top of page
Jorge Cesar de Assis

LEI 13.491/17 - Da (in) existência do crime militar eleitoral

É possível afirmar-se a existência de crimes militares eleitorais? O magistrado Rodrigo Foureaux, analisando a hipótese da ocorrência de crime militar ou crime eleitoral, lembrou que discussões surgiram quando houver crime previsto no Código Eleitoral ou na legislação eleitoral, cometido por militar em uma das hipóteses do art. 9º, II, do Código Penal Militar.


Para ele, tomando como exemplo o militar em serviço, que venha causar dano físico na urna eletrônica usada na votação, no dia das eleições, incidir-se-á no crime previsto art. 72, III, da Lei 9.504/97. Por estar em serviço, configura a hipótese de crime militar em razão da previsão contida no art. 9, II, “c”, do Código Penal Militar.


Rodrigo Foureaux denomina essa hipótese de crime militar eleitoral.


Segundo o autor, a Constituição Federal não excepcionou os crimes militares nas hipóteses em que estiverem previstos na legislação eleitoral. Aduz que, sempre que a Constituição Federal quis que o crime eleitoral fosse julgado pela Justiça Eleitoral, assim procedeu de forma expressa e, em se tratando da justiça militar, não há nenhuma ressalva.


Em se tratando da competência da Justiça Militar não houve nenhuma ressalva, pela Constituição, quanto à competência da Justiça Eleitoral.


Anotou, que a única ressalva, em se tratando de competência da Justiça Militar, refere-se aos crimes dolosos contra a vida praticados por militares estaduais contra civis.


E continua afirmando que, de mais a mais, ao tratar da competência da Justiça Militar, a Constituição assegurou que todos os crimes militares sejam julgados pela Justiça Militar, diversamente, da competência da Justiça Eleitoral, uma vez que a Constituição se limita a dizer no art. 121 que “Lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais.”


Isto é, a Constituição Federal outorgou à lei complementar a competência dos crimes a serem julgados pela Justiça Eleitoral. Portanto, deve prevalecer a competência da Justiça Militar, em se tratando de crime militar eleitoral, seja porque não há nenhuma ressalva constitucional, seja porque a competência da Justiça Militar para julgar os crimes militares é definida na própria Constituição e a competência da Justiça Eleitoral para julgar os crimes eleitorais é definida em lei ordinária, recepcionada como lei complementar na parte que trata da competência da Justiça Eleitoral, consoante previsão do art. 35 do Código Eleitoral.


Conclui, que na hipótese em que houver crime eleitoral praticado por militar em uma das hipóteses do art. 9º, II, do Código Penal Militar, o crime passará a ter natureza de crime militar eleitoral, o que atrai a competência para a Justiça Militar, pelos fundamentos expostos.


Para ele, então, é possível concluir que nem todo crime eleitoral será julgado pela Justiça Eleitoral, seja pelo fato do réu possuir foro privativo no Supremo Tribunal Federal (art. 102, I, “b” e “c”, da CF) ou Superior Tribunal de Justiça (art. 105, I, “a”, da CF), o que se denomina de competência por prerrogativa de função (ratione funcionae), seja por se tratar de crime militar (arts. 124 e 125, § 4º, da CF), o que se denomina de competência em razão da matéria (ratione materiae)(1).


Em que pese os sempre bons argumentos de Rodrigo Foureaux, não se pode aceitar a existência dos chamados crimes militares eleitorais, e para isso, devemos nos socorrer dos fundamentos que indicam os bens jurídicos tutelados pelas Justiças Militar e Eleitoral, e por aqueles que indicam a própria caracterização do chamado crime eleitoral.


Pois bem, no cotejo da competência das duas justiças igualmente especializadas, veremos com Evânio Moura, que o Poder Judiciário Eleitoral desempenha várias funções, dentre elas, merecendo especial destaque as funções administrativa e consultiva (direito administrativo eleitoral e respostas a indagações de autoridades legitimadas sobre questões relevantes e interpretações sobre determinadas situações abstratas, no âmbito do direito eleitoral), jurisdicional (direito civil eleitoral e direito penal eleitoral e normativa (com edição de resoluções e instruções).


Também possui a Justiça Eleitoral características institucionais, destacando-se o fato de que está centrada em um sistema piramidal e hierárquico, com inexistência de magistratura própria [princípio da periodicidade da investidura dos juízes] e funcionamento permanente (2).


Em relação à prestação jurisdicional, aduz Evânio Moura que esta consiste em função precípua da Justiça Eleitoral, devendo a mesma ser feita com exclusividade pelo Poder Judiciário Eleitoral.


E lembra que no âmbito do direito penal eleitoral, impende repisar que todos os crimes eleitorais [tanto os próprios como os acidentários, previstos no Código Penal Eleitoral ou legislação extravagante] são de ação penal pública incondicionada, atuando o Ministério Público Eleitoral na titularidade da ação (art. 355, CE).


A Justiça Eleitoral é especializada em razão da matéria, tendo competência para as questões relativas ao processo eleitoral e seus incidentes e os crimes eleitorais. Também é da competência da Justiça Eleitoral o processo pelos crimes comuns conexos com o crime eleitoral (art. 78, IV, do CPP) (3).


Neste ponto, pode-se afirmar, sem sombra de dúvida, que tanto a Justiça Militar como a Justiça Eleitoral, possuem o atributo de Justiça Especial ou Especializada, não sendo crível, principalmente em razão da disparidade e da igual importância das matérias de que tratam, que se pretenda estabelecer graus de superioridade de uma Justiça Especial em relação à outra, nem muito menos aceitar um minus da Justiça Eleitoral em favor da Justiça Militar.


Mesmo porque, a Justiça Especial prevalece sobre a Justiça Comum, e nunca sobre outra Justiça igualmente especializada. Com o advento da Lei 13.491/17, por força da nova redação dada ao inciso II, do art. 9º, do CPM, aqueles crimes cuja definição jurídica encontram-se exclusivamente na legislação penal comum, sem correspondente no Código Penal Militar, desde que praticados nas condições das alíneas referido inciso, passaram a ser crimes militares. E, com isso, a competência da Justiça Militar, obviamente, foi ampliada, abrigando crimes que outrora estavam abarcados na competência da Justiça comum, federal ou estadual, repita-se, “abarcados na competência da Justiça comum”, e nunca, de outra Justiça Especializada, como a Eleitoral.


Pode-se concluir, então, que a chamada Justiça Especial possui competência previamente delimitada e determinada na Constituição Federal, sendo composta pelas Justiças Militar, do Trabalho e Eleitoral, conforme previsto no art. 92, incisos IV, V e VI da Constituição da República.


Em linha gerais, mas precisas, pode-se afirmar que a Justiça Militar tutela os valores que são caros para as instituições armadas (Forças Armadas e Forças Auxiliares), estruturadas que são na disciplina e hierarquia e, a Justiça Eleitoral tutela os valores que são caros para o exercício pleno da cidadania, umbilicalmente ligados ao pluralismo político, à nacionalidade e suas distinções, à soberania popular, às condições de elegibilidade etc.


Uma vez demonstrada as peculiaridades e o caráter especial da Justiça eleitoral, necessário que se faça algumas considerações sobre o chamado crime eleitoral, até mesmo para demonstrar sua impossibilidade de processamento e julgamento perante a Justiça Militar.


A caracterização do crime eleitoral guarda uma certa similitude com o crime militar.


No magistério de Evânio Moura, o crime eleitoral agride os princípios que são inerentes ao conceito de Estado Democrático de Direito (art. 1º da CF), figurando como temário de supina relevância, mormente em razão da proteção ao livre exercício do sufrágio, considerado pelo legislador constituinte como cláusula pétrea (art. 60, § 4º, II, da CF) (4).


Para Susana de Camargo Gomes, são, assim, crimes eleitorais todas aquelas condutas levadas a efeito durante o processo eleitoral e que, por atingirem ou macularem a liberdade do direito de sufrágio, em sua acepção ampla, ou mesmo os serviços e desenvolvimento das atividades eleitorais, a lei as reprimiu infligindo a seus atores uma pena. Consistem, dessa forma, em condutas delituosas que podem se revelar nas mais diferentes formas, indo desde aquelas que conspurcam a inscrição dos eleitores, a filiação a partidos políticos, o registro de candidatos, a propaganda eleitoral, a votação, até aquelas que violam a apuração dos resultados e diplomação dos eleitos (5).


A similitude acima referida se verifica porque, nos crimes militares há uma distinção clássica entre crimes propriamente militares [aqueles que estão previstos apenas no Código Penal Militar] e, os crimes impropriamente militares [aqueles que estão previstos com igual definição, tanto no CPM como na legislação penal comum]. Os novos crimes militares por extensão da norma do inciso II, do art. 9º, do Código penal Militar não interferem nessa clássica classificação doutrinária.


Por sua vez, os crimes eleitorais são de regra crimes comuns, passíveis de serem cometidos por qualquer pessoa, embora excepcionalmente existam crimes eleitorais próprios, como aqueles praticados pelo promotor de justiça eleitoral (art. 342, CE) ou pelo juiz eleitoral e pelos serventuários da Justiça Eleitoral (art. 343, CE).


Evânio Moura classifica o crime eleitoral como espécie de crime político, lembrando que quando em cotejo com o crime de responsabilidade, o crime eleitoral está englobado no rol dos crimes comuns, matéria pacificada no seio da doutrina e da jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal Federal (6). O cotejo do crime militar com o crime de responsabilidade implica na mesma conclusão.


Na distinção entre os crimes eleitorais específicos ou puros e crimes eleitorais acidentais, lembra o magistério de Hungria, para quem “os crimes eleitorais dividem-se em: específicos ou puros, e, acidentais. Os primeiros são os que somente podem ser praticados na órbita eleitoral e, os últimos aqueles que, embora previstos em outras leis que não a eleitoral, se incluem no elenco do ilícito penal eleitoral quando praticados no sentido de ofender a objetividade jurídica a que já acima nos referimos”.(7)


Portanto, um exemplo de crime eleitoral específico é o de boca de urna (art. 39, § 5º, do CE), porque somente existe e se justifica no âmbito do direito eleitoral, tutelando os bens jurídicos penalmente protegidos com a legislação eleitoral, havendo proteção jurídica de bens jurídicos de caráter supra individual.


E, os crimes praticados durante a propaganda eleitoral permitida (calúnia, difamação e injúria – arts. 324, 325 e 326 do CE), configuram crimes eleitorais acidentais.


Pois bem, voltando ao exemplo dado por Rodrigo Foureaux ao início, do militar em serviço, que venha causar dano físico na urna eletrônica usada na votação, no dia das eleições, incidindo no crime previsto art. 72, III, da Lei 9.504, de 30.09.1997 [que estabelece normas para as eleições], não há como deixar de constatar que esta é uma infração penal eleitoral específica, que tutela bens jurídicos supra individuais de interesse exclusivo da Justiça eleitoral.


Não há como se aceitar o fato de que, pelo simples fato de o militar estar em serviço, configure a hipótese de crime militar em razão da previsão contida no art. 9, II, “c”, do Código Penal Militar, transformando a infração penal no pretendido crime militar eleitoral. A norma de extensão do inciso II, do art. 9º, do CPM transforma, nessas hipóteses, o crime previsto apenas na legislação penal em crime militar. Mas não tem o condão de afastar a competência em razão da matéria atribuída à Justiça Eleitoral.


Seria jogar o disco longe demais. A Justiça Militar não tutela os valores que são caros para o exercício pleno da cidadania, umbilicalmente ligados ao pluralismo político, à nacionalidade e suas distinções, à soberania popular, e às condições de elegibilidade. Nem muito menos tutela o regular desenvolvimento do processo eleitoral. Todo esse conjunto protetivo está constitucionalmente outorgado para a Justiça que lhe é própria: a Justiça Eleitoral!


Mesmo porque, e esta seria uma situação fática que afetaria inclusive o princípio do juiz natural, na hipótese [ aqui aventada apenas à guisa de argumentação] de se aceitar que os crimes eleitorais, em tese cometido por militares, nas condições previstas no inciso II, do art. 9º do CPM sejam julgados pela Justiça castrense implicaria, naturalmente, em reconhecer que seu processo e julgamento caberia ao Conselho de Justiça, sequer ao magistrado togado de forma monocrática.


Já dissemos, em outro espaço, que o Conselho de Justiça é um órgão jurisdicional colegiado sui generis, formado por um juiz togado (auditor) e quatro juízes militares, pertencentes à força a que pertencer o acusado. Tem previsão constitucional: arts. 122, II e; 125, § 3º. É sui generis em razão de sua divisão prevista no art. 16 da Lei 8.457/92 (LOJMU), aplicável igualmente à Justiça Militar Estadual.


Vejamos. O Conselho Permanente de Justiça, que processa e julga os crimes militares cometidos por praças ou civis, tem seus juízes renovados a cada trimestre, sem vincular os juízes militares ao processo nos quais atuarem naquele período. Já o Conselho Especial de Justiça, destinado a processar e julgar oficiais até o posto de Coronel ou Capitão de Mar e Guerra, tem seus juízes militares escolhidos para cada processo. Vige aqui, excepcionalmente, e somente em relação aos juízes militares, o princípio da identidade física do juiz, ou seja, aquele Conselho somente se extinguirá com a decisão final do processo. O juiz-auditor (Juiz de Direito do Juízo Militar), assim como os demais magistrados que atuam no foro penal, não fica vinculado a processo algum.


(...)


A composição heterogênea do Conselho é fundamental [para a Justiça Militar], como bem disse o então Presidente do Superior Tribunal Militar, Ministro Antonio Carlos Baptista; verbis:


“O meu testemunho é no sentido de que, por sua composição especial, realmente se junta o conhecimento jurídico com o sentimento e o conhecimento prático. É comum, por ocasião da leitura de um relatório, por parte do Ministro Relator, adentrarmos nos processos e vagarmos pelo local da ocorrência como se a tudo estivéssemos presenciando. Quantas vezes voltei a ser oficial-de-dia, ou de operações, participante, “em espírito”, daquele evento meio intrincado para meus pares civis, que pouco ou nenhum contato tiveram com nosso meio? Quantas vezes pude influir para que entendessem aquilo que então se passara e que as folhas do processo não retrataram devidamente? Os togados precisam de seus pares militares, da mesma forma como seria impossível funcionarmos sem eles.


A verdadeira justiça é oferecida pelo amálgama que se faz dos seus conhecimentos e das nossas experiências. É como registrou o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Dr. João Barbalho, em seu livro Comentários à Constituição Brasileira, ao se referir à Justiça Militar, afirmando que “a infração do dever militar por ninguém pode ser melhor apreciada do que por militares; eles, mais que os estranhos ao serviço das forças armadas, sabem compreender a gravidade da situação e as circunstâncias que podem modificá-la”. (A Justiça Militar da União, pelo seu novo Presidente. Revista Direito Militar, AMAJME, 13, p. 4, set./out. 1998) (8)


Portanto, o julgamento desse “crime militar eleitoral” seria da competência do Conselho de Justiça, já que, em relação à Justiça Militar Federal, a Lei 8.457/1992 – Lei de Organização da Justiça Militar da União não previu, em nenhum momento, a jurisdição monocrática do Juiz-Auditor e, em relação à Justiça Militar Estadual, a Emenda Constitucional 45/2004, conferindo ao Juiz de Direito do Juízo Militar a jurisdição monocrática, o fez, tão-somente, em relação aos crimes militares cometidos contra civis, ressalvada a competência do Tribunal do Júri e, em relação às ações judiciais contra os atos disciplinares militares.


Se a hipótese já se apresenta como esdrúxula, nunca é demais lembrar que, não basta ao aplicador da lei penal militar, realizar o exercício de tipicidade indireta (9) para verificar se o fato posto em análise é ou não crime militar. Há que se verificar, sempre, a efetiva ofensa às instituições militares como elemento determinante para a caracterização do crime militar.


Inexistindo ofensa efetiva à instituição militar, de crime militar não se trata. Voltando ao exemplo dado por Rodrigo Foureaux, fica difícil enxergar, no dano físico causado por um militar estadual ou federal, na urna eletrônica usada na votação, no dia das eleições, uma efetiva ofensa à instituição militar. A ofensa existe sim, mas ao processo democrático da eleição conturbada, e a competência para seu processo e julgamento é, sem sombra de dúvida, da Justiça Eleitoral (10).


Jorge Cesar de Assis. Advogado. Membro da Comissão de Direito Militar da OAB-PR. Integrou o Ministério Público do Estado do Paraná. Membro aposentado do Ministério Público Militar da União. Coordenador da Biblioteca de Estudos de Direito Militar da Editora Juruá. Membro correspondente da Academia Mineira de Direito Militar. Sócio Fundador da Associação Internacional das Justiças Militares.


NOTAS


1 - Disponível em https://www.observatoriodajusticamilitar.info/single-post/2018/03/19/Compet%C3%AAncia-para-julgar-os-crimes-militares-eleitorais acesso em 22.03.2018.


2 - MOURA, Evânio. Processo penal eleitoral – Crimes eleitorais, jurisdição e competência, Curitiba: Juruá, 2014, p. 109.


3 - Ibidem, p.111.


4 - Ibidem, p.211.


5 - GOMES, Suzana de Camargo. Crimes eleitorais, 2. Ed., ver., atual. e ampliada, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.28.


6 - Ibidem, p.212.


7 - Ibidem, p.219.


8 - ASSIS, Jorge Cesar de. Direito Militar – aspectos penais, processuais penais e administrativos, 3ª edição, Curitiba: Juruá, revista e ampliada, 2012, p. 209-212.


9 - PASSOS A SEREM SEGUIDOS PARA IDENTIFICAR O CRIME MILITAR: 1º) verificar se o fato está previsto na Parte Especial do Código Penal Militar, ou, agora, previsto na legislação penal comum em geral; 2º) verificar se está previsto em uma das hipóteses do art. 9º do CPM; 3º) verificar eventual existência de causa excludente de criminalidade e; 4º) verificar a efetiva ofensa como elemento determinante para a caracterização do crime militar.


10 - A propósito, conferir nosso artigo: Art. 9º do CPM: A ofensa às instituições militares como elemento determinante na caracterização do crime militar. Disponível em http://jusmilitaris.com.br/sistema/arquivos/doutrinas/tipicidade_indireta.pdf acesso em 22.03.2018.

bottom of page