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  • Fernando Galvão

O crime militar de feminicídio e seus problemas conceituais

Após a entrada em vigor da Lei 13.491/17, que alterou a redação do inciso II do art. 9º do Código Penal Militar, é possível caracterizar um crime militar de feminicídio. A previsão legal, que deveria constar na denúncia do Ministério Público é o inciso VI do parágrafo 2º do art. 121 do Código Penal combinado com alínea “x” (qualquer das alíneas) do inciso II do art. 9º do Código Penal Militar.


A possibilidade de caracterizar um crime militar de feminicídio trouxe para o universo militar os problemas conceituais existentes no âmbito da criminalidade comum e desafia os operadores do direito militar a encontrar a forma mais adequada de aplicação das disposições legais.


Conforme dispõe o inciso VI do parágrafo 2º do art. 121 do Código Penal, constitui homicídio qualificado o crime cometido contra a mulher por razões da condição de seu sexo feminino. A figura qualificada expressa o denominado feminicídio, que foi introduzido em nosso estatuto repressivo pela Lei n. 13.104, de 09 de março de 2015. A tipificação do feminicídio foi sugerida pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a Mulher, que apurou números elevadíssimos de homicídios praticados contra mulheres, muitas das vezes ocorridos em suas próprias casas, por maridos, companheiros ou ex-companheiros. Cabe registrar ainda que a criminalização do feminicídio atende aos deveres impostos ao Brasil pela Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), adotada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos, em 06 de junho de 1994, ratificada pelo Brasil em 27 de novembro de 1995 e promulgada pelo Decreto n. 1.973, de 01 de agosto de 1996.


O elemento qualificador do homicídio é a motivação especial de matar a vitima “por razões da condição de seu sexo feminino”. A redação típica não é nada feliz. De início, não parece possível estabelecer relação entre a condição do sexo feminino da vitima com qualquer razão (argumento racional) para a realização de sua morte. A condição de sexo feminino não pode explicar racionalmente a morte de qualquer pessoa. Por isso, deve-se entender que as “razões” mencionadas no tipo incriminador dizem respeito apenas aos motivos para a realização do crime. E pode-se perceber facilmente que os motivos que orientam a prática do feminicídio nada mais são do que espécies de motivo torpe, que já qualifica o homicídio, conforme disposto no inciso I do § 2º do art. 121 do CP.


A referência à motivação relacionada à condição do sexo feminino da vitima, por sua vez, não deixa claro o sentido da orientação subjetiva daquele que realiza o crime. Para superar a dificuldade, a Lei n. 13.104/15 também inseriu o parágrafo 2º-A no art. 121 do Código Penal, esclarecendo que “considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I - violência doméstica e familiar; II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher.” Com esta disposição explicativa, que pode ser considerada uma interpretação autentica para o elemento qualificador do feminicídio, os problemas conceituais podem ser percebidos.


Violência doméstica e familiar. O primeiro inciso, que se refere à situação de violência doméstica e familiar, não revela de maneira clara o seu conteúdo normativo e o operador do direito pode ser levado a crer que a interpretação legislativa desviou-se do objeto de interpretação, que consiste na motivação do crime (por razões da condição do sexo feminino da vitima), para centrar-se no contexto em que a violência se verifica. Não é o que ocorre. Para a adequada compreensão da questão é necessário considerar que a situação de violência doméstica e familiar encontra definição na Lei n. 11.340/06 – conhecida como Lei Maria da Penha.


Nos termos do art. 5º da referida lei e para os fins de caracterização do feminicídio, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.


Pode-se constatar que a definição de violência doméstica e familiar contra a mulher tem como característica essencial ser uma violência “baseada no gênero”. As referências ao âmbito da unidade doméstica, ao âmbito da família e à relação íntima de afeto não definem a essência da violência que a lei especifica, servindo apenas para dar-lhe contexto. Em essência, a lei exige que a violência se caracterize por ser uma violência “baseada no gênero”. Se a violência não for baseada no gênero, não há possibilidade jurídica de caracterizar violência doméstica e familiar contra a mulher. Mas, o que significa violência “baseada no gênero”?


Gênero é um conceito que foi cunhado a partir do movimento feminista e permite refletir sobre as desigualdades existentes entre homens e mulheres na sociedade e na cultura ocidental. A noção de gênero permitiu refletir sobre como a relação entre natureza e cultura constrói justificativas para as desigualdades sociais existentes entre homens e mulheres, questionando o dogma de que existe uma relação direta entre as diferenças biológicas e as diferenças sociais que se estabelecem entre homens e mulheres. Com efeito, os argumentos baseados nas características biológicas, na gestação e na maternidade já não conseguem explicar de maneira satisfatória a desvalorização do papel das mulheres na sociedade e a luta do movimento feminista ainda se mostra necessária nos dias atuais.


Os argumentos relacionados ao gênero, por sua vez, sustentam uma nova forma de compreender a relação entre natureza e cultura, de modo a reconhecer que as definições de masculino e feminino (o gênero) decorrem da vida em sociedade e não das condições biológicas. Gênero, nestes termos, constitui um instrumento de classificação cultural que usamos para ordenar nosso pensamento sobre o que é ser homem e o que é ser mulher, bem como sobre as diversas dimensões da vida em sociedade. As classificações culturais que se estabelecem pelo prisma do gênero são muito fortes porque podem ordenar nosso pensamento sobre a natureza, a sociedade, as instituições e os modos de ser das pessoas de maneira muito abrangente. No que diz respeito às diferenças entre homens e mulheres, a noção de gênero delimita a nossa forma de pensar sobre qualidades, espaços de atuação, atitudes e poderes a serem distribuídos. O conceito de gênero orienta o pensamento ocidental a fazer classificações sociais como: trabalho de homem e trabalho de mulher, horário de homem estar na rua e horário de mulher estar na rua, bem como comportamento sexual de homem e comportamento sexual de mulher. A reflexão sobre as desigualdades de gênero entre homens e mulheres não desconsidera a existência de desigualdades entre pessoas do mesmo gênero, como por exemplo, as desigualdades promovidas pela classe econômico-social e pela raça.


Importa notar que a classificação proposta pela noção de gênero ressalta a tendência de se considerar a pessoa classificada culturalmente pelo gênero masculino como sendo superior, mais forte e mais poderosa. A pessoa classificada pelo gênero feminino, por outro lado, tende a ser considerada como menor, mais fraca e com menos poder. Por isso, o feminino deve receber proteção e ficar submisso ao masculino. A incriminação especial para o homicídio praticado “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino” acaba por reafirma esta compreensão de que a mulher encontra-se em posição de fragilidade e precisa de especial proteção. Contudo, para que o crime de homicídio se transforme em feminicídio não é necessário que a vitima (mulher) se encontre em situação de inferioridade em relação ao criminoso (que pode ser homem ou mulher, pode assumir identidade social masculina ou feminina). A situação de inferioridade da vitima não é uma exigência típica. Apesar da má redação do tipo, que se refere às características biológicas da condição do sexo, o conteúdo material do tipo incriminador exige que o crime tenha sido praticado com base no gênero, na identificação de gênero assumida pela vitima, não em sua situação de fragilidade.


O art. 5º da Lei n. 11.340/06 define o que se deva entender por violência doméstica e familiar contra a mulher, caracterizando-a essencialmente por ser uma violência “baseada no gênero”. Violência baseada no gênero é a violência dirigida a uma pessoa por causa da identidade de gênero socialmente assumida. Nos termos da disposição legal, a violência doméstica e familiar tem sempre por vitima a mulher. Mas, como não há restrição legal para o gênero assumido pela vitima, a identidade social assumida pela mulher pode ser feminina ou masculina. Como a noção de gênero implica liberdade em relação aos condicionamentos biológicos (o masculino e o feminino decorrem de identificação cultural), importa considerar que a identidade de gênero de uma pessoa pode não coincidir com suas características biológicas. Para os fins da incriminação em exame, é possível que a vitima apresente corpo biologicamente feminino e por isso deva ser considerada mulher, mas tenha assumido identidade de gênero masculina. O inciso VI do parágrafo 2º do art. 121 do Código Penal expressamente exige que no feminicídio a vitima seja mulher (contra a mulher por razões da condição de sexo feminino), mas o dispositivo que explica o que se deva entender por violência doméstica e familiar contra a mulher exige que a violência seja “baseada no gênero”. Há uma clara dissonância entre os parâmetros legalmente relacionados. A pessoa biologicamente identificada como mulher (sexo feminino) pode ser culturalmente identificada pelo gênero feminino ou pelo gênero masculino, sendo que a proteção penal contra a violência se apresenta independentemente da identificação cultural e restringe-se à pessoa do sexo feminino.


Também cabe notar que o parágrafo único do art. 5º da Lei n. 11.340/06 esclarece que as relações pessoais que conferem contexto à violência doméstica e familiar contra a mulher independem de orientação sexual. Nestes termos, a caracterização da violência praticada contra a mulher prescinde de que a mesma tenha orientação sexual determinada conforme as suas características biológicas. A proteção legal contra a violência incide independentemente da orientação sexual da mulher. A proteção deferida à mulher que não se orienta sexualmente por suas condicionantes biológicas evidencia a complexidade da noção de gênero, que transcende as noções de sexualidade.


A noção de gênero, acolhida expressamente no caput do art. 5º da Lei n. 11.340/06, possui amplitude que supera os limites das condições biológicas e da orientação sexual das pessoas. Por isso, o inciso VI do parágrafo 2º do art. 121 do Código Penal não deveria descrever o feminicídio como um crime praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino. A questão é mais complexa e se a finalidade da alteração legislativa foi proteger a pessoa que assume a identidade social feminina, a redação do inciso não é adequada. Por outro lado, se a morte decorrente de violência baseada em gênero deve caracterizar o crime de homicídio qualificado e, no momento, é necessária uma ação afirmativa para ressaltar a questão, melhor teria sido alterar o inciso I do art. 121 do CP. Seria o caso de explicitar que o homicídio é qualificado quando cometido mediante paga, promessa de recompensa, por motivo de gênero ou outro motivo torpe.


Para a compreensão do conteúdo material do tipo incriminador em exame é necessário considerar o alcance do dispositivo explicativo constante do parágrafo 2º-A no art. 121 do Código Penal, que remete a questão à definição contida no art. 5º da Lei n. 11.340/06.


Menosprezo ou discriminação à condição de mulher. O segundo inciso, que se refere ao menosprezo ou discriminação à condição de mulher, aparentemente mantém-se no paradigma de compreensão biológico. No entanto, o dispositivo não esclarece se a condição de mulher que motiva o menosprezo ou a discriminação é a condição biológica ou a condição social. A imprecisão conceitual permite a caracterização do crime em qualquer dos casos. O elemento qualificador do homicídio também é a motivação do crime. Menosprezar significa dar menor valor, ter menor apreço, de modo que o tipo incriminador do feminicídio se caracteriza diante da conduta do sujeito que mata a mulher por considerar que sua condição de mulher possui menor valor. Discriminar, por sua vez, significa distinguir, destacar, para tratar de forma diferente. Nos termos da incriminação do feminicídio, discriminar a condição de mulher da vitima significa matá-la por distingui-la de modo inferior, como pessoa inferior. Tais considerações somente adquirem sentido quando contextualizadas no ambiente social, em que a mulher é menosprezada ou distinguida em razão de seu gênero feminino. Assim, as duas hipóteses previstas no inciso II, do parágrafo 2º-A, do art. 121 do Código Penal convergem para o mesmo significado de desprezo para com a condição social da vitima.


O Projeto de Lei que pretende instituir um novo Código Penal (PLS 236), nos termos do substitutivo apresentado pelo Senador Vital do Rego, resolve parcialmente os problemas advindos da má redação do inciso VI do parágrafo 2º do art. 121 do Código Penal. A proposta qualifica o homicídio quando cometido contra a mulher por razões de gênero, o que supera os problemas trazidos pela fórmula biológica acolhida pelo Código em vigor (contra a mulher por razões da condição de seu sexo feminino).


No entanto, o projeto propõe que o § 2º do art. 121 esclareça que considera-se que há razões de gênero em qualquer das seguintes circunstâncias:
I – violência doméstica e familiar, nos termos da legislação específica;
II – violência sexual; III – mutilação ou desfiguração da vítima;
IV – emprego de tortura ou de qualquer meio cruel ou degradante.


Certamente, em alguns casos os meios de execução do homicídio podem revelar a motivação de quem o realiza. Mas, dizer que sempre que o homicídio for cometido por meio de violência sexual; mutilação ou desfiguração da vítima;
 emprego de tortura ou de qualquer meio cruel ou degradante haverá homicídio por razões de gênero é fazer uma simplificação inaceitável da questão do gênero. Os meios de execução do homicídio cruéis e/ou degradantes, por si só, já qualificam qualquer homicídio e não distinguem a violência de gênero. O avanço que representa a incriminação do feminicídio se deve ao reconhecimento de que, em nossa sociedade, muitas pessoas ainda são vitimas de violência em razão de seu gênero feminino. A relação estabelecida com determinadas formas de execução do crime de homicídio prejudicam a compreensão do que seja a violência de gênero. Muito melhor seria se o projeto se limitasse a esclarecer que considera-se que há razões de gênero quando o crime é praticado por menosprezo ou discriminação ao gênero assumido pela vitima, qualquer que seja o contexto em que se realiza a violência. Mas, este é apenas um dos muitos aspectos da proposta de novo Código Penal que desafiam a nossa atenção.


Fernando A. N Galvão da Rocha é Juiz Civil do Tribunal de Justiça Militar do Estado de Minas Gerais e Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.



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