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  • Eduardo Luiz Santos Cabette

Inquérito judicial das fake news

As obviedades que precisam ser explicadas


Infelizmente vivemos um momento não só no Brasil, mas no mundo, em que é necessário explicar o óbvio, descrever o notório e revisitar os mais comezinhos princípios e conhecimentos de quaisquer áreas. No âmbito jurídico isso se agiganta.


O famigerado “Inquérito das Fake News” (INQ STF 4781), instaurado pela Portaria GP 69/19, da lavra do Ministro – Presidente Dias Toffoli, designando para sua condução o Ministro Alexandre de Moraes, [1] é uma dessas aberrações que surgem de algum recôndito trevoso onde as regras e princípios jurídicos mais comuns não têm validade. É como se pudesse ser aplicada ao mundo do Direito a teoria física altamente questionada dos chamados “multiversos”. Então, em um universo normal teriam vigência as regras e princípios do Direito, mas em algum universo paralelo tudo seria divergente, e pior, seria possível o trânsito entre esses universos, gerando consequências na ordem natural da nossa existência. Na área jurídica fala-se no conceito de “ficção jurídica”, agora talvez possamos falar em uma “ficção científica jurídica”.


Esse Inquérito Judicial é questionado em sua validade e legalidade pela ADPF 572, [2] que deve ser julgada, segundo consta, no próximo dia 10.06.2020. Entretanto, em meio a tanta absurdidade, é impossível antever qual o desfecho desse julgamento.


Os comentários que seguem não serão reforçados por indicações bibliográficas, como é costume nos textos deste autor. Isso porque se tratam de conhecimentos corriqueiros a dispensarem maiores aprofundamentos. Como já se disse, neste texto o que se procura é tão somente explicar o óbvio. Assim sendo, o máximo que se fará será a indicação, em notas de rodapé, dos documentos originais a que se fizer referência, os quais estão disponíveis na rede mundial de computadores e são públicos. Acrescente-se que as críticas aqui formuladas não se dirigem a instituições ou pessoas, mas ao procedimento absolutamente inadequado adotado, ao menos de acordo com as disposições legais, convencionais e constitucionais.


A determinação do Ministro Dias Toffoli de instauração do citado Inquérito Judicial se fez, supostamente, com sustento no exercício das funções atribuídas ao cargo de Presidente do STF que atualmente ocupa. Efetivamente, há previsão no “Capítulo IV – Do Presidente e do Vice – Presidente”, artigo 13, inciso I, do Regimento Interno do STF (RISTF) ser atribuição do Presidente “velar pelas prerrogativas do Tribunal”. [3]


Até esse ponto, embora seja por demais questionável em que sentido estaria o STF manietado por eventuais notícias ou manifestações públicas em redes sociais, jornais, revistas etc., pode-se dizer que é legítima a atuação do Presidente do órgão na defesa de suas prerrogativas. Isso não se discute. A questão, como já dito, começa a gerar perplexidade quanto à dúvida sobre em que aspecto o STF não conseguiria ou teria obstaculizadas suas prerrogativas por meras notícias, críticas ou mesmo notícias falsas? Algum julgamento seria suspenso? A Corte não poderia mais atuar? As convicções livres dos magistrados que a compõem seriam alteradas? Não teriam os magistrados o necessário discernimento e equilíbrio para manter suas posições a despeito de quaisquer críticas ou expressões midiáticas? O Tribunal seria extinto devido a palavras e expressões? Não parece crível que isso seja algo sustentável. Indaga-se então, como seria possível a qualquer Presidente da República que já ocupou o cargo neste país, exercer suas prerrogativas diante da constante submissão a críticas das mais variadas, inclusive falsas ou questionáveis conforme cada ponto de vista? Também como atuaria o Legislativo? E isso vale não só em nível Federal, mas Municipal e Estadual.


Analisando o teor da Portaria GP 69/19, cuja íntegra pode ser consultada na petição da ADPF 572 [4] verifica-se que não existe a descrição concreta de como estaria sendo o SFT violado ou coartado em suas prerrogativas. Há apenas a menção à função de defesa dessas prerrogativas pelo Presidente que a expede, nos termos do dispositivo supra mencionado e a alegação genérica de notícias e ameaças que afetariam a honorabilidade do E. Tribunal. Como essas críticas e notícias criariam óbices às prerrogativas fica absolutamente lacunoso. E mais, não há sequer a descrição, ainda que exemplificativa de um único caso concreto a sustentar a atuação do Presidente do STF.


Já neste ponto, um princípio básico da Administração Pública e da Justiça está ferido. Trata-se da necessidade de que toda medida adotada seja devidamente fundamentada. A Portaria GP 69/19 não é dotada da mais mínima fundamentação ou demonstração de legitimidade do ato. Indicar um artigo do RISTF abstratamente e mencionar genericamente supostos atos ilícitos sem um mínimo descritivo, não é e nunca foi fundamentação. Se a partir de agora será, com a comunicação entre os “multiversos”, sob a tutela do STF, fica a esclarecer.


Mas, o que mais revela a inadequação dessa Portaria GP 69/19 é o suposto sustento do Inquérito Judicial no disposto no artigo 43 do RISTF.


O artigo 43 sob enfoque se acha no “Capítulo VIII”, intitulado “Da Polícia do Tribunal”. Isso já significa que o conteúdo desse capítulo se refere a fatos que ocorram nos limites físicos do STF. É manifestação do chamado “Poder de Polícia” concernente a todo aquele que exerce jurisdição para manter a ordem e a lei no âmbito de sua atuação. Também um juiz de primeiro grau é dotado desse “Poder de Polícia” e, em caso de turbação da ordem em suas audiências pode impor o retorno à normalidade e providenciar a responsabilização, inclusive criminal, de quem quer que seja, mas isso obedecendo às normas penais, processuais penais e constitucionais, remetendo, por exemplo, o infrator à Polícia Judiciária, acionando a Polícia Ostensiva, dando voz de prisão em flagrante, se for o caso, e até lavrando o auto respectivo, mas ficando assim impedido de atuar no respectivo processo. Esta última hipótese tem sido questionada após a Constituição de 1988 e adoção do “Sistema Acusatório”, devendo o magistrado colocar-se ao máximo à margem de atos de investigação. Também se for vítima de eventual crime, não poderá jamais julgar ou instruir o caso. Tudo isso são conhecimentos comezinhos da área jurídico – penal e processual penal. O “Poder de Polícia” das audiências, varas, juízos e tribunais não se confunde com poder de investigação de infrações penais, o que é vedado em absoluto a qualquer magistrado numa obediência mínima que seja ao “Sistema Acusatório”. Em suma, afirmar que o magistrado detém “Poder de Polícia” não significa que ele seja “Policial” ou detenha poderes de investigação! Chega a causar constrangimento ter de dizer isso, porque se tratam de ensinamentos basilares ministrados a jejunos nos cursos de Direito.


Quando se afirma que o artigo 43 está no Capítulo VIII referente à Polícia do Tribunal e que isso significa que se restringe a fatos ocorridos em seu espaço físico, pode-se comprovar essa afirmação com a mera leitura do conteúdo do artigo 43, cuja semântica clara não deixa margem de dúvida.


O dispositivo se refere a eventual infração penal ocorrida “na sede ou dependência do tribunal”. Isso é exatamente o que aqui foi afirmado.


Neste ponto, vale salientar que eventuais notícias, críticas, ameaças ou seja lá o que for, ao menos ao que se saiba, jamais foram realizadas na sede ou dependência do STF, durante sessões daquela Corte ou coisa parecida. O alvo, segundo consta, das investigações seria basicamente composto de manifestações e notícias veiculadas pela rede mundial de computadores e outros meios de comunicação falada, escrita ou audiovisual, nenhuma delas produzida ou transmitida na sede ou dependência do STF. Isso é de evidência gritante.


Não bastasse isso, o artigo 43 RISTF somente autoriza a instauração de Inquérito pelo Presidente se o investigado for “autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição”. Isso se refere àquelas pessoas que detém foro por prerrogativa de função e cujo processo e julgamento é originário do STF.


Retornando à Portaria GP 69/19, fato é que em momento algum é indicada uma única autoridade ou pessoa sob jurisdição do STF como investigada. Em geral, as manifestações a que faz referência a citada Portaria são atribuíveis a indivíduos sem foro de prerrogativa, sequer são autoridades (jornalistas, youtubers, artistas etc.).


Nas buscas determinadas em 29 residências se pode verificar como isso corresponde à realidade. A grande maioria dos envolvidos são meros particulares sem foro por prerrogativa algum, muito menos no STF. Ainda que dentre os investigados nessas buscas constem Deputados Federais, há que questionar se suas manifestações em redes sociais são algo efetivamente ligado ao exercício de suas funções parlamentares ou apenas questões de exposição de posições pessoais em meios de comunicação particulares. Isso porque o próprio STF, ao julgar os limites da prerrogativa de função de Parlamentares Federais, a reduziu aos atos e omissões criminosos perpetrados no exercício e em razão da função (Questão de Ordem – Ação Penal (AP) 937, 03.05.2013). [5]


Em suma, nem os fatos em apuração foram cometidos na sede ou dependência do STF nem os investigados são pessoas com prerrogativa de função na mesma Corte, o que afasta totalmente a legitimidade da instauração levada a efeito pelo Ministro Toffoli, com sustento no artigo 43, “caput” RISTF.


Eventualmente poder-se-ia alegar a imprestabilidade do artigo 43, “caput” RISTF, mas a possibilidade de instauração do respectivo Inquérito, com base no mesmo artigo, em seu § 1º., que diz que “nos demais casos, o Presidente poderá proceder na forma” do artigo 43” ou “requisitar a instauração do inquérito à autoridade competente”, que seria a Polícia Federal.


Em primeiro lugar é preciso ter em consideração que pelo menos se supõe que o STF, guardião da Constituição, por meio de seu Presidente, deva ser o órgão mais cuidadoso com os preceitos constitucionais do devido processo legal e do sistema acusatório. Portanto, ainda que o dispositivo do § 1º., do artigo 43 abra a hipótese de instauração pelo Presidente e andamento pelo Tribunal, seria aconselhável a remessa à Polícia Federal, porque sós assim se otimizam garantias fundamentais constitucionais. Entretanto, não é apenas aconselhável, é impositivo. Isso porque o artigo 43, “caput” RISTF é taxativo ao determinar que esse Inquérito só deverá ser instaurado quando o fato se der na “sede ou dependência” do E. Tribunal.


A leitura conjunta, sistemática do artigo 43 e seu § 1º., indica o seguinte:


a)Se o fato se dá na sede ou em dependência do STF e o infrator é pessoa sujeita à sua jurisdição, então o referido Inquérito deve ser instaurado pelo Presidente. O “caput” é claro ao restringir a ocorrência do fato à “sede ou dependência” do Tribunal, bem como em estabelecer que neste caso, “se” a pessoa for sujeita à jurisdição do STF, o Inquérito será instaurado pelo Presidente.


b)Por outro lado, se o fato se dá na sede ou dependência do STF e o infrator não é pessoa sujeita à sua jurisdição, abrem-se duas hipóteses: a instauração pelo Presidente ou a remessa à Polícia Federal, sendo esta segunda opção a mais coerente com o sistema acusatório.


Mas o fato importante é que basta observar os itens “a” e “b” supra para perceber que um requisito é onipresente. Qual? O de que a ocorrência se dê na sede ou dependência do STF. Sem isso não há jamais legitimação para a instauração de Inquérito pelo Presidente. O que varia é apenas a exigência de que a pessoa investigada seja sujeita à jurisdição do Tribunal, mas, mesmo assim, não o sendo, a sugestiva abertura de opção para remessa à Polícia Federal é eloquente diante da ordem constitucional que abraça o “Sistema Acusatório”, afastando a inquisitorialidade que concentra poderes de investigador, instrutor, acusador e julgador numa mesma pessoa ou órgão. Reitere-se que essa exigência regimental de que o fato se dê no âmbito geográfico do STF está em plena consonância com a natureza do capítulo onde se acha o artigo 43 e seus parágrafos, qual seja, “Da Polícia do Tribunal”, o que está umbilicalmente ligado ao chamado “Poder de Polícia” conferido à jurisdição, o qual não se confunde com “poder de investigação geral” em termos criminais.


No artigo 43, § 2º., RISTF está determinado que o Ministro incumbido da realização do Inquérito, no caso o Ministro Alexandre de Moraes, nomeará como Escrivão um servidor do Tribunal. Isso deixa claro que, nos termos do RISTF, tal Inquérito pode realmente ter andamento na Corte e ser presidido por Ministro (magistrado). Não obstante, há que observar que isso somente ocorre quando o fato se dá na sede ou dependência do Tribunal, conforme já fartamente demonstrado, o que não é o caso do INQ 4781, o qual tem sua instauração eivada por descumprir os limites impostos pelo artigo 43, RISTF.


Acontece que essa notória infração à semântica do dispositivo regimental não é o único vício desse Inquérito ou mesmo outros similares que se pretenda doravante instaurar.


Há infrações muito mais graves ao ordenamento jurídico brasileiro sob o enfoque constitucional e convencional, com violações de garantias como o devido processo legal substancial, o Princípio do Juiz Natural, o Sistema Acusatório e, especialmente, a necessária imparcialidade dos órgãos jurisdicionais. Por isso é imperioso pôr cobro a essa espécie de procedimento nefasto.


É preciso lembrar que o RISTF tem seu início de vigência em 1º.12.1980, portanto antes da promulgação da Constituição Federal de 1988.


A previsão de instauração de Inquérito de ofício por magistrado de qualquer grau não se coaduna com o Sistema Acusatório. Há que perscrutar sobre a recepção ou não desse dispositivo do RISTF (artigo 43) pela nova ordem constitucional que se instala após sua vigência. Parte da doutrina já aponta que o poder requisitório de ofício de Inquérito Policial por parte do Juiz, previsto no artigo 5º., II, CPP já não teria sido recepcionado pela Constituição de 1988 por ferir não somente o Sistema acusatório, mas, principalmente, o Princípio da Imparcialidade do Julgador. É pacífica a doutrina e a jurisprudência em declarar a não recepção do artigo 26, CPP que prevê o chamado “Processo Judicialiforme”, que poderia se iniciar por Portaria da Autoridade Judiciária nos casos de contravenções. Desde a vigência da Constituição de 1988 já não é possível sequer encontrar algum feito Judicialiforme em todo o Brasil. Afinal, em homenagem ao Sistema Acusatório e à imparcialidade do julgador, o titular exclusivo da ação penal é o Ministério Público (artigo 129, I, CF). A partir desse marco não é possível sequer cogitar de um juiz investigador ou acusador. Todos esses dispositivos, inclusive do RISTF têm de obrigatoriamente ser lidos à luz da Constituição Federal. Pretender validar normas como essas é fazer o caminho reverso, que é ler a Constituição Federal à luz da legislação ordinária, virando de ponta – cabeça a hierarquia normativa. E mais, o sistema acusatório e o direito a um julgador imparcial não é somente garantido pela Constituição Federal brasileira, mas por tratados internacionais que versam sobre Direitos Humanos. A pretensão de validade, e pior, de dar concreção a dispositivos como esses é não somente inconstitucional como inconvencional (vide artigo 8, n. 1, da Convenção Americana de Direitos Humanos ou Pacto de São José da Costa Rica). Como pode um julgador, um magistrado que investiga, que decreta medidas restritivas durante a investigação, ser posteriormente imparcial na instrução e julgamento? Não se trata de um vício deste ou daquele magistrado, mas de uma limitação humana.


A essas razões de natureza material indicativas da não recepção do artigo 43 RISTF, vem se somar o fato de que antes da Constituição de 1988 havia autorização para que o STF legislasse sobre matéria processual. Isso é vedado a partir da atual ordem constitucional, constituindo um argumento formal para que também se considere a norma em questão não recepcionada (a atribuição agora é da União – artigo 22, I, CF).


Além disso, o artigo 43 RISTF é absolutamente lacunoso quanto ao procedimento dessa investigação. Simplesmente não há regras, prazos, controles etc. O artigo 43 RISTF é como uma alma penada em busca de um corpo. E aqui lembremos um princípio básico da administração pública e da limitação democrática do Estado: ao agente público somente é dado fazer o que a lei permite e regula, enquanto que ao cidadão é dado fazer tudo que a lei não proíba. Como fazer o que a lei autoriza e regula com base no artigo 43 RISTF, se ele não apresenta um procedimento? Não existe o que a doutrina tem usado chamar de “tipicidade processual” para qualquer procedimento que venha a ser adotado. E não se diga que podem ser usadas as regras do Inquérito Policial previstas no CPP, pois que de Inquérito Policial não se trata, sendo inviável qualquer analogia. Ao que se saiba a investigação é realizada à margem de qualquer controle externo e até mesmo interno e, mais grave, à revelia do Ministério Público, que é o titular de futura projetada ação penal. Aliás, a então Procuradora Geral da República, Raquel Dodge se manifestou pelo arquivamento do feito, o que não foi respeitado. E mais, a procuradora se manifestou de forma conclusiva pela imprestabilidade de todos os atos, provas e indícios coletados no feito em questão, o que demonstra que o titular da ação penal rechaça os elementos colhidos pelo judiciário de forma ilícita. Afirmou “in verbis” Dodge: “nenhum elemento de convicção ou prova de natureza cautelar produzida será considerada pelo titular da ação penal ao formar sua opinio delicti. Também como consequência do arquivamento, todas as decisões proferidas estão automaticamente prejudicadas”. [6] O atual Procurador Geral da República, Augusto Aras, se manifestou na ADPF 572 também contrário ao prosseguimento desse malfadado Inquérito, propondo pelo menos sua suspensão até o julgamento definitivo da ADPF em questão. [7] É visível que o Ministério Público é infenso a essa investigação levada a termo em gritante contradição com a Constituição Federal e Tratados Internacionais, mas incrivelmente se segue desrespeitando dispositivos como o artigo 129, I, CF; o artigo 8º., 1 do Pacto de São José da Costa Rica dentre outros cuja citação nominal tornaria este texto impalatável dada sua abundância.


Observe-se que a promoção de arquivamento operada pela então Procuradora da República, na qualidade de titular privativa da ação penal pública, vincula o Judiciário. No caso da Procuradora sequer é possível invocar o artigo 28, CPP, em que o juiz discorda do pedido de arquivamento, isso porque a Procuradora já era a autoridade máxima do MPF. Não há mais a quem recorrer, sua posição deve ser simplesmente acatada pelo Judiciário, o qual não detém legitimidade para prosseguir e muito menos para promover eventual processo criminal na qualidade de acusador. Se isso ocorrer, aí então estaremos realmente diante de algo vindo de algum “multiverso” jurídico desconhecido, como já mencionado, uma medonha obra de “ficção científica jurídica”. Isso ainda sem considerar que a Lei 13.964/19 (Lei Anticrime) alterou completamente a sistemática de arquivamento de investigações, tornando a atribuição privativa do próprio Ministério Público, mediante controle interno. A nova configuração do procedimento de arquivamento afasta ainda mais o juízo dessa questão e só não está vigorando atualmente porque também houve suspensão, não por alegação de algum vício, mas apenas para que o Ministério Público (Federal e Estadual) possa ter um tempo para se organizar e colocar em prática a nova sistemática. [8] Anote-se que o próprio STF vem decidindo que em casos de atribuição originária da Procuradoria Geral da República, outro caminho não resta, em caso de promoção de arquivamento, a não ser acatar a manifestação ministerial. Afinal, para onde se devolveria a análise do cabimento ou não do arquivamento, para a própria Procuradoria Geral da República que já se manifestou conclusivamente? [9]


Na Justiça Estadual ainda seria possível que diante da decisão do Procurador Geral de Justiça em casos de competência originária, se manejasse recurso ao Colégio de Procuradores de Justiça, nos termos do artigo 12, XI, da Lei 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, que organiza o Ministério Público dos Estados). Mas, no caso da Justiça Federal (que é o que ocorre no caso em estudo), a Lei Complementar 75/93 (que organiza o Ministério Público da União) não prevê recurso similar, sendo a palavra do Procurador Geral da República terminativa.


Retomando a questão material fato é que também a legislação ordinária brasileira afasta a figura do juiz inquisidor ou investigador, praticando atos de ofício na fase pré – processual. O artigo 282, § 2º., CPP, ainda com a redação conferida pela Lei 12.403/11 já veda a determinação de cautelares processuais penais de ofício pelo juiz na fase investigatória. Atualmente, a Lei 13.964/19, conhecida como “Lei Anticrime”, altera e restringe ainda mais a atuação do magistrado na determinação de cautelares, vedando-lhe o agir de ofício até mesmo na fase processual, incrementando o Princípio da Inércia Judicial (Artigo 3º. – A, CPP, nova redação da Lei 13.964/19, em suspensão por decisão do Ministro Luiz Fux). [10] Esses ajustes da legislação ordinária processual penal são reflexos da mansa e pacífica dogmática que pugna pela imparcialidade e inércia do julgador, como meios de máxima realização da garantia do devido processo legal.


O próprio STF já deixou claro que o magistrado não pode fazer as vezes de investigador, por violar, esse tipo de conduta, a sua imparcialidade, exigida em um devido processo legal sob a sistemática acusatória, em contraposição a um processo de natureza inquisitorial. Na ADI 1570, dispositivo da antiga Lei do Crime Organizado, Lei 9.034/95 (artigo 3º.), hoje revogada pela Lei 12.850/13, foi considerado inconstitucional exatamente porque conferia poderes investigatórios ao juiz.[11]


Outro vício que decorre da própria dicção do artigo 43 RISTF (deixando de lado a sua não recepção pela CF, conforme já demonstrado) está na designação de um Ministro para conduzir as investigações como um ato decisionista ou voluntário do Presidente do Tribunal. No caso o Ministro Presidente Toffoli designou diretamente o Ministro Alexandre de Moraes. A atribuição da investigação não se deu por sorteio ou distribuição e, nesse passo, fere o Princípio do Juiz Natural. O cidadão deve contar com a garantia de ser julgado ou, no caso, “ad argumentandum tantum”, investigado, por um juiz previamente designado de forma objetiva por um procedimento no qual a distribuição é muito importante. A distribuição é um critério objetivo de estabelecimento de atribuição e competência, que afasta a perigosa subjetividade de uma designação arbitrária que tanto pode ser feita com o fito de prejudicar como de beneficiar o réu ou investigado. Essa garantia é de tal importância num Estado Democrático Constitucional de Direito que hoje já se fala também na doutrina de um Promotor Natural e de um Delegado Natural (este último com base na Lei Federal 12.830/06 – artigo 1º., § 4º.). Não importa aqui se o Ministro Alexandre de Moraes é um jurista competente, um magistrado probo, se está ou não agindo de forma escorreita na prática de seus atos. O Princípio do Juiz Natural é uma garantia inafastável do cidadão, não havendo margem para discricionariedade na indicação do magistrado que atuará num caso concreto (inteligência do artigo 5º., XXXVII e LIII, CF).


E nesse contexto salta aos olhos outro vício de falta de fundamentação na Portaria GP 69/19. Não existe nenhuma justificativa para que nesse ato o Ministro Presidente Dias Toffoli tenha designado o Ministro Alexandre de Moraes para a condução das investigações. A designação é feita na forma de um ato discricionário (que não é nem pode ser), sem exposição de qualquer fundamento. Há apenas uma indicação pura e simples. Fica em aberto a questão de quais foram os motivos, critérios ou razões para que o escolhido, dentre tantos outros Ministros capazes, fosse exatamente o Ministro Alexandre de Moraes. Não se pretende insinuar aqui alguma manobra sórdida, mas apenas deixar claro que a Portaria em estudo peca totalmente no que diz respeito a qualquer espécie de fundamentação.


Novamente deixando de lado o fato da não recepção do artigo 43 RISTF pela atual Constituição, também vale salientar que o STF não seria competente para sequer o processo e julgamento de casos em que seus Ministros são “vítimas” e não “autores” de supostas infrações penais. A competência do STF para julgar seus Ministros é estabelecida no artigo 102, I, “b”, CF, mas somente quando eles figuram como “sujeitos ativos” de crimes e não como “vítimas” ou “sujeitos passivos”. De acordo com a Portaria da lavra do Ministro Dias Toffoli, tratar-se-iam de casos em que os Ministros e até seus familiares seriam “vítimas” de eventuais infrações penais. Isso não confere ao STF qualquer competência para atuar. A competência, considerando interesse da União e envolvimento de funcionários públicos federais, seria da Justiça Federal comum de primeiro grau, nos exatos termos do artigo 109, IV, CF. Esse é mais um argumento de natureza formal ou processual que indica que o caso deveria ser enviado para investigação pela Polícia Federal e posterior avaliação pelo Ministério Público Federal de primeira instância e, se o caso, ulterior processo penal perante a Justiça Federal de primeiro grau, nunca perante o STF. Apenas haveria espaço para atuação do STF, mesmo assim na fase processual, acaso algum futuro acusado fosse pessoa com foro por prerrogativa de função, agindo, ainda assim, no exercício e em razão do cargo, nunca por atos de sua vida privada, isso segundo decisão da própria Corte Suprema. Ademais, a Portaria GP 69/19 sequer menciona pessoa com foro por prerrogativa de função, não menciona, aliás, nenhum investigado em particular. E, diga-se de passagem, que a competência constitucional do STF, inclusive quanto aos seus limites, não pode ser alterada sequer por lei ordinária, muito menos por força de um mero Regimento Interno do Tribunal ou, ainda pior, pela vontade de qualquer de seus Ministros. Se alguma alteração for pretendida, esta deve se processar por meio de Emenda Constitucional, o que jamais aconteceu com relação ao fato em análise. [12]


Ainda que se considere que algum deputado federal, por exemplo, tenha sido descoberto posteriormente, tratando-se de feito complexo, envolvendo diversas pessoas, a posição do próprio STF em decisões reiteradas tem sido pela separação dos feitos, permanecendo as pessoas sem prerrogativa na Justiça de primeira instância e sendo aquele(s) dotado(s) de prerrogativa julgado(s) no STF.


Nesse diapasão pode-se afirmar que quaisquer atos determinados e provas colhidas o foram por autoridade desprovida de competência e, portanto, de forma ilegal. As provas assim colhidas não são admissíveis no processo e também maculam eventuais provas derivadas (“fruits of the poisonous tree doctrine”) (artigo 5º., LVI, CF c/c artigo 157 e § 1º., CPP). E não há como aceitar que tal vício seja sanado pela doutrina do chamado “juízo competente aparente”, quando, num primeiro momento, se atua pensando tratar-se do juízo competente e só depois da investigação em andamento se descobre a incompetência. Os vícios materiais apontados já indicam que, desde sempre, o STF não tinha qualquer competência para atuar, afora os vícios formais. Não há como alegar desconhecimento inicial dessa incompetência.


Além disso, é evidente que a Constituição não permitiu que o STF julgasse casos em que seus Ministros fossem vítimas porque isso seria uma tremenda aberração. Como uma vítima poderia ser imparcial num julgamento de seu próprio suposto algoz? Como o Ministro Alexandre de Moraes pode agir com imparcialidade na condução desse Inquérito, sendo, ele próprio, uma das vítimas das supostas condutas criminosas em disquisição? Não se trata de rotular o Ministro com a pecha de parcial, mas de constatar uma limitação humana que há séculos é conhecida das ordenações jurídicas processuais, que impedem que interessados num feito sejam seus condutores e, muito menos, julgadores (v.g. artigo 252, IV, CPP e artigo 144, IV, CPC). Trata-se daquilo que chamaria Nelson Rodrigues, do “óbvio ululante”.


A ciência jurídica tem já a compreensão de que a imparcialidade não se basta com sua faceta “subjetiva”, ou seja, apenas com o fato de que o julgador seja imparcial, conforme seu pensamento, sua atitude interna. É necessário que tenha um comportamento externo, “objetivo”, posto aos olhos públicos que demonstre essa imparcialidade acima de qualquer suspeita. Em resumo, vale para a questão da imparcialidade o que se disse algum dia da “Mulher de César”, “não basta ser honesto, é preciso parecer honesto”.


E não se afirme que os impedimentos e suspeições não podem ser opostos à Autoridade Policial, conforme consta do artigo 107, CPP, mesmo porque ali está inscrito que a oposição não pode se dar, mas que é obrigação da Autoridade Policial “declarar-se suspeita quando ocorrer motivo legal”. Porém, o Ministro Alexandre de Morais não é uma Autoridade Policial e atua decretando, desde o início do feito em questão, buscas, escutas, quebras de sigilo e outras cautelares que contam com reserva de jurisdição. Atua, portanto, como não poderia deixar de ser, como magistrado, sendo-lhe aplicáveis todas as normas relativas a impedimentos e suspeições.


Finalmente cabe apontar um grave problema que surgiria com a eventual ação penal porventura derivada desses fatos.

A problemática desse Inquérito STF 4781 tem sido muito debatida por especialistas jurídicos. Entretanto, um aspecto tem sido deixado de lado. Considerando que o Ministro Dias Toffoli elaborou uma Portaria extremamente lacunosa, não descrevendo autores, condutas e nem mesmo vítimas de ações específicas, acabaram figurando como “sujeitos passivos” absolutamente todos os Ministros do Supremo Tribunal Federal, sem nenhuma exceção. Dessa forma, ainda que haja uma eventual ação penal promovida pelo seu titular, que é o Ministério Público, estariam todos os Ministros do STF impedidos de julgar qualquer questão referente ao caso, já que figuram como vítimas e vítimas não podem ser, ao mesmo tempo, os juízes de um feito.


Em casos e impedimentos pontuais de um ou outro Ministro, não há maiores problemas, mas o impedimento geral de todos eles sequer encontra solução na legislação, na Constituição ou no RISTF. O RISTF estabelece que a suspeição ou impedimento será julgada pelo Presidente do Tribunal, mas o Presidente, no caso, o Ministro Dias Toffoli, nos termos de sua própria Portaria, também seria vítima e, portanto, nem mesmo isso poderia julgar. Acaso ações tenham andamento na Justiça Federal de primeiro grau, se um dia chegarem ao STF via Recurso Extraordinário, não haverá Ministro em condições de proceder ao julgamento, salvo se a demora for longa e o quadro do STF se renovar. Em eventuais casos de competência originária também não terá o STF como proceder ao processo e julgamento porque simplesmente todos os Ministros são impedidos, já que são, conforme a Portaria GP 69/19 arrolados como “sujeitos passivos” das supostas condutas criminais em apuração. E não há previsão de solução jurídica para esse impasse!


A criação de um Tribunal “ad hoc” para julgar tais questões violaria o Princípio do Juiz Natural. Doutra banda, o julgamento pelas próprias vítimas violaria, como já está violando no Inquérito 4781, o Princípio da Imparcialidade do órgão julgador. Nessa situação conflituosa, entende-se que o Juiz Natural existe a serviço da imparcialidade e não esta em razão do Juiz Natural. A relação instrumental se dá entre o Juiz Natural e a imparcialidade, o Juiz Natural serve à imparcialidade e não esta àquele. Assim sendo, o ideal seria a previsão legal da criação de uma espécie de Corte substituta para casos que tais. O problema é que tal previsão não existe.


A inexperiência de ex- advogados, agora magistrados na instauração de um feito investigativo, não delineando o objeto da investigação e nem mesmo as vítimas de cada caso concreto, ocasionou também essa grave consequência. Isso deveria ter sido previsto e, se houve infrações penais de qualquer natureza relacionadas às chamadas “Fake News”, seria de boa cautela individualizar cada caso e determinar a investigação pelo órgão dotado de atribuição. Poderia ser que em alguns casos uns Ministros fossem vítimas e em outros não, de forma que seria viável sua atuação ulterior, afastando-se seletivamente apenas os especificamente impedidos. Mas, a Portaria GP 69/19 em sua abstração e lacunosidade não se presta a esse desiderato, gerando um elefante branco inextricável e insolúvel, ainda que se aceite a hipótese que tal feito possa ter algum destino prático.


Essas são as considerações que se julgaram necessárias a respeito dessa investigação que certamente viola frontalmente o devido processo legal, a fundamentação das decisões e atos, a legalidade, a inércia judicial, o Juiz Natural, o sistema acusatório, a imparcialidade dos magistrados, a inadmissibilidade de provas ilícitas dentre outras garantias constitucionais e convencionais.


Nesse rumo, sendo o STF a última e neste caso, ao menos aparentemente, a única instância imposta, ainda que à míngua de legalidade, talvez o único recurso para a correção seja o apelo aos mecanismos internacionais, dentre eles a Corte Interamericana de Direitos Humanos, passando pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. A não ser que o próprio STF conserte parcialmente a situação com o julgamento da ADPF 572, já que o sistema internacional de proteção aos Direitos Humanos é supletivo, não sendo necessária sua atuação quando os organismos internos dos países solverem os casos com razoabilidade. Diz-se “conserte parcialmente” porque alguém já afirmou que o passado nem mesmo Deus pode mudar, e atos ilícitos já foram perpetrados na instauração e instrução desse Inquérito, causando certamente prejuízos morais e materiais a indivíduos violados em seus direitos e garantias.





NOTAS


[1] MINISTRO Alexandre de Moraes designa equipe de delegados em inquérito para apurar ameaças e fake news. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=406357, acesso em 02.06.2020.


[2] ADPF 572. Disponível em http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5658808, acesso em 02.06.2020.


[3] Indicando a fonte para acesso ao RISTF, validada doravante para todas as suas citações: REGIMENTO Interno do STF. Disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoRegimentoInterno/anexo/RISTF.pdf, acesso em 02.06.2020.


[4] Cf. ADPF 572. Disponível em https://cdn.oantagonista.net/uploads/2019/04/AGU-INQUERITO-TOFFOLI.pdf, acesso em 02.06.2020.


[5] STF conclui julgamento e restringe prerrogativa de foro a parlamentares federais. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=377332, acesso em 02.06.2020.


[6] RAQUEL Dodge arquiva inquérito aberto de ofício pelo Supremo Tribunal Federal. Disponível em http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/raquel-dodge-arquiva-inquerito-aberto-de-oficio-pelo-supremo-tribunal-federal, acesso em 02.06.2020.


[7] ARAS, Augusto. PETIÇÃO ASSEP n. 163489/2020. Disponível em https://www.migalhas.com.br/arquivos/2020/5/4E754E919891A7_suspensaoinquerito.pdf, acesso em 02.06.2020.


[8] ADI 6298 DF. Medida Cautelar concedida pelo Ministro Luiz Fux. Disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI6298.pdf, acesso em 02.06.2020.


[9] São decisões apenas exemplificativas do STF neste sentido: Inquérito 510. Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=80580, acesso em 02.06.2020. Inquérito 719-6. Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=80760, acesso em 02.06.2020.


[10] ADIs 6298, 6299, 6300 e 6305, medida cautelar. Disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI6298.pdf, acesso em 02.06.2020.


[11] SUPREMO Tribunal Federal ADI 1570. Disponível em https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/769462/acao-direta-de-inconstitucionalidade-adi-1570-df, acesso em 02.06.2020.


[12] Esse entendimento é do próprio STF e foi exposto no julgamento da ADI 2707, quando se tentou criar competência por prerrogativa de função mediante alteração do Código de Processo Penal (artigo 84, §§ 1º. e 2º., CPP). NOTÍCIAS do STF. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=65589&caixaBusca=N, acesso em 02.06.2020.



Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia Aposentado, Parecerista e Consultor Jurídico, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia, Medicina Legal e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.

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