Com o objetivo de ampliar o acesso da mulher às Forças Armadas, observar a igualdade/equidade de gênero e aproveitar o potencial das mulheres, o Presidente da República editou o Decreto n. 12.154/2024 que prevê a possibilidade de a jovem ingressar nas Forças Armadas pelo Serviço Militar Inicial (SMI) na forma da Lei do Serviço Militar (Lei n. 4.375/1964) e Regulamento a Lei do Serviço Militar (Lei n. 4.375/1964).
Apesar de louvável o mérito e objetivo do Decreto n. 12.154/2024 entendemos que o art. 10 é inconstitucional ou ilegal.
O Decreto n. 12.154/2024 em seu art. 10 prevê que a partir do ato oficial de incorporação da jovem, o SMIF se tornará de cumprimento obrigatório.
Art. 10. A partir do ato oficial de incorporação, o serviço militar inicial feminino se tornará de cumprimento obrigatório, e a militar ficará sujeita aos direitos, aos deveres e às penalidades, nos termos do disposto na Lei nº 4.375, de 17 de agosto de 1964, e no Decreto nº 57.654, de 20 de janeiro de 1966.
Pela literalidade do art. 10 do Decreto n. 12.154/2024 a mulher não poderá pedir “baixa” do serviço militar pelo período de cumprimento obrigatório, nos termos da Lei do Serviço Militar – Lei n. 4.375/1964 -, cujo prazo é de 12 meses (art. 6º). O Ministério da Defesa pode reduzir o prazo até 2 (dois) meses ou dilatar até 6 (seis) meses a duração do tempo do Serviço Militar inicial (art. 6º, § 1º).
Ocorre que essa previsão, a nosso ver, é inconstitucional ou até mesmo ilegal, pois a Constituição Federal (§ 2º do art. 143 da CF), a Lei do Serviço Militar (Lei n. 4.375/1964) e a Lei da Regulamentação do serviço militar obrigatório (Lei n. 8.239/1991) dizem que as mulheres são isentas do serviço militar obrigatório.
Constituição Federal[1]
Art. 143. O serviço militar é obrigatório nos termos da lei. (...)
§ 2º As mulheres e os eclesiásticos ficam isentos do serviço militar obrigatório em tempo de paz, sujeitos, porém, a outros encargos que a lei lhes atribuir.
Lei do Serviço Militar (Lei n. 4.375/1964)
Art 2º Todos os brasileiros são obrigados ao Serviço Militar, na forma da presente Lei e sua regulamentação. (...)
§ 2º As mulheres ficam isentas do Serviço Militar em tempo de paz e, de acôrdo com suas aptidões, sujeitas aos encargos do interêsse da mobilização.
Lei da Regulamentação dos §§1º e 2º do art. 143 da CF/88 (Lei n. 8.239/1991)
Art. 5º As mulheres e os eclesiásticos ficam isentos do Serviço Militar Obrigatório em tempo de paz, sujeitos, porém, de acordo com suas aptidões, a encargos do interesse da mobilização.
A voluntariedade no alistamento e ingresso não pode se transformar em permanência compulsória, pois não deixa de ser uma forma de forçar a prestação de serviço militar, ou seja, serviço militar feminino obrigatório de forma indireta.
Logo, qualquer serviço militar obrigatório para mulheres, em tempo de paz, deve ser facultativo, seja para ingressar ou para continuar, no caso das mulheres que optaram por ingressar.
Na linha do constitucionalista Pedro Lenza[2] as mulheres e os eclesiásticos não podem em tempos de paz estarem sujeitos à compulsoriedade da prestação do serviço militar. E na mesma posição a doutrina administrativista militar de Antônio Pereira Duarte[3] em que a mulher, diante da previsão constitucional, não está obrigada à prestação de serviço de natureza essencialmente militar.
Conforme bem observa Felipe Duque[4] sobre a voluntariedade no ingresso e obrigatoriedade do serviço militar feminino após a incorporação:
A natureza mista do serviço militar feminino – voluntário no início e obrigatório após a incorporação – representa uma abordagem inovadora que busca equilibrar a liberdade de escolha com as necessidades disciplinares das Forças Armadas. No entanto, esta diferença em relação ao serviço militar masculino pode ser fonte de debates futuros sobre igualdade de tratamento (destaque nosso).
As mulheres devem ser livres, voluntárias, para ingressarem, conforme o Decreto n. 12.154/2024 e § 2º do art. 5º do Regulamento a Lei do Serviço Militar (Lei n. 4.375/1964), e para continuarem, conforme o art. 143, § 2º, da Constituição Federal; art. 2º, § 2º, da Lei do Serviço Militar, e art. 5º Lei da Regulamentação dos §§ 1º e 2º do art. 143 da CF/88.
Certamente, essa previsão do art. 10 do Decreto n. 12.154/2024 visa resguardar a continuidade da formação das mulheres que ingressaram voluntariamente, em razão de todo gasto, planejamento, logística, gestão que as Forças Armadas vão mobilizar para, após algumas semanas ou meses haver grande evasão e prejuízos para a União, colocando tudo a perder e até inviabilizando o serviço militar inicial feminino.
Diante da previsão do art. 10 do Decreto n. 12.154/2024 pode-se sustentar sua inconstitucionalidade sujeita a Ação Direita de Inconstitucional porque adveio de decreto autônomo do Chefe do Executivo Federal que inova na ordem jurídica e é contrária ao Texto Constitucional (violou o art. 143, § 2º, da Constituição Federal)[5]. Ou até mesmo apenas juízo de legalidade em sede de controle difuso porque a previsão do art. 10 do Decreto n. 12.154/2024 violou primeiramente texto legal infraconstitucional (quais sejam: art. 2º, §2º, da Lei do Serviço Militar, e art. 5º Lei da Regulamentação dos §§1º e 2º do art. 143 da CF/88)[6].
Não concordamos, respeitosamente, que a previsão do art. 10 do Decreto n. 12.154/2024 seja uma forma de “encargo” atribuída as mulheres porque se trata do próprio serviço militar obrigatório. E a obrigatoriedade do serviço militar previsto na Constituição e nas mencionadas leis não se referem apenas ao alistamento, mas também à própria prestação do serviço militar inicial.
Em razão do disposto na Constituição Federal, a única forma do alistamento voluntário feminino no serviço militar inicial tornar-se obrigatório após o ato incorporação decorre de alteração, via emenda constitucional, do §2º do art. 143 ou até mesmo a inclusão de um §3º com o mesmo sentido redacional do art. 10 do Decreto n. 12.154/2024.
Tal discussão, inevitavelmente, chegará à Justiça Comum Federal ou Militar, seja em razão da mulher que quer sair e não foi autorizada e vai buscar uma liminar para conseguir seu desligamento, seja em razão da mulher que quis sair e não foi autorizada, mas optou por simplesmente não comparecer mais ao quartel e será indiciada por deserção (ausentar-se do quartel por mais de oito dias), ocasião em que o Ministério Público e Judiciário vão analisar se a permanência dela era obrigatória.
Rodrigo Foureaux é Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. Oficial da Reserva Não Remunerada da PMMG. Membro da Academia de Letras João Guimarães Rosa. Bacharel em Ciências Militares com Ênfase em Defesa Social pela Academia de Polícia Militar de Minas Gerais. Mestre em Direito, Justiça e Desenvolvimento pelo Instituto de Direito Público. Especialista em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes. Autor de livros jurídicos. Foi Professor na Academia de Polícia Militar de Minas Gerais. Palestrante. Fundador do site “Atividade Policial”.
Luiz Paulo Spinola é advogado. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Antônio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente/SP. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pelo Centro Universitário Antônio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente/SP.
NOTAS
[1] A previsão expressa da isenção do serviço militar obrigatório feminino vem desde a Constituição Federal de 1946.
CF/1946: Art. 181 - Todos os brasileiros são obrigados ao serviço militar ou a outros encargos necessários à defesa da Pátria, nos termos e sob as penas da lei.
§ 1º - As mulheres ficam isentadas do serviço militar, mas sujeitas aos encargos que a lei estabelecer.
CF/1967: Art. 93 - Todos os brasileiros são obrigados ao serviço militar ou a outros encargos necessários à segurança nacional, nos termos e sob as penas da lei.
Parágrafo único - As mulheres e os eclesiásticos, bem como aqueles que forem dispensados, ficam isentos da serviço militar, mas a lei poderá atribuir-lhes outros encargos.
CF/1969: Art. 92. Todos os brasileiros são obrigados ao serviço militar ou a outros encargos necessários à segurança nacional, nos têrmos e sob as penas da lei.
Parágrafo único. As mulheres e os eclesiásticos ficam isentos do serviço militar em tempo de paz, sujeitos, porém, a outros encargos que a lei lhes atribuir.
[2] LENZA, Pedro. Direito. Constitucional – Esquematizado. 25. ed. São Paulo: Saraiva Educação. 2021. p. 1116.
[3] DUARTE. Antônio Pereira. Direito Administrativo Militar - Doutrina, Legislação e Jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense. 1995. p. 33/31.
[4] DUQUE, Felipe. Decreto nº 12.154/2024 – Alistamento Militar Feminino Voluntário no Brasil – Análise Jurídica. Estratégia Carreira Jurídica. 29. ago. 2024. 21h06. Disponível em: < https://cj.estrategia.com/portal/alistamento-militar-feminino-voluntario-brasil/>. Acesso em 03. set. 2024.
[5] STF - ADI: 5609 DF, Relator: ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 07/12/2020, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 04/02/2021.
STF - ADI: 1306 BA, Relator: CÁRMEN LÚCIA, Data de Julgamento: 13/06/2018, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 18/10/2019.
[6] STF. ADI 1866, Relator(a): MOREIRA ALVES, Tribunal Pleno, julgado em 29-10-1998, DJ 12-02-1999 PP-00001 EMENT VOL-01938-01 PP-00027.
STF - ADI: 4409 SP, Relator: ALEXANDRE DE MORAES, Data de Julgamento: 06/06/2018, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 23/10/2018.
Nessa linha: LENZA, Pedro. Direito. Constitucional – Esquematizado. 25. ed. São Paulo: Saraiva Educação. 2021. p. 748; SANTOS, Eduardo Rodrigues dos. Manual de Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Juspodivm. 2023. p. 1201.
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