inscrito na OAB, no exercício da profissão ou de cargo ou função de órgão da OAB, o conselho competente deve promover o desagravo público do ofendido, sem prejuízo da responsabilidade criminal em que incorrer o infrator.


(...) § 12. A inobservância aos direitos estabelecidos no inciso XIV, o fornecimento incompleto de autos ou o fornecimento de autos em que houve a retirada de peças já incluídas no caderno investigativo implicará responsabilização criminal e funcional por abuso de autoridade do responsável que impedir o acesso do advogado com o intuito de prejudicar o exercício da defesa, sem prejuízo do direito subjetivo do advogado de requerer acesso aos autos ao juiz competente. (Incluído pela Lei nº 13.245, de 2016)


(...) Art. 7º-B Constitui crime violar direito ou prerrogativa de advogado previstos nos incisos II, III, IV e V do caput do art. 7º desta Lei: (Incluído pela Lei nº 13.869. de 2019)

Pena - detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 14.365, de 2022).


Eis aqui – nos parece, a dificuldade de conciliação do exercício da advocacia com o exercício da atividade militar da ativa.

Fica difícil para a Ordem dos Advogados do Brasil aceitar que um Advogado, no exercício da advocacia, seja submetido ao regime de disciplina e hierarquia – que implica em subordinação. O fato de estar atuando em causa própria e estar inscrito sob regime especial na OAB não lhe retiraria nenhum direito, ou prerrogativa, ou garantia (constitui crime violar prerrogativa do advogado) dentre aqueles previstos no Estatuto. Seriam situações inusitadas em que um advogado tenha de se apresentar fardado (obrigação imposta ao militar da ativa de usar uniforme), pedindo licença para adentrar ou se retirar do recinto (procedimentos normais entre os militares em relação a seus superiores), tendo de prestar continência (que é a saudação do militar) e assim por diante.


Da mesma forma, mais difícil ainda para as Forças Armadas e para as Polícias e Corpos de Bombeiros Militares, seria aceitar a situação em que um militar (bacharel em Direito, de qualquer posto ou graduação), aprovado no Exame de Ordem e inscrito na OAB (portanto na condição de Advogado), ao ser indiciado em inquérito policial militar, ou apresentado preso em flagrante, ou acusado em qualquer processo administrativo, possa se sobrepor à natural Cadeia de Comando, deixando de observá-la por estar na condição de advogado. “A cadeia de comando define a linha de autoridade ao longo da qual as ordens e tarefas são passadas, tanto dentro de uma unidade militar quanto de uma unidade para outra, em que cada indivíduo sabe exatamente para quem deve se reportar (wikipédia)”. A disciplina e a hierarquia militares definem bem essa cadeia que não admite rompimento.


O aproveitamento de profissionais da área do Direito já existe nas Forças Armadas, com a seleção em concurso público de bacharéis para os Quadros Complementares das três Forças. São civis, bacharéis em Direito, que se habilitam às vagas oferecidas para preenchimento de seus Quadros, destinando-se, precipuamente, à Assessoria Jurídica na qualidade de oficiais da Marinha, Exército e Aeronáutica. Mas mesmo esses oficiais especializados assessoram os Comandos aos quais estão subordinados, mas não representam a Força, por não possuírem capacidade postulatória, missão deferida constitucionalmente para a Advocacia-Geral da União.



5 - Da falta de requisito do militar da ativa para a inscrição na OAB


Por fim, não há como deixar de evidenciar que, apesar da Lei n° 14.365/2022, faltaria um requisito essencial para a inscrição do militar da ativa nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil.

Nos termos do art. 8º, do EAOAB, para inscrição como advogado é necessário o atendimento aos seguintes requisitos:

I - capacidade civil;

II - diploma ou certidão de graduação em direito, obtido em instituição de ensino oficialmente autorizada e credenciada;

III - título de eleitor e quitação do serviço militar, se brasileiro;

IV - aprovação em Exame de Ordem;

V - não exercer atividade incompatível com a advocacia;

VI - idoneidade moral;

VII - prestar compromisso perante o conselho.


A alteração trazida à lume pela lei que alterou o Estatuto, excepcionou os militares da ativa das incompatibilidades para o exercício da advocacia, previstas no art. 28, mas não alterou a necessidade do preenchimento dos requisitos estabelecidos no art. 8°, e nesse ponto, a quitação do serviço militar permanece como incontornável.


Nos termos do art. 75, da Lei 4375, de 17.08.1964 – Lei do Serviço Militar, constituem prova de estar o brasileiro em dia com as suas obrigações militares:

a) o Certificado de Alistamento, nos limites da sua validade;

b) o Certificado de Reservista;

c) o Certificado de Isenção;

d) o Certificado de Dispensa de Incorporação.

Já o seu § 1º assevera que outros documentos comprobatórios da situação militar do brasileiro, poderão ser estabelecidos na regulamentação desta lei.

O parágrafo único, do art. 4º, da Lei do Serviço Militar assevera que o Serviço prestado nas Polícias Militares, Corpos de Bombeiros e outras corporações encarregadas da segurança pública será considerado de interesse militar. O ingresso nessas corporações dependerá de autorização de autoridade militar competente e será fixado na regulamentação desta Lei.


A noção exata de quitação do serviço militar é dada pelo Regulamento da Lei do Serviço Militar, Decreto nº 57.654, de 20 de janeiro de 1966, valendo a pena conferir os seguintes dispositivos:


Art. 3° Para os efeitos deste Regulamento são estabelecidos os seguintes conceitos e definições:

(...)

17) estar em dia com as obrigações militares - É estar o brasileiro com sua situação militar regularizada, com relação às sucessivas exigências do Serviço Militar. Para isto, necessita possuir documento comprobatório de situação militar, com as anotações fixadas neste Regulamento, referentes ao cumprimento das obrigações posteriores ao recebimento daquele documento. Esta expressão tem a mesma acepção de "estar quite com o Serviço Militar", constante de legislação comum, anterior.


Quanto ao conceito do que seja o militar da ativa (o permissivo legal para o exercício da advocacia em causa própria é dirigido aos militares de qualquer natureza da ativa), nos termos do art. 3º, da Lei 6880/1980 – Estatuto dos Militares, os membros das Forças Armadas, em razão de sua destinação constitucional, formam uma categoria especial de servidores da Pátria e são denominados militares.


Seu § 1° assevera que os militares se encontram em uma das seguintes situações:


a) na ativa:

I - os de carreira;

II - os temporários, incorporados às Forças Armadas para prestação de serviço militar, obrigatório ou voluntário, durante os prazos previstos na legislação que trata do serviço militar ou durante as prorrogações desses prazos; (Redação dada pela Lei nº 13.954, de 2019)

III - os componentes da reserva das Forças Armadas quando convocados, reincluídos, designados ou mobilizados;

IV - os alunos de órgão de formação de militares da ativa e da reserva; e

V - em tempo de guerra, todo cidadão brasileiro mobilizado para o serviço ativo nas Forças Armadas.


Os dispositivos da legislação militar federal encontram correspondência nos diplomas análogos dos Estados e Distrito Federal.


Não parece ser difícil de compreender que os militares da ativa não estão em dia com suas obrigações militares (não estão quites com o serviço militar) pelo simples fato de se encontrarem em atividade, ou, na ativa, e desta forma não preenchem o requisito obrigatório previsto no inciso III, do art. 8º, do Estatuto da OAB, dispositivo que impede sua inscrição e está em rota de colisão com os novéis 2§§ 3º e 4º, do artigo 28 da Lei n° 8.906/1994.


Estão em dia com as obrigações militares (quites com o serviço militar), os civis, nos termos da Lei do Serviço Militar e seu Regulamento, e os militares da reserva remunerada ou reformados, e todos eles podem ser advogados, mas não os militares da ativa.



6 – Conclusão


A conclusão a que se chega – independentemente de entendimentos opostos e de todo respeitados, é a de que os militares de qualquer natureza que se encontrarem na ativa, não podem exercer a advocacia, ainda que em causa própria.


Seja porque existe uma inconstitucionalidade formal dos novos §§ 3º e 4º, do Estatuto da Advocacia, pelo fato de que somente a lei específica federal ou estadual é que pode estabelecer direitos e prerrogativas aos militares; seja porque existiria igualmente uma inconstitucionalidade material, calcada na impossibilidade de se conciliação do trinômio constitucional caracterizador da atividade militar: hierarquia – disciplina – subordinação, com o binômio constitucional caracterizador do exercício da advocacia: indispensabilidade à administração da justiça – inviolabilidade por seus atos e manifestações.


Por fim, os militares da ativa não estão em dia com suas obrigações militares (não estão quites com o serviço militar) pelo simples fato de se encontrarem em atividade, ou, na ativa, e desta forma não preenchem o requisito obrigatório previsto no inciso III, do art. 8º, do Estatuto da OAB, dispositivo que impede sua inscrição e está em rota de colisão com os novéis 2§§ 3º e 4º, do artigo 28 da Lei n° 8.906/1994.




Jorge Cesar de Assis é advogado inscrito na OAB-PR. Membro aposentado do Ministério Público Militar da União. Integrou o Ministério Público paranaense. Oficial da reserva não remunerada da Polícia Militar do Paraná. Sócio -Fundador da Associação Internacional de Justiças Militares. Membro correspondente da Academia Mineira de Direito Militar e da Academia de Letras dos Militares Estaduais do Paraná - ALMEPAR. Coordenador da Biblioteca de Estudos de Direito Militar da Editora Juruá. Administrador do site www.jusmilitaris.com.br .



NOTAS


[1] Altera as Leis nºs 8.906, de 4 de julho de 1994 (Estatuto da Advocacia), e 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), e o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), para incluir disposições sobre a atividade privativa de advogado, a fiscalização, a competência, as prerrogativas, as sociedades de advogados, o advogado associado, os honorários advocatícios, os limites de impedimentos ao exercício da advocacia e a suspensão de prazo no processo penal.

[2] Os integrantes da Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Civil, Polícia Militar e Corpo de Bombeiros Militar, Sistema Prisional e Força Nacional de Segurança Pública.

[3] Lei 6.880/1980, art. 3º, § 1°: Os militares encontram-se em uma das seguintes situações: a) na ativa: I - os de carreira; II - os temporários, incorporados às Forças Armadas para prestação de serviço militar, obrigatório ou voluntário, durante os prazos previstos na legislação que trata do serviço militar ou durante as prorrogações desses prazos (Redação dada pela Lei nº 13.954, de 2019); III - os componentes da reserva das Forças Armadas quando convocados, reincluídos, designados ou mobilizados; IV - os alunos de órgão de formação de militares da ativa e da reserva; e; V - em tempo de guerra, todo cidadão brasileiro mobilizado para o serviço ativo nas Forças Armadas.

[4] Nova Lei fortalece a Advocacia e o Cidadão. Disponível em https://www.oab.org.br/util/print/59781?print=Noticia acesso em 05.06.2022.

[5] Conheça 10 conquistas da advocacia com a nova lei. Disponível em https://www.oab.org.br/util/print/59776?print=Noticia acesso em 05.06.2022.

[6] Os integrantes da Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Civil, Polícia Militar e Corpo de Bombeiros Militar, Sistema Prisional e Força Nacional de Segurança Pública.

[7] Lei 6.880/1980, art. 3º, § 1°: Os militares encontram-se em uma das seguintes situações: a) na ativa: I - os de carreira; II - os temporários, incorporados às Forças Armadas para prestação de serviço militar, obrigatório ou voluntário, durante os prazos previstos na legislação que trata do serviço militar ou durante as prorrogações desses prazos (Redação dada pela Lei nº 13.954, de 2019); III - os componentes da reserva das Forças Armadas quando convocados, reincluídos, designados ou mobilizados; IV - os alunos de órgão de formação de militares da ativa e da reserva; e; V - em tempo de guerra, todo cidadão brasileiro mobilizado para o serviço ativo nas Forças Armadas.

[8]CF, art. 142.

[9] Curso de Direito Disciplinar – da simples transgressão ao processo administrativo, 5ª edição, Curitiba: Juruá, 2018, 53.

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