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  • Flávio Milhomem

O acordo de não persecução penal na Justiça Militar do Distrito Federal

A experiência do ministério público na Justiça Militar do Distrito Federal


A reforma produzida pela Lei nº 13.491/17 promoveu uma maior valorização da Justiça Militar brasileira; e, com ela, o alargamento de sua competência para alcançar os crimes militares extravagantes por equiparação. É inegável que a realidade dos fatos leva à necessidade de adoção de medidas consentâneas com seu tempo para a prestação do serviço público e a entrega da prestação jurisdicional. Apesar do apego à tradição, a solução negociada dos conflitos penais militares se apresenta como alternativa eficiente à tradicional litigiosidade do sistema de justiça castrense.


A associação dos termos “processo” e “negociação” ilustra a ideia segundo a qual a negociação não é um dado estático. Se trata de um conjunto de discussões que se encadeiam entre indivíduos; e se organiza segundo um esquema com vistas a alcançar um resultado determinado, um acordo. Em matéria penal, a negociação se singulariza por uma sequência de operações realizadas entre o acusador e o suspeito de uma infração, caracterizando o que é comumente denominado de justiça negociada. Trata-se assim de uma noção evolutiva, dinâmica, para não dizer, viva.


A justiça negociada visa a um processo de simplificação de regras do processo penal que repousa sobre uma troca entre o acusador e o suspeito sobre o quantum da pena, a prova dos fatos e o ajuizamento da ação penal. A admissão de soluções negociadas, fundadas em um diálogo entre a parte suspeita e o acusador, constitui uma tendência marcante do direito penal contemporâneo.


Pela negociação, trata-se menos de desviar o procedimento que de melhorá-lo; trata-se menos de acelerar a justiça que de a entregar. Processo de interação, de troca e de discussão entre atores autônomos, mas interdependentes, a negociação não parece, à primeira vista, ter lugar nos domínios da repressão. Em razão de seu objeto específico, a justiça penal encarna, da maneira mais radical, a imagem perfeitamente hierárquica de uma justiça imposta; quer dizer, fonte de decisões adotadas unilateralmente e que se impõe de maneira autoritária a seus destinatários. Ademais, o constrangimento que o processo penal implica é pouco propício à negociação e faz da repressão um domínio relativamente hostil à promoção do reino da troca. Aos olhos da sacralidade do rito judiciário, da sujeição particular do jurisdicionado e da ideia de ordem a que se refere a justiça repressiva, falar de negociação em matéria penal aparenta ser quase uma ofensa. Ademais, a obrigação que o processo penal implica é pouco propícia à negociação e faz da repressão um domínio. (CABON, 2014)


Diversas são as causas apontadas para o aparecimento da negociação no cenário jurídico mundial: a) a crescente dificuldade probatória, b) um cenário de expansão do direito penal por meio da antecipação da tutela e abstração dos tipos, c) a identificação dos fins da pena para a prevenção geral.


O motivo principal, porém, é visto na economia processual, ou seja, a negociação advém da sobrecarga do sistema jurídico. Além dos acordos informais, esse panorama fomentou a introdução de hipóteses determinadas legalmente de não persecução penal, ainda que presente justa causa para o ajuizamento da ação penal.


O acolhimento da justiça penal negociada é apontada como um fenômeno internacional. Diferentes legislações penais mundiais, que integram sistemas romano-germânicos, ao se verem afetadas por problemas semelhantes àqueles conhecidos nos Estados Unidos, promoveram a adoção de soluções idênticas àquelas dos sistemas da Common Law.


Em janeiro de 2020, entrou em vigor o Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/19); um conjunto de alterações promovidas no ordenamento jurídico, em matéria penal e processual sem que, no entanto, se possa dizer sistematizadas.


Dentre as alterações legais, destaca-se a inclusão do art. 28-A do Código de Processo Penal, que trata do acordo de não persecução penal; instituto cujo berço e inspiração se encontram nos países de tradição jurídica consuetudinária – Inglaterra e suas ex-colônias.


O acordo de não persecução penal, modalidade de negócio jurídico processual, no entanto, não surgiu no ordenamento jurídico brasileiro a partir da edição do Pacote Anticrime. Cuida-se, na realidade, de inovação normativa cujo fundamento se encontrava em resolução administrativa, a Resolução nº 181/17 do Conselho Nacional do Ministério Público.[1]


Especificamente no que toca às infrações militares, a Resolução 181/17, trazia restrição expressa à sua aplicação aos crimes militares que afetassem a hierarquia e a disciplina. Em outras palavras, o acordo de não persecução penal caberia para as infrações penais militares, à exceção daquelas que afetassem a hierarquia e a disciplina, nos termos do art. 18, §12, do referido ato normativo.


Art. 18.

(...)

§ 12 As disposições deste Capítulo não se aplicam aos delitos cometidos por militares que afetem a hierarquia e a disciplina. (Incluído pela Resolução n° 183, de 24 de janeiro de 2018).


Com a entrada em vigor da Lei nº 13.964/19 (Pacote anticrime), em janeiro de 2020, o acordo de não persecução penal passou a ter previsão legal. Contudo, ao contrário da resolução administrativa, a nova lei não traz regramento explícito acerca de sua aplicabilidade no processo penal militar.


Tal omissão legal levou parte da doutrina a interpretar o não cabimento do acordo de não persecução penal na Justiça Militar, sob a alegação de que, em se tratando o Código de Processo Penal Militar de norma especial, não haveria a possibilidade de aplicação subsidiária do Código de Processo Penal comum.


Este entendimento, inclusive, foi adotado pelo Superior Tribunal Militar para firmar o não cabimento do acordo de não persecução penal no âmbito da Justiça Militar (Apelação 7001106-21.2019.7.00.0000).


Ocorre, todavia, que, antes da entrada em vigor da Lei nº 13.964/19, a norma de regência do acordo de não persecução penal era a Resolução nº 181/17, tanto para os crimes comuns quanto para os crimes militares.


O Código de Processo Penal passou a ser a norma de regência do referido negócio jurídico pré-processual para os crimes de competência da justiça comum; porém, no silêncio da lei quanto ao regramento aplicável aos crimes militares, conclui-se que continua sendo a Resolução 181/17 do CNMP a norma que regulamenta o acordo de não persecução penal no âmbito da justiça castrense, já que esta não fora revogada explícita ou tacitamente pelo novo regramento legal. Ressalte-se, não se trata da sustentação de que se operou o fenômeno da repristinação legislativa, simplesmente pelo fato de que a norma não fora revogada, implícita ou explicitamente.


Com base na fundamentação acima exposta, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, em especial a 3ª Promotoria de Justiça Militar, passou a oferecer a proposta de acordo de não persecução penal, cumulada com a do acordo de não persecução cível, àqueles suspeitos da prática de crimes militares que atendem aos requisitos constantes da lei, Código de Processo Penal comum (aplicado subsidiariamente na Justiça Militar) e Resolução nº 181/17.


O oferecimento da proposta conjunta (ANPP/ANPC) se dá em face da atribuição comum das promotorias militares do DF para o ajuizamento das ações penais e ações civis públicas por improbidade administrativa.


Desta maneira, não sendo o caso de arquivamento do inquérito policial militar (IPM), e tendo o suspeito confessado formalmente o delito, praticado sem violência ou grave ameaça, e que não afete diretamente a hierarquia e a disciplina militar, cuja pena mínima é inferior a 4 anos, o ajuizamento da ação penal militar dá lugar à negociação penal.


O procedimento para a adoção da justiça penal negociada tem início com a notificação do suspeito/indiciado da intenção da Promotoria de Justiça Militar de oferecer o acordo de não persecução penal, sugerindo o agendamento de audiência por meio virtual, após o envio da proposta inaugural de negociação.


É importante frisar que a proposta encaminhada não caracteriza o que tradicionalmente se chama de contrato de adesão, cujas cláusulas devam ser aceitas sem negociação; trata-se verdadeiramente do pontapé inicial para a discussão acerca da melhor solução para o problema originado com a prática da conduta ilícita; levando-se em consideração a justiça, o equilíbrio e a coerência com a conduta praticada e seu resultado.


Acreditamos que o desenvolvimento da negociação deve se inscrever sobre a busca de um equilíbrio entre os imperativos de eficácia e de respeito dos princípios que conferem à justiça penal sua identidade constitucional.


Na audiência, de posse da contraproposta da defesa, passa-se então à negociação propriamente dita, visando à obtenção de um denominador comum que possa se traduzir em sentimento de Justiça. E, uma vez lavrado o acordo, busca-se então a homologação judicial.


Note-se que, até o presente momento, toda a negociação envolveu, exclusivamente, aqueles que seriam partes adversas no processo penal militar, o Promotor de Justiça, o acusado e seu defensor; isto porque, ao Poder Judiciário, é reservado tão somente o controle da legalidade do acordo firmado.


Importante obstáculo para a adoção do acordo de não persecução penal, na Justiça Militar, é o requisito legal da confissão circunstanciada do suspeito; haja vista a possibilidade de adoção desta para fundamentar a aplicação de sanção disciplinar pelo órgão de origem do militar. Por tal razão, antes do envio do acordo para homologação, é requerido o segredo de justiça à Auditoria Militar; sigilo este que, inclusive, constitui cláusula do ANPP, o que afasta eventuais embaraços à aceitação da proposta pelo suspeito.


Com a adoção do procedimento acima apresentado, em data recente foi homologado o acordo de não persecução penal de oficial de alta patente da Polícia Militar do Distrito Federal por crime contra a administração militar, previsto no Código Penal Militar; bem como será encaminhada, para homologação, uma série de acordos firmados entre o Ministério Público e oficiais de alta patente do Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal, por crimes previstos na lei de licitações.


Importante ressaltar que a negociação penal, como forma de solução de conflitos, na Justiça Militar do Distrito Federal, somente foi possível graças à sensibilidade da Juíza Auditora, Dra. Catarina Correa, ela mesma uma entusiasta da Justiça Restaurativa como forma de obtenção da pacificação social duradoura.


O conservadorismo deve dar lugar à abordagem pragmática no enfrentamento dos problemas atinentes ao sistema judiciário como um todo; e, em especial, à Justiça Militar, em face da ampliação de sua competência para o julgamento dos chamados crimes militares impróprios por equiparação.


BIBLIOGRAFIA


BOVARNICK, J. A. Plea Bargaining in the Military. Federal Sentencing Reporter, v. 27, n. 2, dez. 2014.

CABON, S.-M. La négociation en matière penale. Bordeaux, France: Université de Bordeaux, 2014.

MELLO, M. B. Teoria do fato jurídico. 10a ed. São Paulo: SARAIVA EDITORA, 2000.




NOTAS


[1] Resolução 181/17 - CNMP

Art. 18. Não sendo o caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor ao

investigado acordo de não persecução penal quando, cominada pena mínima inferior a 4 (quatro) anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça a pessoa, o investigado tiver confessado formal e circunstanciadamente a sua prática, mediante as seguintes condições, ajustadas cumulativa ou alternativamente:

(...)

(Redação dada pela Resolução n° 183, de 24 de janeiro de 2018)


Flávio Milhomem é Promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios – MPDFT, Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade Católica Portuguesa e Especialista em combate à corrupção (Magistrado associado) pela Escola Nacional da Magistratura Francesa - ENM/France.

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