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  • Fernando Galvão

Natureza material do dispositivo que amplia o conceito de crime militar e o deslocamento dos inquéri

Juiz Civil – Presidente do Tribunal

de Justiça Militar do Estado de Minas Gerais

Professor Associado da Faculdade de Direito da UFMG



Com a ampliação do conceito de crime militar promovida pela Lei 13.491/2017, surgiram dúvidas sobre o deslocamento imediato dos processos em curso na Justiça Comum para a Justiça Militar. A mesma inquietação se verificou em relação aos inquéritos policiais instaurados no âmbito da Polícia Civil.


Confesso que em um primeiro momento, o entusiasmo diante do horizonte ampliado para a atuação da Justiça Militar me induziu ao erro de afirmar que a edição da Lei importaria na imediata transferência de todos os processos em curso na Justiça Comum para a Justiça Militar. Uma reflexão mais cuidadosa me fez perceber que a questão não é tão simples como me pareceu inicialmente.


A norma alterada pela Lei 13.491 que nos ocupa a atenção (inciso II do art. 9º do CPM) é de natureza material, que sequencialmente produz efeitos secundários de natureza processual. A doutrina já identificou as normas de natureza hibrida, nas quais se pode identificar tanto aspectos materiais e quanto processuais. Contudo, no caso da alteração produzida pela Lei 13.491, pode-se constatar que o efeito processual somente se apresenta quando há a caracterização do crime militar. O efeito processual depende da concretização do aspecto material da norma.


Não é possível considerar os aspectos da nova disposição legal separadamente para aplicar apenas o aspecto processual que desloca a competência para a Justiça Militar. Tal deslocamento depende da aplicação do aspecto material do dispositivo. Em outras palavras: somente haverá o deslocamento da competência se houver, antes, a caracterização do crime militar.


Tal observação se torna importante nos casos de processos relativos à condutas praticadas antes da entrada em vigor da nova lei. No momento da realização da conduta, se o crime em tese praticado era comum, e não militar, é necessário avaliar se a retroatividade da lei penal que o transforma em militar é possível. Isto porque havendo sucessão de leis penais, a retroatividade somente é possível quando beneficiar o sujeito (art. 2º, § 1º, do Código Penal Militar). E o Código Penal Militar esclarece que para se reconhecer qual a mais favorável, a lei posterior e a anterior devem ser consideradas separadamente, cada qual no conjunto de suas normas aplicáveis ao fato (art. 2º, § 2º).


A orientação legal é muito pertinente para confirmar a perspectiva de que o crime militar é caracterizado conforme as disposições do Código Penal Militar e a apuração de responsabilidades em razão de suas práticas deve se orientar pelas normas do Código de Processo Penal Militar. Tais estatutos constituem referencia necessária para o trabalho na Justiça Militar, muito embora a desatualização dos mesmos tenha imposto a realização de uma série de ajustes. Para o Código Penal Militar pode-se citar a incorporação da regra constante do art. 68 do Código Penal comum, que determina que a dosimetria da pena se verifique em três fases. Para o Código de Processo Penal Militar pode-se a incorporação da regra constante do art. 400 do Código de Processo Penal comum, que determina que a realização do interrogatório ocorra ao final de instrução (STF-HC 127900).


Também não se pode esquecer, com relação aos processos em andamento, as normas constitucionais que definem a competência (absoluta) em razão da matéria. Desta forma, não se pode processar e julgar na Justiça Comum um crime militar, como também não se pode processar e julgar na Justiça Militar um crime comum.


Os primeiros momentos de aplicação da nova lei são delicados e a precipitação na declinação de competência pode levar, no caso de ser suscitado conflito negativo de competência a ser resolvido no Superior Tribunal de Justiça, ao resultado indesejado da prescrição. Nos crimes cuja pena cominada é muito baixa, como é o caso dos crimes de abuso de autoridade previstos nos arts. 3º e 4º da Lei 4.898/65, pode-se dizer que a prescrição se apresentará inevitável. Portanto, é necessário muita cautela para declinar a competência da Justiça Comum.


Diante do concurso aparente de normas incriminadoras, perante o qual se pretenda apurar qual das disposições é mais favorável ao indiciado/réu, pode-se observar as seguintes premissas:


1) atendidas as condições especificadas nas alíneas do inciso II do art. 9º do CPM, o concurso se estabelece entre tipos definidores de crimes militares. (não se trata de concurso entre crime comum e crime militar)


2) os crimes previstos de maneira idêntica no CPM e na legislação penal, com idêntica pena, não sofrem qualquer inovação e permanece a previsão do CPM.


3) os novos crimes militares revogam os antigos crimes militares com os quais são incompatíveis.


4) para os processos em andamento, somente haverá retroatividade quando a nova previsão for mais benéfica


Em um exame preliminar, pode-se identificar a concreta possibilidade da incidência da prescrição da pretensão punitiva como situação que venha a tornar a retroatividade da nova disposição legal possível. Isso porque a Lei 12.234, de 05 de maio de 2010, alterou as disposições relativas à prescrição somente no Código Penal comum, não produzindo qualquer efeito no Código Penal Militar.


Nesse aspecto, cabe observar que art. 1º da Lei n. 12.234/10 dispõe expressa- mente que a Lei altera os arts. 109 e 110 do Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para excluir a prescrição retroativa. Desta forma, ficou absolutamente claro que o instituto da prescrição retroativa não existe mais no Código Penal brasileiro. No entanto, ainda há previsão para a prescrição retroativa em relação à pretensão punitiva de crimes militares, conforme previsto no § 1º do art. 125 do Código Penal Militar. O dispositivo da legislação especial determina que sobrevindo sentença condenatória, de que somente o réu tenha recorrido, a prescrição passa a regular-se pela pena imposta, e deve ser logo declarada, sem prejuízo do andamento do recurso, se, entre a última causa interruptiva do curso da prescrição (§ 5º) e a sentença, já decorreu tempo suficiente. Nesse caso, o dispositivo legal é expresso em admitir a ocorrência da prescrição retroativa, no período compreendido entre o recebimento da denúncia e a decisão condenatória recorrível.


A prescrição regulada pela parte geral ainda apresenta dois outros aspectos mais favoráveis ao indiciado/réu. O primeiro diz respeito ao prazo mínimo para a ocorrência da prescrição. Com a alteração produzida pela Lei 12.234, o prazo mínimo estabelecido pelo Código Penal Comum é de 03 anos (art. 109, inciso VI). Sem alteração promovida pela Lei 12.234, o prazo mínimo estabelecido pelo Código Penal Militar é de 02 anos (art. 125, inciso VII). O segundo aspecto se apresenta na inexistência de uma causa interruptiva da contagem do prazo prescricional. Nos termos do Código Penal Comum, a publicação do acórdão condenatório recorrível (que, por substituir a decisão de primeiro grau como título executivo, conserva a natureza condenatória quando nega recurso da defesa) é causa interruptiva da prescrição (art. 117, inciso IV). No Código Penal Militar não há previsão para tal interrupção.


Considerando as distintas disposições legais para o instituto da prescrição, pode-se concluir, no caso concreto de apuração de crime de abuso de autoridade, que é mais favorável ao indiciado/réu retroagir a regra que caracteriza a conduta como crime militar.


Também pode-se identificar situação de benefício a nova caracterização dos crimes militares de lesão corporal leve e lesão corporal culposa. Nos termos do disposto no art. 88 da Lei 9.099/95, a ação penal relativa aos referidos crimes passa a ser pública condicionada. E, nos termos do art. 91 do mesmo diploma legal, nos casos em que esta Lei passa a exigir representação para a propositura da ação penal pública, o ofendido ou seu representante legal será intimado para oferecê-la no prazo de trinta dias, sob pena de decadência.


O argumento de que o art. 122 do Código Penal Militar restringe as hipóteses de ação publica condicionada aos crimes previstos nos artigos 136 a 141 não pode ser aplicado. O art. 88 da Lei 9.099/95 também é regra extravagante ao Código penal comum e, mesmo assim, produz efeitos para alterar as normas estabelecidas no estatuto comum.


Os argumentos de que um inferior jamais representaria contra um superior ou que um civil jamais representaria contra um policial militar, por medo de retaliações, igualmente não se apresentam adequados para impedir a incorporação dos casos de ação pública condicionada.


Nesse aspecto, primeiramente, cabe observar que a representação permite à vitima (ou seus representantes) o direito de realizar um juízo de oportunidade e conveniência sobre a propositura da ação penal. Se o direito da vitima estiver sob ameaças, deve-se remover as causas da ameaça e não remover o direito da vitima.


Também se mostra inaceitável a premissa de que o inferior sempre tem medo de contrariar o superior. Aceitá-la significaria inviabilizar os Conselhos de Justiça, porque o inferior sempre votaria no mesmo sentido do voto do superior.


Por fim, admitir que a vitima civil temeria representar contra o policial militar implicaria na necessidade de explicar porque não temeria representar contra o policial civil. Aos que defendem que o medo da vitima justifica estabelecer a impossibilidade de ação pública condicionada nos dois casos, pode-se retornar à critica inicial: se há ameaças ao exercício do direito, que se removam as ameaças e não o direito.


O argumento que se mostra importante para negar a aplicação do art. 88 da Lei 9.099/95 é a restrição constante do art. 90-A do mesmo diploma legal. Nesse caso, vale lembrar que a inconstitucionalidade do dispositivo para o contexto da Justiça Militar estadual tem sido afirmada em muitos julgados. Superada a restrição, pelas mesmas razões, deve-se incorporar ao contexto militar os novos casos de ação pública condicionada.


Quanto à ação publica condicionada, ainda cabe considerar os casos de lesão corporal culposas produzidas na condução de veículos (viaturas). Para raciocinar com exemplos comparativos, tanto policiais civis como militares conduzem viaturas policiais. O parágrafo 1º do art. 291 da Lei 9.503, de 23 de setembro de 1997, determina que aplica-se aos crimes de trânsito de lesão corporal culposa o disposto nos arts. 74, 76 e 88 da Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995, exceto se o agente estiver: I - sob a influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa que determine dependência; II - participando, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística, de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente; III - transitando em velocidade superior à máxima permitida para a via em 50 km/h (cinquenta quilômetros por hora). O dispositivo não excepciona a aplicação no âmbito da Justiça Militar (o que ocorre com o art. 90-A da Lei 9.099/95) e não parece justificável e constitucional que a ação penal seja pública condicionada para o caso de crimes praticados por policial civil e pública incondicionada para o caso de crimes praticados por policial militar. Nesse contexto, a composição civil importa em impedimento para a vitima oferecer a representação. Em resumo: inaugura-se uma nova fase para o Direito Penal Militar, mais preocupado com a reparação dos danos causados à vitima da lesão corporal culposa do que com a punição do militar causador do dano (art. 74, parágrafo único, da Lei 9.099/95 c/c art. 291 da Lei 9.503/97).


Ainda vale observar a posição dominante nos Tribunais Superiores no sentido de que proferida a decisão de primeiro grau, firma-se o juízo recursal de modo que não haverá deslocamento da competência para analisar eventual recurso. No STF o entendimento pode ser examinado na decisão proferida no HC 78.320-SP e no STJ na decisão proferida no julgamento do HC 228856-SP, todos envolvendo casos relativos à Lei 9.299/96. O entendimento é passivo criticas, quando se pensa que a fixação do juízo natural deve ser antes da ocorrência do crime e não após a decisão de primeiro grau, bem como que este princípio constitucional deve ser ponderado com a definição de competência em razão da matéria, que também é de ordem constitucional.


Com estas breves considerações espero, apenas, provocar a reflexão sobre os cuidados necessários para a aplicação das novas disposições que ampliam o conceito de crime militar.

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