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Cícero Robson Coimbra Neves

E o fantasma do elemento normativo “mulher honesta” ainda assombra nosso direito...

Introdução


Vimos, recentemente, um episódio divulgado pela mídia, em que um advogado, em sessão no Poder Judiciário, portou-se de forma a humilhar a pessoa que figurava como ofendida em uma ação penal instaurada na persecução do crime de estupro[1].


Não se pretende aqui incursionar criticamente sobre a decisão absolutória proferida e, nem mesmo, “satanizar” comportamentos dos atores, mas é inevitável rememorar, diante dessa polêmica, formas de “coisificação” do indivíduo ainda presentes no Direito brasileiro, especialmente no Direito Penal e Processual Penal.


Um signo muito forte dessa coisificação ou instrumentalização está, por exemplo, no conceito, trazido outrora pela lei penal e ainda presente na lei penal militar, de “mulher honesta”.


Qual a ligação com o episódio noticiado?


A ligação é muito forte.


O que se viu – ao menos no que foi divulgado pela imprensa – foi a tentativa de desacreditar a vítima do pretenso crime contra a liberdade sexual, pela exposição, por exemplo, de fotos sensuais, dando a entender que o comportamento da jovem não era condizente com alguém que merecesse tutela de sua liberdade ou dignidade sexual. Enfim, houve a ressurreição, no Direito Penal e Processual Penal comum, do elemento normativo “mulher honesta”, que, embora banido da legislação penal, qual uma enfermidade para a qual negligentemente se deixa de tomar a vacina, parece querer retornar. Um fantasma que assola a todos.


Pior, esse elemento normativo ainda encontra previsão legal na legislação brasileira, especificamente no crime militar em tempo de guerra de rapto, previsto no art. 407 do Código Penal Militar.


Aproveitando o episódio de grande repercussão, propõe-se analisar o tipo penal incriminador do Código Penal Militar, verificando sua possibilidade de incidência na atual conformação do Estado Democrático de Direito.



1. “Mulher honesta” e o Direito Penal comum e militar


No Código Penal comum de 1940, o elemento normativo “mulher honesta” era previsto em três tipos penais, a saber, o de posse sexual mediante fraude (art. 215 do CP), de atentado ao pudor mediante fraude (art. 216 do CP) e de rapto violento ou mediante fraude (art. 219 do CP).


A doutrina, ao delinear esse elemento normativo, forte nas lições de Nelson Hungria, enxergava como honesta (mulher) “não só a conduta moral sexual irrepreensível, como ‘também aquela que ainda não rompeu com o minimum de decência exigido pelos bons costumes’” [2].


Ocorre que, acertadamente, passados alguns anos do Código de 1940, críticas muito bem colocadas eram feitas a essa distinção entre mulheres “honestas” e “não honestas”, considerando-se absurda a conferência de tutela penal apenas de um grupo de pessoas encaixadas em padrões morais fluidos, que, ademais, não resistem ao curso do tempo.


Vale, nesse propósito, citar, embora extensa, a crítica de Ney de Moura Teles, que, ao comentar a expressão da extinta redação do art. 215 do Código Penal comum, mostra, gritantemente, o cunho discriminatório que ela encerrava:


O tipo refere-se, exclusivamente, à mulher honesta.

Honesta, quando do início da vigência do Código Penal, em 1940, há quase um século, portanto, era a mulher 'cuja conduta, sob o ponto de vista da moral sexual, é irrepreensível, senão também aquela que ainda não rompeu com o minimum de decência exigido pelos bons costumes’.

Daquele tempo para cá, a sociedade muito mudou. Não se exige, mais, comportamento sexual irrepreensível de quem quer que seja. Nem de homens e nem de mulheres. Não se fala, mais, na sociedade brasileira, em mínimo ético, mínimo de decência ou em vida regrada, recatada ou pureza sexual porque essas não mais constituem exigências para o reconhecimento do valor dos atributos da pessoa humana, nem para que seja ela merecedora da consideração e respeito da sociedade.

Não há mais lugar para referências moralistas no exercício da sexualidade. Do ponto de vista da moralidade e dos costumes da sociedade atual toda mulher é honesta, e até mesmo a prostituta, quando enganada sobre a legitimidade da conjunção carnal ou sobre a identidade do homem com quem a mantém, deve merecer a proteção da norma penal em comento.

Outro entendimento - o que discrimina ou classifica as mulheres em honestas e não honestas ou desonestas - reflete apenas uma compreensão equivocada da realidade social, nostálgica de um tempo em que a mulher devia, para merecer respeito, portar-se e comportar-se segundo os padrões moralistas que a escravizavam, tornando-a mero objeto de satisfação dos prazeres sexuais do homem, receptáculo ou depósito de espermatozóides, matriz reprodutora e serviçal da família.

Conquanto toda mulher seja honesta, essa expressão contida na norma é absolutamente desnecessária e, por isso, não deve ser considerada no momento de sua aplicação no caso concreto.

O elemento normativo honesta, portanto, não faz mais, se é que algum tempo fez, qualquer sentido no interior do tipo, cabendo ao legislador bani-lo do ordenamento jurídico. A proteção penal da liberdade sexual da pessoa humana, igualmente, dispensa a construção típica comentada, dada a própria escassez de sua verificação no dia-a-dia em que, cada vez mais, é muito difícil sua ocorrência”[3].


O cirúrgico raciocínio do autor é quase um desabafo, um grito que se opõe ao preconceito que etiqueta pessoas e as nega direitos inarredáveis.


Afinal, teria uma prostituta o dever de se submeter a uma fraudulenta posse sexual ou a um rapto com fim libidinoso, sem merecer tutela penal do Estado Brasileiro?


Obviamente, a previsão do Código Penal de 1940 – que, aliás, era trazida também pelo natimorto Código Penal comum de 1969, nos arts. 240, 241 e 244 – não merecia continuar viva, pois lesava de morte a dignidade da pessoa humana, escolhendo, preconceituosamente, os merecedores de tutela penal.


Felizmente, a Lei n. 11.106, de 28 de março de 2005, livrou a todos dessa expressão no Código Penal comum, mas, tristemente, não foi o bastante para livrar a sociedade brasileira, especialmente no processo penal, da discriminação arraigada, como se verificou no episódio reportado inicialmente.


E o Código Penal Militar?


A situação, neste, é ainda pior, pois, como se anotou acima, o seu art. 407 considera como crime militar em tempo de guerra o ato de raptar “mulher honesta”, mediante violência ou grave ameaça, para fim libidinoso, em lugar de efetivas operações militares, isso sob a ameaça, em sua forma simples, de pena de reclusão de dois a quatro anos.


Será que esta tipificação direcionada ainda merece sobreviver, embora a remota possibilidade de conflito armado internacional?


Entende-se que não, especialmente diante da vedação da instrumentalização do indivíduo, fruto do fundamento republicano da dignidade da pessoa humana.



2. A repugnante coisificação do indivíduo ao longo da História


“Coisificar” no sentido que se quer empregar, significa instrumentalizar, tornar a pessoa um objeto, não a reconhecendo como um fim em si mesma e, em consequência, negando-lhe direitos fundamentais.


Utiliza-se da pessoa para obtenção de uma situação que nada lhe guarda de proveitoso, podendo ser direcionada por critérios espúrios como cor da pele, religião, orientação sexual, conduta moral, enfim, elementos de distinção que não podem mais ser assimilados em um Estado de Direito.


A História é repleta de exemplos em que o ser humano foi reduzido à condição de coisa, de objeto, especialmente em se tratando de pessoa que figurasse no polo passivo de um procedimento investigatório ou de um processo penal.


Na Idade Média[4], por exemplo, especificamente na Europa Ocidental e na Alta Idade Média, três sistemas jurídicos podiam ser reconhecidos: o Direito Romano, decadente; o Direito dos povos germânicos, calcado nos costumes e em ascensão; e o Direito Canônico, que surgia também com muita força[5].


Marcavam o Direito dos germânicos os “Juízos de Deus” ou ordálios, que consistiam na submissão de um suspeito a uma prova de fogo ou de água, sempre com a presunção de que Deus protegeria os inocentes. A expectativa, a exemplo do que aconteceu mais adiante na Inquisição, era de que o temor por ser culpado levasse à confissão antes que se aplicasse a prova, exemplo evidente de instrumentalização da pessoa, e aqui com a especial adjetivação de se prestar ao processo penal, ambiente em que se está travando a discussão em curso.


Esses suplícios contaram, deve-se ressaltar, com a promoção pela Igreja, que assumiu essa prática no Tribunal do Santo Ofício da Inquisição.


A Inquisição, criada em 1232 pelo Papa Gregório IX, transcorreu os séculos, chegando até o século XIX, portanto, sobrevivendo à Idade Moderna e chegando até a Idade Contemporânea, podendo-se afirmar que a coisificação da pessoa humana, sujeita a uma inquisa, estava em evidência.


Claro, o Estado também usava desse expediente. Um bom exemplo das execuções exemplares que partiam dessa visão do ser humano objeto nos dá Michel Foucault, em sua obra “Vigiar e punir”[6], em que há a explanação, no Capítulo I, de uma visão crítica dos suplícios, que permearam a Idade Média e a Idade Moderna, descrevendo, neste último período, a execução de um parricida, Damiens, datada de 2 de março de 1757.


Pela descrição feita pelo autor é possível ter uma ideia dos suplícios a que eram submetidos os condenados, demonstrando, ademais, que o corpo era o fim da pena, ou seja, havia a incidência sobre o corpo como forma de sedimentar a dominação do poder instituído sobre o cidadão, numa inequívoca “coisificação” do indivíduo.


Damiens, nos termos da sentença, foi condenado a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris, onde devia ser levado e acompanhado numa carroça, nu, coberto por uma camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; em seguida, na dita carroça, na Praça de Grève, e sobre um patíbulo que ali foi erguido, atenazado[7] nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que fora atenazado se aplicaram chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo seria puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento.


Relata a história que essa última operação foi muito longa, porque os cavalos não estavam afeitos à tração, de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis. Como isso não bastasse, foi necessário desmembrar as coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas.


Os suplícios por que passou Damiens evidenciavam uma espécie de espetáculo em que, mais importante que a própria sanção, a demonstração de poder sobre o corpo do condenado reafirmava o poder soberano, nitidamente negando uma visão digna ao ser humano.


O solo brasileiro, por óbvio, não foi privado dessas atrocidades. É possível encontrar episódios como no caso da Revolta dos Alfaiates, em Salvador em meados de 1798, em que, relata Laurentino Gomes, revoltosos afixaram manifestos exigindo o fim do jugo da Metrópole, a abolição da escravatura e a igualdade para todos, levante que foi durissimamente reprimido pelo governo Português, inclusive com a decapitação e esquartejamento de três dos revoltos, com pedaços de seus corpos espetados em estacas distribuídas pelas ruas, até se decomporem[8]. Sobre essa prática de repressão penal, o autor ainda pontua:


O suplício judiciário, como era conhecido esse tipo de punição, tinha o objetivo de servir de exemplo e de reafirmação do poder do rei sobre seus vassalos. Essa forma radical de expiação de crimes ou faltas graves mediante a mutilação do corpo ou mesmo queima dos culpados, era usada por Portugal desde a Idade Média e se tornou popular nos autos-de-fé da Inquisição. Um caso exemplar foi o “Processo dos Távora”, no qual um grupo da nobreza, acusado de tramar um atentado contra o rei D. José I, em 1758, foi executado e teve seus cadáveres mutilados e queimados em praça pública em Lisboa. As cinzas foram jogadas ao mar. Transplantado para a colônia brasileira, o suplício judiciário incluía mutilação física, marcação com ferro em brasa, açoite e esquartejamento. Foi aplicado sem dó nem piedade sempre que houve um bom motivo (do ponto de vista da Coroa portuguesa). Seria usado contra Tiradentes, na Conjuração Mineira, contra os líderes da Revolta dos Alfaiates da Bahia e em inúmeras outras pequenas rebeliões regionais[9].


Contra essas atrocidades historicamente verificadas, alguns bravos se levantaram, em uma feliz reação racional, marcada por alguns ícones do pensamento humano nas diversas áreas, passando, sem dúvida alguma, pela humanização do Direito Penal substantivo e adjetivo trazida pelas lições de Beccaria, em um verdadeiro grito contra a submissão do homem a tratamento desumano.


Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria – nascido em 15 de março de 1738, em Milão, e morto, na mesma cidade, em 24 de novembro de 1794 –, insurgiu-se contra o contexto cruel de seu tempo com a publicação de sua obra maior intitulada “Dos delitos e das penas”, de 1764, ou seja, na Idade Moderna, mas no limiar da Idade Contemporânea.


Beccaria, com seu pensamento, inaugurou, com outros expoentes, como Pietro Verri[10], o chamado Período Humanitário do Direito Penal, que, em decorrência das ideias do Iluminismo, pregou uma verdadeira reforma das leis e da administração da justiça, no final do século XVIII, havendo o início da compreensão do problema penal como um problema filosófico[11] e jurídico.


Foi influenciado, dentre outros, por Rousseau, Montesquieu e Diderot, ao passo que influenciou os precursores da Escola Clássica[12], como Feuerbach, Carmignani, Rossi etc.


Seu livro, em suma, em seus quarenta e dois tópicos, discute, entre outros tantos temas: a impossibilidade de pena, senão por força de lei; uma separação de personagens entre quem elabora as leis, o Parlamento, quem as interpreta, o Monarca, e quem as aplica, o Magistrado, devendo este ser a voz da lei; postulava que a pena deveria ser imediata ao delito, sendo este o ponto lógico de intimidação e não a gravidade das penas; igualdade entre os criminosos que cometem os mesmos delitos; apontou a incongruência das penas cruéis e da vingança.


Na mesma época, também como prenúncio da Idade Contemporânea, o filósofo prussiano Immanuel Kant – nascido em Königsberg (hoje Kaliningrado ou Caliningrado, em território russo) em 22 de abril de 1724 e morto na mesma cidade em 12 de fevereiro de 1804 –, com sua obra “Crítica da razão pura”, cuja primeira edição se deu em 1781, investigou o núcleo verdadeiro da teoria do conhecimento, postulando que o sujeito se torna o elemento decisivo na elaboração do conhecimento.


Ao que interessa à construção em curso, o Filósofo, ao abordar a geometria e a noção de espaço, postulou que não era possível “falar de espaço, de seres extensos etc., senão debaixo do ponto de vista do homem. Nada significa a representação do espaço, se saímos da condição subjetiva, única sob a qual podemos receber a intuição externa, quer dizer, ser afetados pelos objetos”. Prosseguiu sustentando que este “predicado só convém às coisas, enquanto elas nos aparecem a nós, quer dizer, enquanto são objetos da sensibilidade. A forma constante desta receptividade, que denominamos sensibilidade, é a condição necessária de todas as relações, em que os objetos são intuídos como exteriores a nós outros; e se dita forma for abstraída dos objetos é então uma intuição pura, que toma o nome de Espaço”[13].


Até a inauguração dessa visão kantiana, era corrente a compreensão de que o homem, sujeito cognoscente, girava em torno dos objetos do conhecimento. Com sua visão, marcada pelo que ele próprio denominou “revolução copernicana”, Kant fez compreender que, em verdade, são os objetos que giram em redor do homem, constituindo-se em um dos primeiros esforços filosóficos em se reconhecer a subjetividade, em centrar o homem em relação às coisas, negando-se a visão de que se pode instrumentalizar, “coisificar”, o ser humano[14].


Uma outra leitura feita da obra de Kant, não divorciada da acima consignada, mas com outra tonalidade importante, faz Luís Roberto Barroso:


(...). A dignidade, na visão kantiana, tem por fundamento a autonomia. Em um mundo no qual todos pautem a sua conduta pelo imperativo categórico – no ‘reino dos fins’, como escreveu –, tudo tem um preço ou uma dignidade. As coisas que têm preço podem ser substituídas por outras equivalentes. Mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e não pode ser substituída por outra equivalente, ela tem dignidade. Tal é a situação singular da pessoa humana. Portanto, as coisas têm preço, mas as pessoas têm dignidade. Como consectário desse raciocínio, é possível formular uma outra enunciação do imperativo categórico: toda pessoa, todo ser racional existe como um fim em si mesmo, e não como meio para o uso arbitrário pela vontade alheia[15].


No contexto apresentado, é possível afirmar que Beccaria, inaugurando o período humanitário do Direito Penal, precursor da Escola Clássica, e Kant, com sua “revolução copernicana”, foram expoentes precursores na ideia de petrificação do ser humano como razão em si mesmo, como indivíduo dotado de personalidade tal, em relação à qual não se poderiam opor certos comportamentos agressivos à individualidade, partindo de um falso pressuposto de que o homem, por circular os objetos de seu conhecimento, a esses se equiparava, tornando-se também um objeto para o alcance de certos propósitos, a exemplo da imposição de tortura para a obtenção de confissão, em busca de eficiência de um processo penal questionável, ou mesmo da imposição exemplar de pena cruel para reafirmar o domínio do Estado sobre seus cidadãos, como ocorreu com Damiens.


Claro, a contemporaneidade, é fruto desses bravos visionários, que, certamente, ao lado das declarações libertárias – Americanas de 1776 e Francesa de 1789 – desaguaram em norma constitucionais que asseguram o respeito à dignidade da pessoa humana, a isonomia, a proscrição da tortura, enfim, os postulados que afastam a instrumentalização. Dessa base histórica, muitas vezes também impulsionado por uma experiência aterradora, como a II Guerra Mundial, pode-se chegar à Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969, e, evidentemente, marcando a característica de historicidade dos direitos fundamentais, à Constituição da Republica Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988.


No contexto constitucional vigente, não se pode, enfim, tolerar tratamentos preconceituosos e desumanos, como aqueles reservados a Damiens, aos líderes da Revolta dos Alfaiates e a Tiradentes, ainda que estejam figurando no polo passivo de uma ação penal.


Que dizer, então, quando esse tratamento discriminatório e instrumentador se refere à vítima ou ao ofendido na relação jurídica de direito material, refletida na relação jurídica de direito processual?


Evidentemente, não se pode ficar indiferente diante da instrumentalização da vítima, sua redução à condição de objeto, como no caso em evidência hoje na mídia, ou como no odioso elemento normativo do Código Penal Militar, da “mulher honesta”.



3. Inconstitucionalidade do crime de rapto no Código Penal Militar


Como então solucionar a questão no Direito Castrense?


Diga-se, de chofre, que, felizmente, o fato de não se estar em estado de guerra, qual torneado pelo art. 15 do CPM, torna remota a aplicação do art. 407 do mesmo Diploma, de maneira que a solução aqui indicada é meramente ilustrativa, sem respaldo no cenário jurisprudencial.


Ao ferir disposições constitucionais evidentes – a iniciar pela dignidade da pessoa humana – é cristalino que o termo “mulher honesta” não pode mais resistir ao teste de constitucionalidade.


Afinal, todos merecem a tutela penal militar encerrada pelo tipo indicado, não apenas a “mulher honesta”. Todas as mulheres e todas as pessoas, no que concerne à sua dignidade sexual, são honestas, não se justificando a discriminação.


A discriminação pela lei, sabe-se bem, é tolerável quando se tem uma finalidade acolhida pelo Direito, quando se tem um pressuposto lógico amparado por razões assimiladas pelos princípios trazidos pela própria Constituição. Sobre essa possibilidade, com maestria, ensina Alexandre de Moraes:


A Constituição de 1988 adotou o princípio da igualdade de direitos, prevendo a igualdade de aptidões, uma igualdade de possibilidades virtuais, ou seja, todos os cidadãos têm o direito de treinamento idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico. Dessa forma, o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça, pois o que realmente protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo Direito, sem que se esqueça, porém, como ressalvado por Fábio Konder Comparato, que as chamadas liberdades materiais têm por objetivo a igualdade de condições sociais, meta a ser alcançada, não só por meio de leis, mas também pela aplicação por políticas ou programas de ação estatal” [16].


Certamente, não é o caso do art. 407 do Código Penal Militar que, aliás, colide frontalmente com a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, promulgada pelo Decreto n. 4.377, de 13 de setembro de 2002, que em seu art. 1º já esclarece que a “expressão ‘discriminação contra a mulher’ significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo”.


Ora, separar mulheres em “honestas” e “desonestas” para garantir tutela penal apenas no caso das primeiras, evidentemente, importa em espécie de discriminação contra a mulher, alijando-a de direitos em uma proteção deficiente, o que permitiria, não fosse a inconstitucionalidade inequívoca, o reconhecimento da inconvencionalidade do dispositivo encerrado pelo art. 407 do CPM.


A primeira solução para a questão, óbvio, seria, a exemplo do que fez a Lei n. 11.106, de 28 de março de 2005, com o art. 219 do CP, revogar o dispositivo do Código Penal Militar ou, minimamente, alterar sua redação para abranger qualquer pessoa. Mesmo com a revogação, certamente, a proteção dos bens jurídicos pretensamente protegidos pelo preconceituoso dispositivo estaria assegurada por outros dispositivos penais, a exemplo do crime do art. 225 do CPM (sequestro ou cárcere privado) em concurso com o crime do art. 232 (estupro) ou 233 (atentado violento ao pudor) do mesmo Código, que podem, ressalte-se, conhecer a adjetivação de crimes em tempo de guerra, pela previsão do inciso II do art. 10, também do Código Penal Castrense.


Enquanto essa ação legislativa não ocorre, repita-se, novamente, ainda que remota a aplicação do dispositivo, a solução mais adequada é a mesma trazida para o art. 235 do CPM, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 291, rel. Min. Roberto Barroso, j. 28/10/2005, em que se decidiu:


ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ART. 235 DO CÓDIGO PENAL MILITAR, QUE PREVÊ O CRIME DE “PEDERASTIA OU OUTRO ATO DE LIBIDINAGEM”. NÃO RECEPÇÃO PARCIAL PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988. 1. No entendimento majoritário do Plenário do Supremo Tribunal Federal, a criminalização de atos libidinosos praticados por militares em ambientes sujeitos à administração militar justifica-se, em tese, para a proteção da hierarquia e da disciplina castrenses (art. 142 da Constituição). No entanto, não foram recepcionadas pela Constituição de 1988 as expressões “pederastia ou outro” e “homossexual ou não”, contidas, respectivamente, no nomen iuris e no caput do art. 235 do Código Penal Militar, mantido o restante do dispositivo. 2. Não se pode permitir que a lei faça uso de expressões pejorativas e discriminatórias, ante o reconhecimento do direito à liberdade de orientação sexual como liberdade existencial do indivíduo. Manifestação inadmissível de intolerância que atinge grupos tradicionalmente marginalizados. 3. Pedido julgado parcialmente procedente.


Transportando para o contexto do crime de rapto, tem-se que a expressão “honesta” não foi recepcionada pela Constituição Federal, exatamente por não se poder “permitir que a lei faça uso de expressões pejorativas e discriminatórias”. Se o argumento é válido para o pretenso autor do fato, como se assentou no caso do art. 235 do CPM, certamente, há de ser forte para quebrar a distinção em relação àquele que mereça tutela penal.


A tutela especial da mulher, frise-se, não importa em discriminação banida pelo Direito, muito ao contrário, alinha-se ao espírito da discriminação positiva, não incorrendo, pois, no acima mencionado art. 1º da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, uma vez que não visa prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais, mas, ao contrário, visa assegurar a igualdade sem rótulos preconceituosos, com base em arcaicos conceitos morais.



Conclusão


É urgente que o Direito pátrio se livre das âncoras indesejáveis que o vinculam ao passado discriminatório e infundado.


Admitir-se um tratamento desigual a mulheres sob o pretexto de serem ou não honestas, é retomar a visão instrumentalizada do ser humano, um reflexo da mesma odiosa conduta de executar inimigos da Coroa em praça pública.


Uma tal previsão, como a do art. 407 do CPM, fere de morte o fundamento da dignidade da pessoa humana, não havendo outra possibilidade de aplicação deste artigo, senão, à luz do que propôs Moura Teles, esquecer este elemento normativo e, mais, não distinguir se a vítima se trata de mulher “honesta”, “desonesta”, trans etc.


Espera-se muito mais do Direito; espera-se muito mais da humanidade!



Referências


BARROSO, Luís Roberto. O novo direito constitucional brasileiro. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2013.

DELMANTO, Celso et al. Código Penal comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. São Paulo: Vozes, 1987.

GOMES, Laurentino. 1808: Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil. São Paulo: Planeta, 2007.

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Disponível em: www.institutoelo.org.br. Acesso em: 4 nov. 2020.

LIMA, Carolina Alves de Souza. O princípio constitucional do duplo grau de jurisdição. São Paulo: Manole, 2004.

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2019.

SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Fortaleza: Celso Bastos, Editor, 1999.

TELES, Ney de Moura. Direito penal. São Paulo: Atlas, 2004, vol. III.




NOTAS


[1] Para compreender a questão, vide reportagem da BBC News intitulada “Caso Mariana Ferrer: desmerecer a vítima é comum em casos de estupro, relatam advogados”, disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-54803352. Acesso em 04 nov. 2020.


[2] DELMANTO, Celso et al. Código Penal comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 468.


[3] TELES, Ney de Moura. Direito penal. São Paulo: Atlas, 2004, vol. III, p. 76-7.


[4] Início na queda do Império Romano do Ocidente (476 d.C.) e durou até a queda do Império Romano do Oriente, marcada pela queda de Constantinopla em 29 de maio de 1453, quando se inicia a Idade Moderna.


[5] Cf. LIMA, Carolina Alves de Souza. O princípio constitucional do duplo grau de jurisdição. São Paulo: Manole, 2004, p. 33.


[6] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. São Paulo: Vozes, 1987.


[7] Atenazar: apertar com tenaz; na acepção do livro, significava transpassar um ferro nos mamilos, braços, coxas etc.


[8] GOMES, Laurentino. 1808: Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil. São Paulo: Planeta, 2007, p. 137.


[9] Idem, p. 138.


[10] Pietro Verri, juntamente com Beccaria, com seu irmão Alessandro Verri e mais um grupo de intelectuais brilhantes, adeptos do Iluminismo, haviam fundado uma agremiação, denominada “Accademia dei Pugni”, que mantinha uma publicação periódica intitulada il Caffe, por meio da qual combatiam o atraso e a desumanidade do sistema jurídico vigente, propondo mudanças substanciais, para que prevalecessem o Progresso e a Razão.


[11] Anote-se que as ideias iluministas marcam a migração da concepção de dignidade da pessoa humana da religião para a Filosofia. Nesse sentido, BARROSO, Luís Roberto. O novo direito constitucional brasileiro. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2013, p. 289.


[12] O termo “Escola Clássica” foi criado de forma pejorativa pelos positivistas que a sucederam e representa a reunião de doutrinadores sob um mesmo conjunto de ideias, arrimadas no período humanitário inaugurado por Beccaria, que teve como um de seus maiores expoentes Francesco Carrara, com seu Programa do curso de direito criminal, de 1859.


[13] KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Disponível em: www.institutoelo.org.br. Acesso em: 4 set. 2011, p. 18.


[14] Cf. SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Fortaleza: Celso Bastos, Editor, 1999, p. 21.


[15] BARROSO, Luís Roberto. O novo direito constitucional brasileiro. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2013, p. 302.


[16] MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2019, p. 36.



Cícero Robson Coimbra Neves é membro do Ministério Público da União. Mestre em Direito pela PUC/SP. Professor de Direito Constitucional, Direito Processual Penal e Legislação Penal Especial na Faculdade de Direito de Santa Maria/RS – FADISMA.

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