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  • Fernando Galvão

Aplicação de Penas Restritivas de Direitos na Justiça Militar Estadual

Juiz Civil do Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais

Professor Associado da Faculdade de Direito da UFMG



1 Introdução


A aplicação de penas restritivas de direitos na Justiça Militar estadual constitui um tema polêmico, muito embora a doutrina e a jurisprudência dominantes sustentem a sua impossibilidade jurídica no âmbito da Justiça especializada.


Esta questão desafia uma reflexão mais aprofundada dos operadores do Direito tendo em vista a necessidade de promover a contínua contextualização da Justiça Militar com o Estado Constitucional de Direito. Em especial, porque a legislação penal e processual penal militar se tornou anacrônica em relação à legislação comum, o juiz da Justiça especializada Militar constantemente é chamado a contextualizar suas decisões com os princípios constitucionais, os postulados da política criminal brasileira e a realidade social na qual sua decisão produzirá efeitos. Por isso, na Justiça Militar não se pode ignorar as novas formas de intervenção repressiva estatal e a política criminal que as instituiu.


Não se pode esquecer que diversos são os contextos de aplicação do Direito Penal Militar e tal fato desafia a compreensão dos operadores do Direito Militar sobre quais institutos do Direito Penal comum têm aplicação no âmbito da Justiça Militar estadual.


Com o intuito de provocar um oportuno e necessário debate sobre a possibilidade de aplicação das penas restritivas de direitos nos crimes militares, compartilho com os leitores as reflexões que se seguem.



2 O Estado de Direito Constitucional


A doutrina identifica na passagem do Estado de Direito Legal ao Estado de Direito Constitucional a segunda onda evolutiva do Estado, do Direito e da Justiça que iniciou na segunda metade do século XX com o julgamento do Tribunal de Nuremberg. O julgamento de Nuremberg constitui uma referência marcante desta evolução porque as condenações criminais nele proferidas reconheceram que os nazistas violaram o Direito, muito embora tenham cumprido fielmente a lei vigente na Alemanha ao tempo dos fatos que lhe foram imputados.


Tal evolução ressaltou a distinção entre a lei e o Direito, para revelar que o Direito não se esgota na lei e que a constitucionalização do Direito instituiu a Constituição como norma jurídica superior que impede a aplicação de normas infraconstitu-cionais que lhe sejam contrárias.


No contexto de um Estado Constitucional, a noção de validade das normas jurídicas passa a não estar mais restrita a uma análise meramente formal do processo de sua produção, e sim materialmente comprometida em conciliar o conteúdo das disposições normativas com os princípios constitucionais que definem os direitos fundamentais. Nesse sentido, Luiz Flávio Gomes e Rodolfo Luis Vigo (2008, p. 24), ressaltando a prevalência do Direito conformado na Constituição sobre as disposições legais, esclarecem que:


Precisamente esse ‘Direito’ que antecede, excede e controla a ‘lei’ é o que as novas constituições reconhecem sob o rótulo – explícito ou implícito – de valores, princípios, fins ou de direitos humanos, e, conseqüentemente, se delega a Tribunais constitucionais (ou a juízes ordinários) a atribuição de zelar para que aquela higher Law (lei magna) prevaleça sobre toda a tentativa de violação gerada pelas normas infraconstitucionais.


Por isso, nos dias atuais, não se pode mais conceber a Constituição como um simples programa político que se presta a orientar os poderes do Estado. Sendo a Constituição uma norma hierarquicamente superior às demais, seus valores e princípios determinam a possibilidade de aplicação e a interpretação que se deva dar às normas infraconstitucionais.



3 Defasagem da Legislação Penal e Processual Penal Militar


Pode-se constatar, lamentavelmente, que ao longo dos últimos anos as políticas públicas implementadas para o melhor enfrentamento da criminalidade têm centrado atenções na Justiça comum e esquecido os conflitos sociais que envolvem os militares. Diversas foram as alterações introduzidas no Código Penal comum (CP) e no Código de Processo Penal comum (CPP) que visaram qualificar a intervenção punitiva, bem como obter maior efetividade na relação processual penal. Tais intervenções político-criminais, formalmente, não atingiram a Justiça Militar.


Contudo, é inconcebível que a operação da Justiça Militar se mostre desarticulada das opções político-criminais formuladas pelo Estado brasileiro. Não é possível admitir que os esforços do Poder Público para a melhor compreensão do fenômeno da criminalidade e para o aprimoramento de sua intervenção punitiva deixem de produzir efeitos em relação aos militares. Por isso, os magistrados da Justiça Militar de Minas Gerais passaram a incorporar em seus julgados muitos dos avanços introduzidos na Justiça comum.


Com base no permissivo do art. 3º do Código de Processo Penal Militar (CPPM), os juízes da Justiça Militar mineira passaram a determinar a suspensão do processo nos casos de réu revel citado por edital e permitir perguntas das partes no interrogatório. Com as recentes alterações do Processo Penal comum, certamente, a oitiva das testemunhas se dará por perguntas diretas das partes e será possível a absolvição sumária. No trato das questões de natureza penal, os juízes passaram a realizar a dosimetria da pena em três fases, a definir o regime para o cumprimento da pena privativa de liberdade, a exasperar a pena de um só dos crimes nos casos de crime continuado e, agora, a aplicar os benefícios da transação penal e da suspensão condicional do processo, previstos na lei dos Juizados Especiais Criminais. A permissão legal para a incorporação dos avanços verificados na legislação penal comum pode ser encontrada no art. 12 do CP comum, que determina a aplicação dos princípios constantes de sua parte geral aos fatos incriminados por lei especial, salvo disposição expressa em contrário.


Cabe observar que, no Estado de Direito Constitucional, a coerência das respostas do Poder Público prescinde de previsão legal expressa. Nesse sentido, em decisão proferida nos autos do HC 92961/SP, o Supremo Tribunal Federal afirmou que os julgamentos proferidos na Justiça Militar devem se compatibilizar com a política criminal oficialmente adotada pelo Estado brasileiro e, no caso concreto, a Suprema Corte considerou o disposto na Lei n. 11.343/2006 – nova Lei de Drogas – para beneficiar um militar usuário de drogas, embora haja previsão expressa para tal conduta no art. 290 do Código Penal Militar (CPM).


A criminalização das condutas que envolvem drogas na Justiça Militar constitui um exemplo marcante da esquizofrenia jurídica que se instalou pelo descaso do legislador com a atualização das normas do Direito Penal Militar. Nos termos do CPM ao usuário de drogas é cominada pena privativa de liberdade, enquanto que na legislação utilizada na Justiça comum não. Segundo o estatuto repressivo militar, a pena máxima cominada ao traficante que pratica o crime em local sujeito à administração militar é igual à pena mínima cominada pela legislação comum ao traficante que realiza a conduta em local não sujeito à administração militar. Isto faz com que o uso de drogas caracterize um crime militar mais grave do que a mesma conduta ao caracterizar um crime comum e que o traficante seja estimulado a realizar o tráfico em local sujeito à administração militar, pois a repressão estatal será significativamente menor.


Neste universo jurídico desarmônico, desproporcional e muitas vezes injusto, a atuação corretiva do juiz especializado ganha especial relevo. O magistrado materializa as respostas oficiais que o Poder Público oferece aos conflitos sociais e deve preservar a racionalidade e coerência do sistema normativo que aplica. Para se desincumbir deste mister, o juiz deve orientar a sua análise pelos princípios constitucionais aplicáveis aos casos concretos e as peculiaridades dos diversos contextos de aplicação do Direito Militar.



4 Contextos Diferenciados Reconhecidos pela Constituição


Para a melhor compreensão da possibilidade jurídica da aplicação de penas restritivas de direitos na Justiça Militar é necessário considerar a existência de contextos diferenciados nos quais o Direito Militar tem aplicação.


Inicialmente, cabe observar as repercussões da competência diferenciada que foi conferida pela Constituição da República às Justiças Militares. A Competência da Justiça Militar da União é definida exclusivamente em razão da matéria, já que o art. 124 da CR determina que à Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei. Dessa forma, compete à Justiça Militar o julgamento dos crimes militares, sejam estes praticados por militares ou civis.


Já a competência da Justiça Militar estadual é definida em razão da matéria e também da pessoa que comete o crime. Conforme expressa previsão constitucional, constante do art. 125, § 4º, compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei. Assim, à Justiça Militar estadual compete o julgamento dos crimes militares definidos em lei, mas apenas quando praticados por militares estaduais (policiais ou bombeiros militares). A competência conferida à Justiça Militar estadual é mais restrita do que a que foi conferida à Justiça Militar federal, já que não abrange os crimes militares praticados por militares da União e os praticados por civis.


O tratamento constitucional diferenciado produz repercussões na caracterização dos crimes e indica que, nas questões afetas às instituições militares estaduais, o civil deve ser julgado conforme o disposto na legislação repressiva comum e não conforme os termos da legislação militar. A obrigatoriedade da separação dos processos imposta pela CR só se justifica pela impossibilidade jurídica de que o civil seja responsabilizado conforme os termos da lei militar. Se a intenção do constituinte fosse que o civil devesse ser julgado conforme a lei militar, a obrigatória separação dos processos somente traria uma dificuldade inútil à prestação jurisdicional. Mais racional seria preservar a unidade dos processos para que o civil fosse julgado juntamente com o militar, na Justiça Militar estadual, como acontece nos crimes da competência da Justiça Militar da União. A obrigatoriedade da separação dos processos e a incompetência da Justiça comum para o julgamento de crimes militares indicam que o civil envolvido em questões relacionadas às instituições militares estaduais somente pode ser julgado conforme o disposto na legislação repressiva comum.


Dessa forma, caso um civil desacate um militar do Exército, durante uma operação militar para a manutenção da ordem pública, deverá ser julgado perante a Justiça Militar federal. O fato, em tese, caracteriza um crime militar, previsto no art. 299 do CPM, e a Justiça Militar federal tem competência para julgar o civil.


Por outro lado, se um civil desacatar um policial militar, durante uma operação de policiamento ostensivo, deverá ser julgado na Justiça comum estadual, por crime comum. Não se aplica ao exemplo o art. 9º, inciso III, alínea “d”, do CPM porque a Constituição da República não permite que a Justiça Militar estadual julgue civis e tampouco que a Justiça comum julgue crimes militares.


O tratamento constitucional diferenciado ainda produz repercussões no que diz respeito à aplicação da regra da comunicabilidade das circunstâncias típicas elementares, prevista no § 1º do art. 53 do CPM.


Como a Justiça Militar da União é competente para o julgamento de crimes militares praticados por militares e civis, pode se caracterizar o concurso de pessoas entre um militar da União e um civil para a prática de um crime militar. A característica pessoal exigida pelo tipo que apenas um dos participantes ostenta (ser militar) se comunica ao outro para que, nos termos da teoria monista ou unitária, ambos respondam pelo mesmo crime.


Na Justiça Militar estadual, entretanto, a questão não apresenta a mesma solução. Como a Justiça Militar estadual não julga civis, a regra do § 1º do art. 53 do CPM não tem aplicação para fazer comunicar a condição de militar de um dos participantes aos demais. Dessa forma, não é possível caracterizar juridicamente um concurso de pessoas. Havendo concorrência entre um militar estadual e um civil para a realização de um fato considerado como crime militar impróprio, o processo e julgamento do fato deverão ser obrigatoriamente separados, de modo que o militar seja julgado na Justiça Militar, por crime militar, e o civil na Justiça comum, por crime previsto na legislação comum.


Na hipótese em que se verificar concorrência entre um militar estadual e um civil para a realização de um fato previsto como crime propriamente militar, o raciocínio desenvolvido leva a concluir que a conduta do civil será atípica, por não haver correspondente incriminação na legislação repressiva comum e ele não poder responder a processo na Justiça comum pela prática de crime militar.


Ainda no que diz respeito às distinções existentes entre o âmbito de atuação das Justiças Militares, cabe observar que os jurisdicionados militares podem pertencer a instituições que cumprem missões distintas. Como a missão constitucionalmente atribuída às instituições militares da União e dos Estados é distinta, distinta também deve ser a análise que o Poder Judiciário faz sobre os diversos contextos de aplicação do Direito Militar. Certamente, a lógica da preservação da soberania do Estado brasileiro e da integridade do território nacional não é a mesma que orienta a intervenção estatal nos conflitos que se verificam internamente, entre cidadãos brasileiros.


A Constituição da República ainda faz distinção entre os crimes militares próprios e impróprios ao dispensar o flagrante, bem como a ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, apenas para os crimes militares próprios, no inciso LXI de seu art. 5º.


Também não se pode esquecer que a Constituição da República e o próprio Código Penal Militar fazem distinção entre os crimes militares praticados em tempo de paz e os praticados em tempo de guerra. Tal distinção evidencia que a intervenção judicial repressiva em tempos de paz não pode obedecer a mesma lógica que orienta tal intervenção em tempos de guerra, de modo que o Poder Judiciário também neste aspecto deve fazer considerações diferenciadas.


Dessa forma, a interpretação judicial sobre os crimes militares deve levar em consideração todos estes aspectos peculiares para oferecer a resposta estatal mais adequada aos casos concretos submetidos a julgamento. Não se pode trabalhar com simplificações que massificam a operação do Direito Militar, como se o seu contexto de aplicação fosse único.



5 Princípio Constitucional da Isonomia


No âmbito da Justiça Militar estadual é necessário considerar a observância ao princípio constitucional da igualdade, já que as instituições militares estaduais integram um sistema de defesa social do qual também participam instituições civis.

Como deixa claro o art. 144 da Constituição da República, a Polícia Militar, o Corpo de Bombeiros Militar e a Polícia Civil são instituições públicas encarregadas de prestar serviços inerentes ao direito fundamental do cidadão à segurança pública e integram o mesmo sistema de defesa social.


Em se tratando de combate à criminalidade, nos termos da planificação constitucional, as polícias militares e civis estaduais exercem atividades complementares. Formalmente, cabe à polícia militar realizar as atividades de policiamento preventivo (ostensivo) e a polícia civil as atividades investigativas de polícia judiciária (repressiva). Em regra, os policiais militares recebem as primeiras notícias sobre os fatos de interesse penal e, tomadas as medidas mais urgentes, repassam tais informações à polícia civil para o prosseguimento das providências a cargo do poder público.


A complementariedade das atividades que convergem para a realização dos mesmos objetivos de proteção do cidadão já demonstra a necessidade de tratamento isonômico em relação a todos os agentes públicos envolvidos. A necessidade de tratamento igualitário fica ainda mais evidente quando se percebe que, na prática, o plano constitucional não é observado e cada uma das instituições policiais também realiza atividades que são próprias da outra.


Em muitas situações concretas, as instituições encarregadas da defesa social atuam em conjunto e o militar estadual exerce atividades com policiais e outros servidores civis. No que diz respeito aos aspectos comuns da atividade de garantia do direito fundamental do cidadão à segurança pública, os agentes de todas as instituições devem merecer o mesmo tratamento.


Os aspectos práticos desta premissa podem ser ressaltados na seguinte indagação: se houvesse um policial civil atuando conjuntamente com um policial militar, no caso concreto, haveria razões para permitir a aplicação da pena restritiva de direitos em benefício do policial civil e não permitir que o militar tivesse o mesmo tratamento? A condição de militar constitui causa idônea para que o Poder Público ofereça uma resposta repressiva diferenciada? A resposta, certamente, é negativa.


A professora Cármen Lúcia Antunes Rocha (1990, p. 99), que hoje empresta seu brilho ao Supremo Tribunal Federal, já afirmou que viola o princípio da igualdade material conceder determinadas vantagens apenas para algumas categorias de profissionais do serviço público, enquanto outros, que desempenham suas atividades em iguais condições e com as mesmas propostas de trabalho, ficam afastados do gozo de iguais direitos. A lição foi formulada para criticar o regime jurídico dos servidores. No entanto, é inteiramente aplicável ao tema da aplicação das penas restritivas de direitos, pois o raciocínio expressa a atuação do princípio da isonomia que está consagrado no caput do art. 5° da Carta Constitucional.


Denílson Feitosa (2008, p. 246), por sua vez, tratando especificamente da exigência de representação para os crimes de lesão corporal leve e culposas na Justiça Militar, inicia sua reflexão indagando se “poderia a Lei n. 9.099/1995 tratar diferentemente o réu do processo penal militar relativamente ao réu do processo penal comum?” Em seguida, estabelece a seguinte premissa: “do ponto de vista do princípio constitucional da igualdade, é necessário se determinar o elemento diferencial entre o réu do processo penal comum e o réu do processo penal militar que justifique o tratamento desigual entre eles.” Certamente, o fato de ser militar, por si só, não autoriza distinção de tratamento.


Não havendo elemento diferencial que, de maneira idônea, possa justificar o tratamento diferenciado conferido aos militares estaduais tal tratamento deve ser reconhecido como inconstitucional, por violar o princípio da isonomia.



6 Legitimidade e Racionalidade do Direito


Cabe observar que a operação do sistema normativo não se fundamenta na teoria aristotélica da verdade, que busca encontrar correspondência entre determinada assertiva e a realidade material. A operação do sistema normativo é orientada por meio de construção discursiva racional. O discurso jurídico é essencialmente prático e, para satisfazer a pretensão de correção, deve ser fundamentado racionalmente.


Nas ciências naturais a racionalidade se expressa pela verdade de suas proposições. Mas, nas ciências valorativas, como é o caso do Direito, a racionalidade apenas pode conduzir à ideia de correção de suas assertivas. E a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica, do prestigiado jurista Robert Alexy (2005, p. 5), já nos alertou para o fato de que a legitimidade e a correção das decisões judiciais estão intimamente ligadas à racionalidade que confere universalidade às conclusões obtidas consensualmente.


Muitos operadores do Direito Militar racionalizam de maneira equivocada as questões da Justiça Militar, por se basearem na premissa de que esta se presta à proteção dos princípios da hierarquia e disciplina.


A Constituição da República estabelece que os princípios da hierarquia e disciplina são pilares organizacionais das instituições militares, que constituem apenas meios para a realização dos fins institucionais. Constituem fins das instituições militares da União, conforme o art. 142, a defesa da pátria, a garantia dos poderes constitucionais, e a garantia da lei e da ordem. Por outro lado, constituem fins das instituições militares estaduais, nos termos do art. 144, a preservação da ordem pública, da incolumidade e do patrimônio das pessoas, no contexto do direito fundamental à segurança pública.


Portanto, nem mesmo para as instituições militares a hierarquia e a disciplina constituem um fim em si mesmo. Constituem meios organizacionais peculiares que podem conferir maior eficiência aos serviços públicos prestados pelas instituições militares para o atendimento de suas missões constitucionais. Não podem os juízes da Justiça Militar (que ressaltam sua integração ao Poder Judiciário a partir de 1934) transformar os princípios organizacionais das instituições militares (meios) em sua missão institucional (fins). Ao Poder Judiciário cabe a garantia dos direitos fundamentais do cidadão, que estão expressos na Constituição e nas leis. Pensar que o Judiciário, no âmbito da Justiça Militar estadual, trabalha para preservar a hierarquia e a disciplina é transformar seus juízes em assessores do corregedor de Polícia Militar ou do Corpo de Bombeiros Militar.


O próprio CPM só tem como bens jurídicos a hierarquia e a disciplina em poucos de seus crimes e, por isso, não se pode restringir a lógica da tutela penal à proteção destes bens.



7 Transação Penal


O Supremo Tribunal Federal já decidiu pela inaplicabilidade dos benefícios da Lei n. 9.099/1995 aos militares, após a Lei n. 9.839/1999 ter nela inserido o art. 90-A para afirmar que suas disposições não se aplicam no âmbito da Justiça Militar (STF – HC 80.173). Os Tribunais de Justiça Militar dos Estados de São Paulo e do Rio Grande do Sul comungam do entendimento e também decidem pela inaplicabilidade da Lei n. 9.099 aos militares estaduais.


Realmente, a aplicação dos institutos da transação penal e da suspensão condicional do processo, previstos na Lei n. 9.099, aos processos relativos aos crimes militares encontra o obstáculo formal do art. 90-A da referida lei.


Apesar da formal restrição constante da lei, todos os juízes de primeiro grau da Justiça Militar mineira aplicam os institutos da transação penal e da suspensão condicional do processo, entendendo que materialmente a restrição imposta pela Lei n. 9.839 somente se aplica no âmbito da Justiça Militar da União. O entendimento dos juízes mineiros, de maneira muito pertinente, ressalta a distinção existente entre o contexto de aplicação do Direito Militar para os militares da União e para os militares dos Estados.


A posição dos juízes de primeiro grau da Justiça Militar mineira revela coragem e independência, já que contrariou o entendimento dominante no Tribunal de Justiça Militar sobre o assunto e acabou por estabelecer situação de fato que amenizou os efeitos nocivos de uma legislação que inobserva a necessária harmonia do sistema normativo. Hoje, já se discute no Tribunal se é possível ao beneficiário se arrepender da manifestação que aceitou a transação penal (HC 1.555). E, nessa oportunidade, a Câmara Criminal firmou jurisprudência no sentido de que “a transação penal é instituto que tem lugar no devido processo legal consensual, instituído pela Lei n. 9.099/1995, possibilitando a aplicação de ‘pena restritiva de direitos ou multa’ que são previstas no Código Penal, por meio de decisão condenatória que transita em julgado formal e materialmente.”


Tal postura dos magistrados mineiros se concilia perfeitamente com o Estado Constitucional de Direito. As decisões corajosamente proferidas pelos juízes de primeiro grau da Justiça Militar mineira a colocaram em posição de vanguarda no âmbito das Justiças Militares do país, na medida em que confere tratamento isonômico entre os militares estaduais e os demais servidores civis, em questões que não justificam qualquer distinção. O acerto da posição se evidencia nos casos em que um policial militar pratica crime militar impróprio, cuja pena máxima cominada seja igual ou inferior a dois anos, conjuntamente com um policial civil. Qual argumento racional poderia justificar que o policial civil fosse beneficiado com a transação penal e o policial militar não? Entendo que não existe tal argumento, devendo ambos os agentes públicos encarregados de prestar serviços inerentes à garantia do direito do cidadão à segurança pública receber igual tratamento repressivo.


No contexto em que se insere a atividade dos militares estaduais, não aplicar os institutos penais previstos na Lei n. 9.099 viola o princípio constitucional da isonomia. No aspecto específico da possibilidade da aplicação do instituto da transação penal (e também da suspensão condicional do processo), a condição de militar estadual não constitui elemento diferencial que justifique tratamento desigual em relação aos policiais civis.


A condição de militar e a violação aos deveres que são inerentes às suas funções já foram devidamente considerados pelo legislador para o estabelecimento da cominação da pena reservada ao crime militar. Se a pena cominada ao crime militar é compatível com a aplicação dos institutos da Lei n. 9.099, não se pode impedir a concessão do benefício pelo simples fato de se tratar de militar. A condição de militar impõe suportar alguns ônus que são inerentes às especificidades de suas funções, mas não reduzem os direitos fundamentais do cidadão que ostenta tal qualidade.



8 Substituição da pena privativa de liberdade


A Suprema Corte também já se manifestou no sentido de que a possibilidade de substituição de penas privativas de liberdade por restritivas de direitos, instituída pela Lei n. 9.714/1998, não se aplica aos crimes militares (HC 86079 e RE 273.900-6). Este também é o entendimento do Superior Tribunal Militar (Ap. 2004.01.049688-2 SP). Na doutrina, Jorge Cesar de Assis (2004, p. 93) entende que a substituição somente é cabível na condenação de civis proferida pela Justiça Militar da União.

Com a devida vênia, entendo que a questão ainda não foi bem compreendida.


A jurisprudência do STM tem entendido que não é possível a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direito, pois a legislação penal militar não contempla tal instituto, em razão da especialidade e autonomia do Direito Penal Militar, bem como, pela incompatibilidade da substituição com as peculiaridades atinentes à vida militar e ao militar.


Igualmente pedindo vênia, entendo que a condição de militar e a violação aos deveres inerentes às suas funções, por si só, não constituem causa idônea para o tratamento diferenciado. Em especial, quando se tratar de substituição de pena imposta a militar estadual pela prática de crime em conjunto com policial civil, deve-se considerar a possibilidade concreta da substituição. Novamente, recorrendo à comparação, pergunto: qual argumento racional poderia justificar que o policial civil fosse beneficiado com substituição da pena privativa de liberdade e o policial militar não? Entendo que não existe tal argumento, devendo ambos os agentes públicos encarregados de prestar serviços inerentes à garantia do direito do cidadão à segurança pública receber igual tratamento repressivo.


Mesmo em se tratando de casos submetidos a julgamento perante a Justiça Militar da União, penso que é possível a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. O permissivo legal para tanto (se fosse necessário um, diante da ordem constitucional) é o art. 12 do CP comum, que determina a aplicação das regras contidas em sua parte geral aos fatos incriminados por leis especiais, salvo disposição expressa em contrário. E não há na legislação penal militar nenhum dispositivo expresso vedando a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.


Cabe lembrar que a Justiça Militar vem incorporando em seus julgados muitos dos avanços produzidos no âmbito do Direito Penal comum. Um exemplo marcante disso é a aplicação das regras previstas na legislação comum para o crime continuado. Tratando-se de “continuidade delitiva, a jurisprudência do Superior Tribunal Militar é pacífica no sentido de se aplicar, subsidiariamente, ao art. 80 do CPM, a regra do art. 71, do CPB, por ser esta mais benéfica ao condenado.” (Proc. n. 2002.01.049201-1 PE). Ora, se o crime militar continuado pode ser tratado como dispõe o CP comum, não vejo impedimento para a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos, nos casos previstos em lei.


Na jurisprudência mineira já se verifica a primeira decisão reconhecendo a possibilidade jurídica da substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos e multa. A Câmara Criminal do Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais, no julgamento da Apelação n° 2.512, por maioria de votos, deu provimento ao recurso da defesa apenas para determinar a referida substituição.


A substituição da pena privativa de liberdade por penas restritiva de direitos ou multa, entretanto, não pode ser entendida como direito subjetivo de todo e qualquer condenado. Mas, sim, medida que se mostra adequada conforme as peculiaridades do caso concreto. O juiz do caso concreto, dependendo de suas peculiaridades, saberá se a substituição é medida necessária e suficiente para os fins de reprovar e prevenir o crime.



9. Maior rigor da Justiças Militares



Os operadores da Justiça Militar, com freqüência, ressaltam que os julgamento desta Justiça especializada são proferidos com maior do que os julgamentos proferidos na Justiça comum e tal fato poderia constituir obstáculo à aplicação das penas restritivas de direitos e da multa.


A afirmativa de maior rigor se insere em um contexto de justificação da necessidade da existência da Justiça Militar, que se tornou a última classista no país, e procura fundamentar-se na preservação dos princípios da hierarquia e disciplina. Muitas foram as iniciativas no parlamento que tentaram extinguir a Justiça Militar, em especial a estadual, e o alegado rigor pretende ressaltar a utilidade de um julgamento proferido por militares.


O equívoco da colocação é evidente.


Como já foi observado, o comando normativo do art. 142 da Constituição da República, que estabelece a hierarquia e disciplina como pilares organizacionais das instituições militares, se dirige ao Poder Executivo e não ao Poder Judiciário. Os órgãos do Poder Judiciário não são organizados com base na hierarquia e disciplina, sendo certo que não há qualquer relação hierárquica entre o juiz militar e o réu, também militar.


Por outro lado, uma estrutura do Poder Judiciário que atue de forma parcial, predisposta a impor maiores rigores aos seus jurisdicionados, não merece ser chamada de Justiça. A Justiça não é concebida para ser mais ou menos rigorosa, mas para ser justa e imparcial. Sustentar que a Justiça Militar é mais rigorosa do que a comum indica o desacerto de suas concepções e, ao contrário do que se espera, ressalta a necessidade de sua extinção. A Justiça Militar, federal ou estadual, se insere na estrutura do Poder Judiciário e, como tal, deve se conciliar com a opção política fundamental acolhida na Constituição da República. Desta forma, não se pode admitir que a Justiça Militar seja refratária aos postulados de política criminal adotados pelo Brasil para qualificar a sua intervenção punitiva.



10. Conclusão


De todo o exposto, pode-se chegar à conclusão de que é juridicamente possível a aplicação de penas restritivas de direitos e multa na Justiça Militar estadual e que, atendidos os requisitos legais, há direito público subjetivo de que a pena privativa de liberdade seja substituída por penas menos gravosas. A aplicação de penas restritivas de direitos e de multa na Justiça Militar estadual materializa intervenção qualificada do poder punitivo estatal que se concilia com as premissas do Estado Democrático e Constitucional de Direito.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. São Paulo: Landy, 2005.

ASSIS, Jorge Cesar de. Direito militar: aspectos penais, processuais penais e administrativos. Curitiba: Juruá, 2004.

GOMES, Luiz Flávio; VIGO, Rodolfo, Luis. Do estado de direito constitucional e transnacional: riscos e precauções. São Paulo: Premier Máxima, 2008.

PACHECO, Denilson Feitosa. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2008.

ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. O princípio constitucional da igualdade. Belo Horizonte: Lê, 1990.

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