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  • Jorge Cesar de Assis

O inquérito 4.781 e os crimes contra o STF

Chamou a atenção da comunidade jurídica a notícia de que o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Dias Tóffoli, por meio da Portaria GP nº 69, de 14 de março de 2019, instaurou inquérito para apurar “a existência de notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus calumniandi, diffamandi e injuriandi, que atingem a honorabilidade do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares”, e, as infrações correspondentes em toda a sua dimensão.


Com efeito, sabe-se do resultado desastroso que pode ser ocasionado por uma fake new. “O fácil acesso online ao lucro de anúncios online, o aumento da polarização política e da popularidade das mídias sociais, principalmente a linha do tempo do Facebook, têm implicado na propagação de notícias deste gênero. A quantidade de sites com notícias falsas anonimamente hospedados e a falta de editores conhecidos também vêm crescendo, porque isso torna difícil processar os autores por calúnia. A relevância dessas notícias aumentou em uma realidade política "pós-verdade". Em resposta, os pesquisadores têm estudado o desenvolvimento de uma "vacina" psicológica para ajudar as pessoas a detectar falsas informações.


Além da disseminação de notícias falsas através da mídia, a expressão também define, em um âmbito mais abrangente, a disseminação de boatos pelas mídias sociais, por usuários comuns”[1] e, neste aspecto, a agressão generalizada contra autoridades dos três poderes ganhou contornos imensuráveis, e, naturalmente devem ser investigadas, punindo-se os responsáveis quando forem enquadradas na forma da lei.


De plano percebe-se que não existe, ao menos na Portaria, nenhum caso específico, nem mesmo nenhum Ministro identificado como vítima. O inquérito é sigiloso, conquanto se saiba que as hipóteses de sigilo das investigações são restritas e conforme a lei e não ao alvedrio do investigador.



Das possíveis condutas criminosas contra o supremo Tribunal Federal ou seus membros


Se perguntarmos se o Supremo Tribunal Federal pode ser vítima de ato criminoso, necessário um rápido passeio pela Lei 1.079, de 10.04.1950[2], onde iremos encontrar algumas figuras possíveis, como os atos do Presidente da República contra o livre exercício do Poder Judiciário (art. 4º, II), usar de violência ou ameaça, para constranger juiz, ou jurado a proferir ou deixar de proferir despacho, sentença ou voto, ou a fazer ou deixar de fazer ato do seu ofício (art. 6º, n.6); os crimes contra o cumprimento das decisões judiciárias (todas as hipóteses do art. 12). Anote-se que, nessas hipóteses, é permitido a qualquer cidadão denunciar o Presidente da República ou um de seus Ministros, por crime de responsabilidade, perante a Câmara dos Deputados, e será lá o local onde será recebida a denúncia e iniciado o processo (art. 14 e seguintes da Lei 1079/50), funcionando a Câmara dos Deputados como tribunal de pronúncia e o Senado Federal, tribunal de julgamento (art.80).


Vale referir que os Ministros do Supremo Tribunal Federal também poderão cometer crimes de responsabilidade, nas hipóteses previstas nos cinco incisos do art. 39 da lei.


Mas não é só isso. Na Lei 7.170, de 14.12.1983[3] iremos encontrar tipos penais tutelando a honra, a vida e a integridade física dos chefes dos três poderes da República, v.g., no art. 26 a calúnia ou difamação do Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, com a mesma pena para quem, conhecendo o caráter ilícito da imputação, a propala ou divulga; no art. 27 a ofensa à integridade corporal ou a saúde de qualquer das autoridades mencionadas no artigo anterior, qualificando-se a lesão grave e o resultado morte; no art. 28 o atentado contra a liberdade pessoal de qualquer das autoridades referidas no art. 26 e; por fim, no art. 29 o homicídio de qualquer das autoridades referidas no art. 26.


Assim, nos crimes de responsabilidade, tanto a investigação como o julgamento ocorrerão no Congresso Nacional, funcionando a Câmara dos Deputados como tribunal de pronúncia e o Senado Federal, tribunal de julgamento. Já nos crimes contra a segurança nacional, a competência será da Justiça Federal, dos juízes federais de primeiro grau (CF, art. 109, IV).


Salvo melhor juízo, para o qual desde logo me penitencio, a honorabilidade dos familiares dos ministros do STF, conquanto deva ser efetivamente respeitada, parece não encontrar guarida nos tipos penais acima referidos, a LSN tutela a chefia de cada um dos poderes constituídos, e a Lei de Responsabilidade tem tipos penais bem específicos, e agentes bem delimitados.


Isso não significa que os ministros do STF de modo geral, e seus familiares, não possam vir a ser objeto de ataques vis a suas reputações ou mesmo à sua integridade física ou a própria vida. Com certeza todo e qualquer ataque criminoso merecerá toda a atenção das autoridades, mas a investigação deve ser procedida de forma adequada, anote-se, em conformidade com a Constituição Federal e com as leis, perante a autoridade policial competente, não se olvidando de que a promoção privativa da ação penal é função institucional do Ministério Público (CF, art. 129, I).


De crime contra a honorabilidade do STF não se tem notícia na legislação penal brasileira, salvo engano para o qual desde já me penitencio. No Código Penal Militar iremos encontrar a figura delitiva do art. 219 – Ofensa às Forças Armadas, segundo o qual “propalar fatos, que sabe inverídicos, capazes de ofender a dignidade ou abalar o crédito das forças armadas ou a confiança que estas merecem do público” pode resultar uma pena de detenção, de seis meses a um ano, aumentada de um terço, se o crime for cometido pela imprensa, rádio ou televisão[4].


Existe o crime de ofensa às Forças Armadas, mas não existe de ofensa às Polícias ou Corpos de Bombeiros Militares, e até onde se sabe, nem de ofensa ao Supremo Tribunal Federal.



A investigação de crimes contra ministros do Supremo Tribunal Federal e seus familiares


Ora, a investigação de qualquer fato criminoso é feita pela polícia judiciária.


Luciano Moreira Gorrilhas e Cláudia Aguiar Britto asseveram que “denomina-se polícia judiciária aquela incumbida de apurar a prática de uma infração penal (autoria e materialidade); isso quando a atividade de polícia preventiva não consegue evitar a atividade criminosa. Disso infere-se que a polícia judiciária não pode ser correspondida à ideia de órgão, mas sim de atividade.


O art. 4º do Código de Processo Penal (CPP) comum estabelece que a polícia judiciária será exercida pelas atividades policiais, sendo estas incumbidas de apurar as infrações penais e as respectivas autorias. Contudo, o próprio artigo da lei também faz menção a outras autoridades – que não a policial – que possuem semelhante função investigativa. Assim, os inquéritos nem sempre são policiais, podendo existir o chamado inquérito administrativo, presidido por uma autoridade administrativa, bem como o inquérito parlamentar (art. 53 da CRFB/88).


Os autores lembram, ainda, que em contexto internacional, destaca-se o inquérito previsto no art. 53 e seguintes do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (Dec. 4.388/2002), de responsabilidade do Procurador. No âmbito estadual, a Polícia Civil ocupa a função de polícia judiciária, cabendo a ela a apuração das infrações, excetuando as militares.


(...) Por outra vertente, a Polícia Militar estadual, em regra geral, atua de maneira preventiva, ostensiva e repressiva, mas também realiza atos de polícia judiciária militar quando a infração for de natureza militar praticada por integrantes da PM”.[5] (g.n.)


Também existe a investigação criminal feita pelo Ministério Público e, vale acrescentar, ainda, que depois da decisão do RE 593.727[6], pelo STF, em 2015, o poder de investigação do Parquet restou pacificado.


Ou seja, existe o inquérito policial, existe o inquérito civil público, existe o inquérito administrativo, existe a comissão parlamentar de inquérito e existe o procedimento de investigação criminal – PIC – do MP. Mas em princípio, não existe o inquérito judicial.


Ou seja, o Poder Judiciário, ainda que sentindo-se ameaçado de alguma forma, não conduz investigações, já que no Estado Democrático de Direito brasileiro vige o sistema penal acusatório, trazido a lume pela Constituição de 1988, em seu no artigo 129.


O Poder Judiciário tem a prerrogativa e o dever de enviar notícia-crime para a instauração de inquérito, mas só pode atribuir a presidência da investigação a magistrado nas situações em que o investigado seja outro magistrado[7].


De acordo com esse entendimento, a hipótese prevista na letra ‘d’, do artigo 10 do Código de Processo Penal Militar – instauração de inquérito por decisão do Superior Tribunal Militar nos termos do art. 25 não foi recepcionada pela nova ordem constitucional já que o desarquivamento do inquérito pelo STM tem, como consequência única submeter, novamente, aquele fato ao crivo da Chefia do Ministério Público Militar, visto que este é o exclusivo titular da ação penal militar, e assim, foi retirada do mundo jurídico a possibilidade prevista no dispositivo em comento.


Da mesma forma, a hipótese prevista no inciso II, do art. 5º do Código de Processo Penal – instauração de inquérito policial mediante requisição da autoridade judiciária. Não se encontra na legislação processual penal, permissivo para que o Supremo Tribunal Federal, de ofício, instaure e conduza uma investigação de qualquer fato delituoso.


Isto porque, a função de investigar não se insere na competência constitucional do Supremo Tribunal Federal (CF, artigo 102), muito menos do Poder Judiciário, exceto nas poucas situações autorizadas em lei complementar – a LOMAN, e por uma razão bem simples: a Constituição ter adotado o sistema penal acusatório, separadas nitidamente as funções de julgar, acusar e defender.


Como é sabido, todo o processo judicial possui pressupostos para sua constituição e desenvolvimento válido e regular (a correta investigação preliminar do fato delituoso é um deles). Sendo assim, a provocação da jurisdição constitui pressuposto de observância inafastável. Nas palavras de Fernando Galvão, em voto vista, “a Jurisdição sem ação constitui ofensa ao princípio garantista da inércia da jurisdição. Os órgãos jurisdicionais são, por sua própria natureza, inertes. Neste sentido é a mensagem dos consagrados brocardos do nemo iudex sine actore e ne procedat judex ex officio”. [8] Se a premissa vale para a atividade jurisdicional, com certeza valerá, com muito mais razão, para a investigação de ilícitos também, que antecede aquela.


CONCLUSÃO


A conclusão que se impõe, respeitados os entendimentos contrários é a seguinte:


A instauração, de ofício do inquérito 4.781, pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, não tem amparo legal nem constitucional. A simples menção ao inciso I, do art. 13, do Regimento Interno – RISTF (velar pelas prerrogativas do Tribunal) ou, ao art. 43 e seguintes (Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro. § 1º Nos demais casos, o Presidente poderá proceder na forma deste artigo ou requisitar a instauração de inquérito à autoridade competente. § 2º O Ministro incumbido do inquérito designará escrivão dentre os servidores do Tribunal. Art. 44. A polícia das sessões e das audiências compete ao seu Presidente) se mostra insuficiente.


Primeiro, porque velar pelas prerrogativas do Tribunal não implica em autorização para instaurar inquérito em face de disseminação de fake news contra o STF ou contra seus membros e familiares.


Segundo, porque até onde se sabe os fatos geradores do indigitado Inquérito não ocorreram na sede ou dependência do STF, e fora dele mais prudente seria requisitar sua instauração à autoridade policial competente.


Terceiro, porque uma vez concluída a investigação, o único caminho possível será a remessa ao Ministério Público, que a receberá como “notícia-crime”, sem nenhuma vinculação ao relatório de quem procedeu a investigação, podendo com ele concordar ou não.



NOTAS


[1] Notícia Falsa, disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Not%C3%ADcia_falsa acesso em 15.03.2019.


[2] Define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento.


[3] Define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social, estabelece seu processo e julgamento e dá outras providências.


[4] O tipo do art. 219 não estava previsto nos Códigos anteriores, nem encontra identidade no CP comum, porém, na legislação esparsa há uma disposição parecida, na Lei de Segurança Nacional, art. 23, inc. II, o crime de “incitar à animosidade entre as forças armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis”, punido com reclusão de 1 a 4 anos.


[5] GORRILHAS, Luciano Moreira; BRITTO, Cláudia Aguiar de. A polícia judiciária militar e seus desafios – Aspectos teóricos e práticos, Porto Alegre: Núria Fabris Editora, 2016, p.31-32.


[6] STF, Pleno, RE 593.727 – Repercussão Geral -, relator Min. Cezar Peluso, redator do acórdão o Min. Gilmar Mendes: Ementa: (...) 4. Questão constitucional com repercussão geral. Poderes de investigação do Ministério Público. Os artigos 5º, incisos LIV e LV, 129, incisos III e VIII, e 144, inciso IV, § 4º, da Constituição Federal, não tornam a investigação criminal exclusividade da polícia, nem afastam os poderes de investigação do Ministério Público. Fixada, em repercussão geral, tese assim sumulada: “O Ministério Público dispõe de competência para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais de que se acham investidos, em nosso País, os Advogados (Lei 8.906/94, artigo 7º, notadamente os incisos I, II, III, XI, XIII, XIV e XIX), sem prejuízo da possibilidade – sempre presente no Estado democrático de Direito – do permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados (Súmula Vinculante 14), praticados pelos membros dessa instituição”. Maioria. Julgado em 14.05.2015.


[7] LC 35, de 14.03.1979– LOMAN, art. 33, parágrafo único.


[8] TJMMG, Processo de Justificação 150, Rel. Juiz Cel BM Osmar Duarte Marcelino, j. em 09.06.2010, DJ 21.06.2010, maioria.

Jorge César de Assis é Advogado, membro da Comissão de Direito Militar da OAB-PR. Secretário – Geral da Associação Internacional de Justiças Militares – AIJM. Coordenador da Biblioteca de Estudos de Direito Militar da Editora Juruá. Membro correspondente da Academia Mineira de Direito Militar. Membro aposentado do Ministério Público Militar da União. Integrou o Ministério Público paranaense. Oficial da reserva não remunerada da Polícia Militar do Paraná.


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