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  • Fernando Galvão

Legitima defesa por agente de segurança pública

Em razão da Lei n. 13.964/2019, conhecida como a Lei do Pacote Anticrime, foi inserido um parágrafo único no art. 25 do Código Penal comum, segundo o qual “observados os requisitos do caput deste artigo, considera-se também em legítima defesa o agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes.”


A disposição contida no referido parágrafo estabelece, em favor do agente de segurança pública, uma justificante especial que, embora relacionada à que é prevista no caput do art. 25, amplia as possibilidades de justificação.


A previsão justificante prevista no Código Penal comum também é aplicável na Justiça Militar. A ilicitude, como expressão da contrariedade do fato com a ordem jurídica, pode ser afastada por causa de justificação prevista na legislação penal comum ou mesmo na legislação civil.


A especificidade da justificante, inicialmente, diz respeito à identificação do sujeito que realiza a conduta a ser justificada. A previsão refere-se exclusivamente ao agente de segurança pública. Por agente de segurança pública se deve entender o funcionário público (art. 327 do CP comum) que integre qualquer das instituições mencionadas nos incisos do art. 144 da Constituição da República. Desta forma, a previsão se aplica unicamente aos integrantes da polícia federal; polícia rodoviária federal; polícia ferroviária federal; polícias civis; polícias militares e corpos de bombeiros militares, bem como das polícias penais federal, estaduais e distrital.


A justificante especial faz expressa referência aos requisitos constantes do caput do art. 25 do Código Penal Comum, que são os mesmos previstos no art. 44 do Código Penal Militar. Assim, para a justificação da conduta do agente de segurança pública é necessário que: a) a conduta típica se contraponha a uma agressão; b) a agressão seja injusta; c) essa agressão seja atual ou iminente; d) a agressão seja dirigida a um bem juridicamente protegido; e) a reação seja exercida com a utilização dos meios necessários; f) o uso desses meios seja moderado; e g) o sujeito tenha a intenção de defender o bem jurídico e conheça a injustiça da agressão.


Mas, a previsão constante do parágrafo único do art. 25 do CP amplia as possibilidades de justificação ao referir-se à conduta que “repele agressão ou risco de agressão à vítima mantida refém durante a prática de crimes.”


O dispositivo se refere à uma espécie de agressão, a agressão que é dirigida contra a vitima que já se encontra privada de liberdade, mantida refém durante a prática de crimes. O contexto circunstancial da tomada de refém constitui fundamento para a previsão especial que, no caso de defesa por agentes de segurança pública, amplia as possibilidades de justificação.


A justificante especialmente construída para os agentes de segurança pública pode se caracterizar em duas situações fáticas distintas:


a) conduta do agente de segurança repele agressão que já está acontecendo contra a vítima, que é mantida refém durante a prática de crimes; e

b) conduta do agente de segurança repele o risco de ocorrer uma agressão à vítima, que é mantida refém durante a prática de crimes,


Na primeira hipótese, a vitima é mantida refém e também está sendo agredida fisicamente. A privação da liberdade e a agressão contra a vitima são atuais, já estão em curso. Esta hipótese não inova em relação à justificante prevista no caput do art. 25 do CP ou no caput do art. 44 do CPM, apenas identifica explicitamente uma de suas muitas possibilidades.


Na segunda hipótese, a vitima é mantida refém e, nesta situação, corre o risco de ser agredida em momento futuro. A privação da liberdade da vitima, por si só, é agressão contra o direito de liberdade e já autoriza a defesa legitima por agentes de segurança pública. A agressão física contra a vitima ainda não ocorreu, mas há o risco de sua ocorrência em momento futuro. O risco de agressão à vitima mantida refém, certamente, inclui a possibilidade da produção de sua morte.


A referência ao risco de agressão, constante do parágrafo único do art. 25 do Código Penal, constitui inovação no ordenamento jurídico penal Na doutrina ainda não há entendimento consolidado sobre o que seja risco de agressão.


Considerando que a primeira hipótese de caracterização da justificante especial diz respeito à conduta que repele agressão atual, pode-se pensar em caracterizar a segunda hipótese diante de uma agressão iminente. No entanto, o risco da agressão não se confunde com a iminência da agressão, que é prevista no caput do art. 25 do CP ou no caput do art. 44 do CPM. O legislador não mencionou a agressão iminente, mas sim o risco de agressão. Considerando o disposto na alínea “b”, do inciso II do art. 11 da Lei Complementar n. 95/98, é correto supor que a agressão iminente e o risco de agressão constituam situações fáticas distintas, pois é vedado ao legislador expressar novamente uma ideia já expressa no texto legal por meio de palavras distintas. Por esta orientação legislativa, palavras distintas na lei identificam objetos/situações distintos/as.


A situação de iminente agressão, prevista no caput do art. 25 do CP e no caput do art. 44 do CPM, se caracteriza por meio da consideração sobre a proximidade temporal de uma agressão certa. A agressão iminente é a agressão que está prestes a acontecer e, com base na previsão fundamental da legitima defesa, autoriza a defesa por agente de segurança pública. O risco de agressão, portanto, não diz respeito a proximidade temporal da ocorrência de uma agressão certa.


Na linguagem ordinária, a expressão risco de agressão pode significar a situação fática na qual exista maior possibilidade (probabilidade) da ocorrência da agressão. No contexto das disposições do Direito Penal, o aumento das chances de ocorrer um determinado evento é denominado de perigo. E o parágrafo único do art. 25 do CP não mencionou o perigo de agressão, mas sim o risco de agressão. Novamente, a alínea “b”, do inciso II do art. 11 da Lei Complementar n. 95/98 nos indica que o legislador não poderia usar as palavras risco e perigo como sinônimas.


Na linguagem técnica, a Norma ABNT NBR ISO 31000:2009, que trata dos princípios e diretrizes para a gestão de riscos nas organizações, no item 2.1, definiu “risco” como sendo o “efeito da incerteza nos objetivos”. Como a referida norma se aplica a “qualquer tipo de risco”, inclusive o que é produzido por pessoas físicas, a definição de risco contida na norma é melhor esclarecida por meio de cinco notas técnicas, segundo as quais: 1) um efeito é um desvio em relação ao esperado – positivo e/ou negativo; 2) os objetivos podem ter diferentes aspectos (tais como metas financeiras, de saúde e segurança e ambientais) e podem aplicar–se em diferentes níveis (tais como estratégico, em toda a organização, de projeto, de produto e de processo); 3) o risco é muitas vezes caracterizado pela referência aos eventos potenciais e às consequências, ou uma combinação destes; 4) o risco é muitas vezes expresso em termos de uma combinação de consequências de um evento (incluindo mudanças nas circunstâncias) e a probabilidade de ocorrência associada; e 5) a incerteza é o estado, mesmo que parcial, da deficiência das informações relacionadas a um evento, sua compreensão, seu conhecimento, sua consequência ou sua probabilidade.


A noção de risco estabelecida pela ISO 31000 é muito abrangente e, para os fins de caracterização do risco de agressão previsto na justificante especial, não é possível aplicar todas as diretrizes estabelecidas em suas notas técnicas. No entanto, tais diretrizes ajudam a construir uma noção básica de risco de agressão.


No contexto da situação fática justificante, a agressão à vitima mantida refém deve ser considerada um evento possível (esperado), muito embora incerto. A incerteza que existe no risco de agressão diz respeito à conduta futura do tomador de refém. No risco de agressão, a agressão é possível, mas, não se pode ter certeza sobre a sua ocorrência futura. Esse aspecto diferencia a situação de iminente agressão da situação de risco de agressão. Na iminente agressão, a agressão é certa. No risco de agressão, a agressão é incerta. Poderá ocorrer concretamente, ou não. A previsão normativa autoriza a intervenção do agente de segurança diante do quadro de incerteza sobre a conduta futura do tomador de refém. A justificante especial expressa opção legislativa por preservar a vitima.


No entanto, o risco de agressão não pode se caracterizar diante de uma possibilidade distante de agressão. Deve fundamentar-se minimamente em elementos fáticos que possam lastrear a possibilidade da ocorrência da agressão. A possibilidade da ocorrência da agressão e de sua intensidade devem ser consideradas juntamente com as possíveis mudanças nas circunstâncias de fato, inclusive as mudanças produzidas pela própria intervenção dos agentes de segurança pública. Também devem ser consideradas as possíveis consequências, incluindo a morte da vitima. O exame do contexto fático exige preparo e experiência. A leitura equivocada do cenário pode precipitar ou postergar a intervenção dos agentes de segurança, com desdobramentos lesivos ilícitos.


Diante de cenário em que a possibilidade de determinada agressão à vitima refém é concretamente identificada, considerada em sua natureza e intensidade, é autorizada a intervenção do agente de segurança que usar moderadamente dos meios necessários para afastar o risco de agressão. Para afastar o risco da ocorrência de determinada agressão, não pode o agente de segurança cometer excessos. Os resultados lesivos produzidos em excesso de defesa são ilícitos, conforme os termos do parágrafo único do art. 45 do Código Penal militar.


Fernando A. N. Galvão da Rocha é Juiz Civil do Tribunal de Justiça Militar do Estado de Minas Gerais e Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.



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