No dia 23 de janeiro de 2020, entrarão em vigor as normas penais e processuais penais introduzidas e alteradas pela Lei 13.964/2019, decorrentes de projeto de tortuosa tramitação e problemática concepção. Haverá impactos significativos no cotidiano forense, e também na metodologia e instrumentos de administração da justiça criminal, além dos reflexos próprios da sucessão de leis penais e processuais no tempo. Questão emblemática é que se projeta a partir da incorporação, no sistema pré-processual penal, da figura do Juiz de Garantias, inclusive para se definir a situação dos processos em curso, com instruções iniciadas ou pendentes de julgamento, sob jurisdição de magistrados que, antes da lei nova, tenham deliberado em matéria agora submetida à competência restrita do Juiz de Garantias, mercê de irregularidade passível da sanção de nulidade ora prevista no art. 3º-D, do CPP.
De início, já registramos nosso entendimento, à luz do texto que inaugurou o novel instituto, de que o exercício da função de garantia, na fase investigativa que incorpora inclusive o juízo de recebimento/rejeição da denúncia, afasta o magistrado que controla a legalidade da investigação do juízo de mérito, próprio da instrução; mas o juízo da instrução, competente para o julgamento da causa, não está impedido de conhecer o objeto da investigação legítima guarnecida pelo juiz de garantias que lhe antecedeu, regularmente, no eventual controle da fase investigativa. Essa questão é fundamental para a correta compreensão do modelo brasileiro, sob pena de incorrer-se em erro, como aparenta acontecer já com interpretações prematuras da reforma. Tome-se, como exemplo, a interpretação equivocada de Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa, em recente artigo publicado no Conjur (Entenda o impacto do Juiz de Garantias no Processo Penal):
“Na fase de investigação e recebimento da acusação, atuará o Juiz das Garantias, enquanto na fase de julgamento, o Juiz de Julgamento não receberá, nem se contaminará pelo produzido na fase anterior, já que somente as provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas e antecipação de provas serão encaminhados. O restante deverá permanecer acautelado no Juiz das Garantias (CPP, art. 3-B, § 3º), com acesso às partes (CPP, art. 3-B, §4º), acabando-se com o uso manipulado de declarações da fase de investigação, porque só vale o produzido oralmente perante o Juiz de Julgamento. Trata-se de um pleito por nós defendido há décadas – da exclusão física dos autos do inquérito – que finalmente é recepcionada. Só assim estará assegurada a distinção entre atos de investigação e atos de prova e, por consequência, efetivado o direito de ser julgado com base em ´prova´, produzida em contraditório judicial.”
No modelo brasileiro por inaugurar, não temos um juízo de instrução preliminar, nem a figura de um juiz presidente da investigação. Ao contrário, o texto faz referência expressa à estrutura acusatória (art. 3º-A, do CPP) da persecução penal e aproxima a polícia investigativa do titular da ação penal, abolindo o controle anômalo do direcionamento da atividade investigativa, inclusive quanto ao controle de arquivamento do inquérito. Ao Juiz de Garantia se direcionam duas perspectivas: a) controle de legalidade da investigação criminal; b) salvaguarda de direitos individuais alçados à condição de inviolabilidades constitucionais, que só admitam restrição pela via da reserva de jurisdição. O primeiro é realizado de maneira difusa, quando da análise da denúncia; o segundo, nos limites da competência legal, ou seja, nos casos dos incisos do art. 3º-B.
Deve-se observar que o inciso VIII do art. 3º-B do CPP limita o controle da dilação de prazo da investigação aos inquéritos policiais “estando o investigado preso”, havendo, portanto, a implementação da tramitação direta de inquéritos policiais nos casos de investigado solto, e até mesmo nos casos de investigado preso em que a investigação prescinda de dilação de prazo, porque concluída no prazo legal. Tanto assim, que as decisões do Juiz de Garantias não vinculam o Juiz da instrução. Ou seja, e uma vez mais, o Juiz de Garantias “é só” Juiz de Garantias e, uma vez o sendo, não será juiz da causa. Já o Juiz da instrução tem jurisdição e, portanto, cognição, plena, apenas retirado o contato com a investigação no momento em que ocorre, para impedir que assuma a função de parte (marca típica da estrutura acusatória). A análise sistemática dos parágrafos 2º e 3º do art. 3º-C, em confronto com o art. 3º-B, em especial o inciso VIII, deixa em evidência a exegese de que os autos que ficarão acautelados na secretaria do juízo das garantias não incluem os autos de inquérito policial propriamente dito, ou seja, limitam-se à autuação dos pedidos de reserva de jurisdição que se incluem nas situações típicas de sua competência, quais sejam, aqueles descritos nos incisos do art. 3º-B. Fosse vontade da lei restringir ao Juiz da instrução o acesso ao conteúdo do inquérito, teria feito referência expressa ao inquérito, com fez no referido inciso VIII.
Portanto, a nosso sentir, está instituída a tramitação direta de inquéritos policiais[1] entre polícia e Ministério Público, ressalvada a necessidade de apreciação judicial de atos reservados à jurisdição na fase investigatória criminal, que não possam ser realizados sem autorização judicial, e de pedidos de dilação de prazo de investigação envolvendo investigado preso. Os autos do processo enviado ao juiz da instrução e julgamento, conforme referência do art. 3º-C, par. 3º, serão basicamente os autos do inquérito policial, que serve de justa causa à denúncia que o inaugura, acrescidos (em apenso) dos documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação delas, que tiverem sido produzidas pela atividade subsidiada pelo juízo das garantias.
Deve-se ressaltar, ainda, que os arts. 3º-C, par. 1º, e 3º-D, ambos do CPP, deixam claro que o juiz de garantias, que fiscalizar a legalidade da investigação (no velamento das garantias fundamentais do investigado), ficará impedido de funcionar no processo a partir do recebimento da denúncia; mas em nenhum lugar do texto (repito, nenhum!) há restrição para que o juiz da instrução conheça do resultado de investigação de que não participou como garantista. Logo, terá acesso irrestrito, por exemplo, às declarações de testemunhas ouvidas no inquérito policial pela autoridade policial (ou no Procedimento Investigatório Criminal presidido pelo Ministério Público).
Como outrora anunciado, outra celeuma reside na sucessão de leis no tempo, quanto ao impedimento agora instituído nesse art. 3º-D, para o magistrado que, interveniente na investigação como garantista, agora presida processos que se encontrem em andamento: a) com denúncia recebida, mas instrução não iniciada; b) iniciada e não concluída a instrução; c) concluída a instrução, porém conclusos para julgamento (leia-se, sentença).
Trata-se propriamente de lei processual penal, que institui nova hipótese de impedimento, situação que, para além do aspecto formal, projeta efeitos no campo da imparcialidade da jurisdição. Portanto, a rigor, cuida-se de aspecto procedimental que, não observado, enseja a sanção de nulidade independentemente da demonstração de prejuízo.
A lei nova institui competências específicas para o juiz na fase da investigação criminal e sua eventual participação na/o investigação/inquérito policial (nos termos dos arts. 4º e 5º, do CPP), com ato efetivo de competência das garantias, gera impedimento para “funcionar no processo”. A lei processual tem eficácia plena, posto que mediata, a partir de sua vigência em 23 de janeiro de 2020. Portanto, caberá ao juiz sanear os processos em andamento sob sua competência (verificando aqueles em que tenha proferido qualquer decisão de competência, agora, do juiz de garantias), cuja instrução não tenha sido iniciada, remetendo o feito ao seu substituto legal (ou para redistribuição), de acordo com as normas de organização judiciária. O mesmo raciocínio se aplica aos processos cuja instrução tenha sido iniciada, porém não concluída, mantendo-se a validade dos atos até então praticados, tendo em vista que, quando efetivados, realizaram-se e aperfeiçoaram-se de acordo com a lei processual em vigor na data (tempus regit actum). Quanto aos processos com instrução concluída, conclusos para sentença, não há que se falar em impedimento, porque a sentença decorrerá de outro princípio fundamental que orienta o processo penal brasileiro, qual seja, a identidade física do Juiz. Logo, encerrada a instrução sob a presidência que funcionou validamente no processo, deverá o juiz natural, por prorrogação natural de sua competência, prolatar o julgamento, não sendo possível levantar-se, em seu desfavor, impedimento por norma processual penal que não se encontrava em vigor quando do término da instrução. Isso porque processo é, basicamente, instrução sob contraditório, encerrada a instrução, compete ao juiz que a presidiu prolatar a sentença.
Note-se, por fim, que o sistema de rodízio previsto no art. 3º-D, parágrafo único, vislumbra a distribuição da competência de garantias na investigação criminal (e não a ampliação de competência para o processo e julgamento penal) para juízes com competência inclusive diversa, situação que deverá suscitar debates no âmbito dos Tribunais Estaduais e, provavelmente, no próprio Conselho Nacional de Justiça. Não se faz referência aqui, por ora, a soluções relativas à tramitação eletrônica de inquéritos policiais, porque ainda fora da realidade da justiça criminal brasileira nos Estados. Há vários outros aspectos problemáticos e desafiantes, todos a merecer a devida atenção, a tempo e modo.
NOTA
[1] Aliás, problema gerado pela lei nova diz respeito ao órgão de revisão para o arquivamento dos inquéritos policiais, existente na estrutura normativa do Ministério Público Federal, mas não nas leis orgânicas dos Ministérios Públicos dos Estados, ressalvada a atribuição implícita do Procurador-Geral de Justiça para nomear órgão de execução para apresentação de denúncia como decorrência da invalidação do arquivamento.
Rodrigo Iennaco é Promotor de Justiça no Estado de Minas Gerais e Doutor pela Faculdade de Direito da UFMG.