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  • Flávio Milhomem

A necessidade do acordo de não persecução penal na Justiça Militar brasileira

O negócio processual pode ser definido como o fato jurídico voluntário em cujo suporte fático esteja conferido ao respectivo sujeito o poder de escolher a categoria jurídica ou estabelecer, dentre os limites fixados no próprio ordenamento jurídico, certas situações jurídicas processuais. No negócio jurídico, há escolha da categoria jurídica, do regramento jurídico para uma determinada situação.(MELLO, 2000)


A justiça negociada visa a um processo de simplificação de regras do processo penal que repousa sobre uma troca entre o acusador e o suspeito sobre o quantum da pena e a prova dos fatos. A admissão de soluções negociadas, fundadas em um diálogo entre a parte suspeita e o acusador, constitui uma tendência marcante do direito penal contemporâneo que corrobora a análise econômica do Direito.


A associação dos termos “processo” e “negociação” ilustra a ideia segundo a qual a negociação não é um dado estático. Se trata de um conjunto de discussões que se encadeiam entre indivíduos e se organiza segundo um esquema com vistas a alcançar um resultado determinado, um acordo. Em matéria penal, a negociação se singulariza por uma sequência de operações realizadas entre uma autoridade repressiva e o autor de uma infração caracterizando o que é comumente denominado a justiça negociada. Se trata assim de uma noção evolutiva, dinâmica, para não dizer, viva. O desenvolvimento da negociação deve se inscrever sobre o respeito de um equilíbrio entre os imperativos de eficácia e de respeito dos princípios que conferem à justiça penal sua identidade.(CABON, 2014)


Pela negociação, trata-se menos de desviar o procedimento que de melhorá-lo; trata-se menos de acelerar a justiça que de a entregar. Processo de interação, de troca e de discussão entre atores autônomos, mas interdependentes, a negociação não parece, à primeira vista, ter lugar nos domínios da repressão. Em razão de seu objeto específico, a justiça penal encarna, da maneira mais radical, a imagem perfeitamente hierárquica de uma justiça imposta; quer dizer, fonte de decisões adotadas unilateralmente e que se impõe de maneira autoritária a seus destinatários. Ademais, o constrangimento que o processo penal implica é pouco propício à negociação e faz da repressão um domínio relativamente hostil à promoção do reino da troca. Aos olhos da sacralidade do rito judiciário, da sujeição particular do jurisdicionado e da ideia de ordem a que se refere a justiça repressiva, falar de negociação em matéria penal aparenta ser quase uma ofensa. Ademais, a obrigação que o processo penal implica é pouco propícia à negociação e faz da repressão um domínio.(CABON, 2014)


Em janeiro de 2020, entrou em vigor o Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/19); um conjunto de alterações promovidas no ordenamento jurídico, em matéria penal e processual sem que, no entanto, se possa dizer sistematizadas.


Dentre as alterações legais, destaca-se a inclusão do art. 28-A do Código de Processo Penal, que trata do acordo de não persecução penal; instituto cujo berço e inspiração se encontram nos países de tradição jurídica consuetudinária – Inglaterra e suas ex-colônias.


O acordo de não persecução penal, modalidade de negócio jurídico processual, no entanto, não surgiu no ordenamento jurídico brasileiro a partir da edição do Pacote Anticrime. Cuida-se, na realidade, de inovação normativa cujo fundamento se encontrava em resolução administrativa, a Resolução nº 181/17 do Conselho Nacional do Ministério Público.[1]


Por sua vez, não foi ele, o acordo de não persecução penal que inaugurou, no ordenamento jurídico brasileiro, a justiça penal negociada. Tal mérito se atribui à transação penal, instituto penal de justiça restaurativa implementado, no século passado, pela Lei dos Juizados Especiais Criminais (L. nº 9.099/95). Nos anos que se seguiram, a tendência pela adoção do sistema de justiça negociada no ordenamento jurídico brasileiro se mostrou cada vez mais presente.


Especificamente no que toca às infrações militares, a Resolução 181/17, trazia restrição expressa à sua aplicação aos crimes militares que afetassem a hierarquia e a disciplina.


Em outras palavras, o acordo de não persecução penal caberia para as infrações penais militares, à exceção daquelas que afetassem a hierarquia e a disciplina, nos termos do art. 18, §12, do referido ato normativo.


Resolução 181/17:


Art. 18.

(...)

§ 12 As disposições deste Capítulo não se aplicam aos delitos cometidos por militares que afetem a hierarquia e a disciplina. (Incluído pela Resolução n° 183, de 24 de janeiro de 2018).


Fernando Galvão, em artigo publicado na revista eletrônica do Observatório da Justiça Militar da Universidade Federal de Minas Gerais, promove uma análise comparada da adoção do direito penal negocial na justiça militar estadunidense. Naquele país, em 2016, ocorreu uma importante reforma na Justiça Militar, que visou a modernizar os seus institutos e conferir maior transparência aos seus julgamentos. A mudança foi promovida pelo general do Exército Martin Dempsey, que propôs uma revisão sistemática do UCMJ e MCM ao Secretário de Defesa em 2013, defendendo que as mudanças são necessárias para garantir que as leis e os regulamentos militares acompanhem momento atual da sociedade americana.


A Lei de 2016 introduziu expressamente a possibilidade do plea agreement (modalidade de plea bargain) no Código Uniforme de Justiça Militar e no Manual para Tribunais-Marciais. No Código Uniforme de Justiça Militar, o instituto permite que, a qualquer momento antes do julgamento do processo criminal, a autoridade de convocação (comandante militar) e o acusado firmem acordo de confissão de culpa com a redução de acusações e/ou de penas. O plea agreement se assemelha ao acordo de não persecução penal previsto na legislação brasileira.(GALVÃO, 2020)


Durante um estudo consagrado à história do plea bargaining, um autor relata que a prática debutou sobre o território norte-americano logo após a Guerra de Secessão, por volta de 1870. Inteiramente desorganizado, mas amparado pela declaração de direitos (Bill of Rights), o sistema judiciário, a partir daí, não mais suportava um crescimento de volume de casos conjugado a um déficit de pessoal. Pragmático, o lançamento de um diálogo entre o acusado e a autoridade de persecução penal visando à conclusão de um acordo sobre a pena, que o procurador submeterá ao juiz para validação, é percebido rapidamente como um instrumento eficaz de gestão do contencioso no qual se permite contornar a lentidão do processo penal e de economizar os recursos preciosos da justiça a fim que esta se dedique aos processos realmente importantes.


Um século mais tarde, este procedimento derrogatório do processo tradicional foi validado pela Suprema Corte dos Estados Unidos em um célebre caso Brady v. United States, antes de ser considerado como um elemento essencial à administração da justiça norte-americana. Hoje, apesar das críticas, a prática do plea bargaining importa em quase 95% das resoluções de processos penais no território americano. Nascida em terras da Common Law, a prática do confessar-se culpado (guilty plea) é a fagulha que levou à propagação da negociação no âmago da justiça penal.


Diversas são as causas apontadas para o aparecimento da negociação no cenário jurídico mundial: a) a crescente dificuldade probatória, b) um cenário de expansão do direito penal por meio da antecipação da tutela e abstração dos tipos, c) a identificação dos fins da pena para a prevenção geral.


O motivo principal, porém, é visto na economia processual, ou seja, a negociação advém da sobrecarga do sistema jurídico. Além dos acordos informais, esse panorama fomentou a introdução de hipóteses determinadas legalmente de não persecução penal, ainda que presente justa causa para o ajuizamento da ação penal.


A título de exemplo, desde 1987, o Conselho de ministros do conselho da Europa sobre a simplificação da justiça penal adotou uma recomendação propondo expressamente a possibilidade de confessar-se culpado (plea guilty), com vistas a acelerar o curso da justiça. Igualmente, a posição adotada pela jurisprudência europeia tem contribuído largamente para fazer emergir este tipo de procedimento fundado sobre uma confissão inicial de culpa; e reforçou a emergência, em matéria penal, de formas de justiça ditas consensuais e negociadas.


Em se tratando da aparição do confessar-se culpado (guilty plea) e de sua negociação nos sistemas de Direito romano, um autor fala de um transplante por uma espécie de fenômeno de contágio. Se o termo contágio faz referência a um mal, parece que este termo deve ser utilizado não a propósito da prática da negociação ela mesma, mas sobretudo em vista das causas de seu desenvolvimento nos países que não têm por tradição abdicar de um processo penal por uma confissão. De fato, os argumentos avançados no seio de diferentes países terem adotado esta prática de confessar-se culpado são idênticas: a impossibilidade de gerenciar o conjunto de processos, a necessidade de simplificar a justiça penal, a vontade de acelerar o procedimento e, enfim, de aumentar sua eficiência.(CABON, 2014)


Assim, é mesmo um contágio geral de diferentes legislações penais mundiais por doenças semelhantes àquelas conhecidas nos Estados Unidos que provocaram a adoção por certos sistemas romano-germânicos de remédios idênticos àqueles dos sistemas da Common Law.


Com a entrada em vigor da Lei nº 13.964/19 (Pacote anticrime), em janeiro de 2020, o acordo de não persecução penal passou a ter previsão legal. Contudo, ao contrário da resolução administrativa, a nova lei não traz regramento explícito acerca de sua aplicabilidade no processo penal militar.


Tal omissão legal levou parte da doutrina a interpretar o não cabimento do acordo de não persecução penal na Justiça Militar, sob a alegação de que, em se tratando o Código de Processo Penal Militar de norma especial, não haveria a possibilidade de aplicação subsidiária do Código de Processo Penal comum.


Este entendimento, inclusive, foi adotado pelo Superior Tribunal Militar para firmar o não cabimento do acordo de não persecução penal no âmbito da Justiça Militar (Apelação 7001106-21.2019.7.00.0000).


Ocorre, todavia, que, antes da entrada em vigor da Lei nº 13.964/19, a norma de regência do acordo de não persecução penal era a Resolução nº 181/17, tanto para os crimes comuns quanto para os crimes militares.


O Código de Processo Penal passou a ser a norma de regência do referido negócio jurídico pré-processual para os crimes de competência da justiça comum; porém, no silêncio da lei quanto ao regramento aplicável aos crimes militares, conclui-se que continua sendo a Resolução 181/17 do CNMP a norma que regulamenta o acordo de não persecução penal no âmbito da justiça castrense, já que esta não fora revogada explícita ou tacitamente pelo novo regramento legal. Ressalte-se, não se trata da sustentação de que se operou o fenômeno da repristinação legislativa, simplesmente pelo fato de que a norma não fora revogada, implícita ou explicitamente.


E, assim como a Resolução 181/17 do CNMP, deve ser igualmente aplicada a Resolução 101/18 do Conselho Superior do Ministério Público Militar, que servirá de parâmetro para o oferecimento do acordo de não persecução penal tanto na Justiça Militar da União, quanto na Justiça Militar Estadual:


Resolução 101/18:


Art. 18. Não sendo o caso de arquivamento, o Ministério Público Militar poderá propor ao investigado acordo de não persecução penal, quando, cominada pena mínima inferior a 4 (quatro) anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, o investigado tiver confessado formal e circunstanciadamente a sua prática, mediante as seguintes condições, ajustadas cumulativa ou alternativamente: (...)


A doutrina americana entende que eventual resistência da autoridade de convocação à negociação da pena a ser imposta em razão da prática de crime militar é contraproducente para os fins do Direito Penal Militar nas Forças Armadas americanas e, por isso, o acordo é incentivado pelo governo. Entende-se que, se o governo puder garantir uma condenação por confissão de culpa, haverá uma economia importante no tempo e nas despesas de um caso contencioso.(BOVARNICK, 2014) apud (GALVÃO, 2020).


Com a reforma produzida pela Lei nº 13.491/17, alcançou-se uma maior valorização da Justiça Militar brasileira; e, com ela, o alargamento de sua competência para alcançar os crimes militares extravagantes por equiparação. É inegável que a realidade dos fatos leva à necessidade de adoção de medidas consentâneas com seu tempo para a prestação do serviço público e a entrega da prestação jurisdicional, apesar do apego à tradição.


As semelhanças e pontos de convergência que possam ser constatados entre as matérias penais brasileira e americana a propósito da negociação testemunham mais a existência de um mesmo problema e de um desejo comum de buscar a solução que de uma “americanização” total do procedimento penal brasileiro. Em outros termos, as ideologias próprias a cada legislação tendem a dar lugar ao pragmatismo no enfrentamento dos problemas atinentes aos sistemas judiciários respectivos.


BIBLIOGRAFIA

BOVARNICK, J. A. Plea Bargaining in the Military. Federal Sentencing Reporter, v. 27, n. 2, dez. 2014.

CABON, S.-M. La négociation en matière penale. Bordeaux, France: Université de Bordeaux, 2014.

GALVÃO, F. Direito Penal Militar negocial: a experiência norte-americana. Observatório da Justiça Militar, maio 2020.

MELLO, M. B. Teoria do fato jurídico. 10a ed. São Paulo: SARAIVA EDITORA, 2000.




NOTAS


[1] Resolução 181/17 - CNMP

Art. 18. Não sendo o caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor ao

investigado acordo de não persecução penal quando, cominada pena mínima inferior a 4 (quatro) anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça a pessoa, o investigado tiver confessado formal e circunstanciadamente a sua prática, mediante as seguintes condições, ajustadas cumulativa ou alternativamente:

(...)

(Redação dada pela Resolução n° 183, de 24 de janeiro de 2018)


Flávio Milhomem é Promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios – MPDFT, Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade Católica Portuguesa e Especialista em combate à corrupção (Magistrado associado) pela Escola Nacional da Magistratura Francesa - ENM/France.

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