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  • Jorge Cesar de Assis

Supremo equívoco

Recurso em Habeas Corpus 182.161, ou: 1) o STF julgando contra a própria jurisprudência; 2) o RISTF como obstaculizador[1] do duplo grau de jurisdição



“... e agora, quem poderá me ajudar? ...”


O Supremo Tribunal Federal, em recente julgado, mantendo decisão monocrática do relator, negou seguimento ao recurso ordinário em habeas corpus nº 182.161, ao fundamento de que a decisão atacada estava de acordo com a jurisprudência dominante do tribunal. Da decisão inicial do Relator fora interposto agravo regimental, tendo a Turma mantido a decisão de não seguimento do recurso. Entendendo que a decisão padecia de contrariedade e omissão, sobrevieram tempestivos embargos declaratórios.


A 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, ao cabo da Sessão Virtual de 7.8.2020 a 17.8.2020, por unanimidade, negou provimento aos embargos de declaração e, por maioria, determinou a certificação do trânsito em julgado, com a consequente baixa imediata dos autos, independentemente da publicação do acórdão, nos termos do voto do Relator, vencido, nesse ponto, o Ministro Marco Aurélio, o qual, ainda que não acolhesse os embargos entendia possível novos embargos.


Na espécie, tratou-se do Agravo Regimental contra o não conhecimento de Recurso (ORDINÁRIO) no Habeas Corpus (RHC) 182.161[2], interposto em face da decisão do Superior Tribunal Militar que indeferiu o pedido de HC, não reconhecendo assim a extinção da punibilidade do agente em face da prescrição da ação penal militar[3].


Com a devida vênia, da mesma forma como ocorreu no Superior Tribunal Militar, equivocou-se o eminente Relator e com ele a colenda 1ª Turma [e assim negaram o “direito” ao paciente], ao proceder ao exame de admissibilidade do RHC, como será devidamente demonstrado na sequência.



Contextualizando os fatos


O recurso ordinário em habeas corpus, buscou, no STF, a decretação da extinção da punibilidade do paciente, pela prescrição da ação penal militar (art. 125, inciso VI, combinado com seu § 5º, inciso I, tudo do Código Penal Militar) a que responde perante a 2ª Auditoria da 2ª Circunscrição Judiciária Militar.


O oficial fora denunciado pelo Ministério Público Militar, em data de 22 de maio de 2014, como incurso nos dispositivos do art. 188, inciso II, do Código Penal Militar (deserção pelo fato de deixar de se apresentar a autoridade competente, dentro do prazo de oito dias, contados daquele em que terminara a licença que lhe fora concedida), crime este que teria sido consumado às zero horas do dia 28 de janeiro de 2014, sendo que a denúncia foi recebida pelo então Juiz-Auditor Substituto (Juiz Federal Substituto da Justiça Militar) em data de 20 de junho de 2104.


Desde então, o processo permanece no aguardo da apresentação voluntária ou captura do oficial desertor, nos termos do art. 454, § 4º, do Código de Processo Penal Militar.


Os motivos que levaram o paciente a desertar da Marinha Brasileira, conquanto sejam importantes para o conhecimento real dos fatos não serviram de fundamento para o pedido de trancamento do processo de deserção no qual ele figura na condição de acusado. São desnecessários. Seja porque não se contesta a consumação do crime de deserção, seja porque o pedido se prendeu a fundamentos única e exclusivamente de mérito, questão de direito, de ordem pública, que deve ser declarada a qualquer momento, qual seja: a ocorrência da prescrição da ação penal (Código Penal Militar, artigos 123, inciso IV; 124; 125, inciso VI; 125, § 5, inciso I).



Da interpretação equivocada acerca da jurisprudência pacífica do STF, conciliando o art. 132 e o art. 125, inciso VI, do Código Penal Militar


As razões do Recurso Ordinário em Habeas Corpus demonstraram, extreme de dúvidas, que existe uma diferença gritante entre o processo de deserção de oficial e o processo de deserção das praças, razão pela qual, o art. 132 do Código Penal Militar[4] não poderia ser o fundamento determinante da decisão naquela oportunidade agravada.


O referido art. 132, data de 1.969, com a redação original do CPM. E, dirigia-se tanto aos oficiais quanto às praças das Forças Armadas, para significar o seguinte: que enquanto estivessem ausentes, ainda que decorrido o prazo geral da prescrição, que é de 4 (quatro) anos, nos termos do art. 125, inciso VI do Código, o desertor somente teria extinta sua punibilidade quando alcançasse o limite temporal previsto na lei penal militar, possibilitando sua prisão a qualquer tempo.


O Supremo Tribunal Federal, por conta da prática de segundas deserções cometidas pelo mesmo militar, culminou reconhecendo a validade do art. 132, efetuando a seguinte conciliabilidade das normas geral e especial da prescrição do crime de deserção: Desertando pela primeira vez, e estando ausente, na condição de “trânsfuga”[5] para usarmos a linguagem adotada pelos tribunais, o desertor permanece sujeito à regra do art. 132 do CPM (não existe, aqui, processo, simplesmente a deserção). Ao ser capturado ou tendo se apresentado voluntariamente, é preso. Ao ser oferecida a denúncia pelo Ministério Público Militar, instaura-se (inicia-se) o processo penal militar e, naturalmente, ocorre uma causa de interrupção do prazo prescricional, prevista no art. 125, § 5º, inciso I, do Código Penal Militar. Para este processo agora instaurado, vale a regra geral da prescrição do art. 125, inciso VI (4 anos), que começa a contar do dia do recebimento da denúncia.


Na prática, são inúmeros os casos em que este militar – que está respondendo ao processo pelo crime de deserção – seja colocado em liberdade, e cometa uma segunda deserção, e assim, ainda que esteja respondendo a um primeiro processo, naturalmente se colocará na condição de ausente, “trânsfuga”, como sói ser chamado apesar da imperfeição técnica do termo.


Então, o que definiu o STF em sua jurisprudência dominante e pacífica sobre esse tipo de situação é que, para a primeira deserção, a instauração do processo penal militar interrompeu o prazo prescricional, que recomeça a contar, pela regra geral, a partir da data do recebimento da denúncia, prescrevendo em 4 (quatro) anos, desde que não ocorra a redução do prazo prevista no art. 129 da lei penal militar.


Já para a segunda deserção, em que o militar permanece na condição de trânsfuga, vale a regra do art. 132 do CPM.


Em que consiste, portanto, a conciliabilidade definida pelo STF? Consiste no fato, simultâneo, de um militar, estar sujeito à regra do art. 132 (regra especial) pela consumação da segunda deserção e, ao mesmo tempo, figurar como réu no processo da primeira deserção, ficando, agora, sujeito à regra geral da prescrição, prevista no art. 125, VI, do Codex castrense.


Até o advento do julgamento do RHC 182.161, essa posição dominante da Corte Suprema, estava voltada, única e exclusivamente para casos versando sobre segunda deserção de praças, e não de oficiais.

Todos os precedentes do STF, usados para fundamentar o questionado acórdão do Superior Tribunal Militar, quando denegou o pedido de habeas corpus, assim como todos os precedentes igualmente lançados na r. decisão do ilustre Relator que negou seguimento ao ROHC, são todos, indiscutivelmente, referente a processos de deserção de praças e não de oficiais.[6]


Não havia, no Supremo Tribunal Federal, precedente semelhante ao alegado no ROHC 182.161 (deserção de oficial x extinção da punibilidade pela prescrição da ação penal ou do processo penal).


É que a deserção de oficial apresenta uma característica que a torna diversa da deserção de praças. Até a edição da Lei nº 8.236, de 29.09.1991, o procedimento aplicável para crime de deserção era o mesmo, tanto para as praças como para os oficiais.


Com o advento da nova lei, que incidiu sobre dispositivos do Código de Processo Penal Militar, a deserção de oficial passou a apresentar característica diversa da deserção de praças, repercutindo de forma sensível no prazo prescricional do CPM. É que a deserção de oficial, ao contrário do que ocorre na deserção de praças, tem rito diverso.


Em primeiro lugar, o oficial não é excluído de imediato como ocorre com as praças. Conforme o § 1º do art. 454, do CPPM, o oficial desertor será agregado, permanecendo nessa situação ao apresentar-se ou ser capturado, até decisão transitada em julgado.


Em segundo lugar, nos termos do § 2º, do art. 454, do CPPM, feita a publicação, a autoridade militar remeterá, em seguida, o termo de deserção à auditoria competente, juntamente com a parte de ausência, o inventário do material permanente da Fazenda Nacional e as cópias do boletim ou documento equivalente e dos assentamentos do desertor.

Por sua vez, o § 3º assevera que, recebido o termo de deserção e demais peças, o Juiz-Auditor [juiz federal da justiça militar] mandará autuá-los e dar vista do processo por cinco dias, ao Ministério Público, podendo este requerer o arquivamento, ou que for de direito, ou oferecer denúncia, se nenhuma formalidade tiver sido omitida, ou após o cumprimento das diligências requeridas.


Por fim, nos termos do § 4º, recebida a denúncia, o Juiz-Auditor [juiz federal da justiça militar] determinará seja aguardada a captura ou apresentação voluntária do desertor.


Ou seja, esta é a grande diferença: na deserção de oficial o Ministério Público oferece denúncia mesmo com o militar na condição de trânsfuga, o que, a toda evidência não ocorre na deserção das praças, estáveis ou não.

Com efeito, nos termos do art. 35, do CPPM, o processo inicia-se com o recebimento da denúncia pelo juiz[7] e efetiva-se com a citação do acusado. Na deserção de oficial, a citação do acusado, somente será feita após a captura ou apresentação voluntária do desertor[8].

Mas o processo já se iniciou, e isso o E. Superior Tribunal Militar insiste em olvidar-se, como o fez, por ocasião do julgamento da decisão ora recorrida. E agora, este entendimento equivocado ganhou o reforço do Supremo Tribunal Federal.


CONCLUSÃO: o § 4º, do art. 454, do CPPM, com a redação que lhe deu a Lei 8.236/91, em que pese ser de NATUREZA PROCESSUAL, SEQUENCIALMENTE PRODUZ EFEITOS DE NATUREZA MATERIAL, ao incidir exatamente no dispositivo do Código Penal Militar que trata da INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO.


Vale afirmar que não está em discussão a recepção pelo STF, do art. 132 do CPM, mas sim o seu alcance quando da ocorrência de deserção de oficial, visto que, neste caso, ao contrário do que acontece com as praças, o desertor é denunciado, e se recebida a denúncia, este fato interrompe a prescrição, nos exatos termos do art. 125, § 5º, inciso I, do Código Penal Militar.


Nenhum dos ilustres Ministros do Superior Tribunal Militar, nem mesmo o ilustre Relator do RHC 182.161, e nem mesmo os demais integrantes da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, efetuou o cotejo dos dispositivos atinentes ao caso concreto: 454, § 4º, do CPPM + 125, § 5º, do CPM + 125, inciso VI, do CPM.


Melhor seria volver os olhos para o moderno processo penal e sepultar mesmo o art. 132, do CPM[9], que aliás, tem sofrido severas críticas, como a que foi feita por Alexandre Saraiva, quando desfechou:


A prescrição possui natureza jurídica de causa extintiva da punibilidade, isto é certo! Porém, vem o art. 132 criar uma aberração: a suspensão da eficácia do instituto, determinando que a extinção da punibilidade só ocorra, efetivamente, quando o desertor atingir a idade de 45 ou 60 anos, conforme seja praça ou oficial. Na verdade, os prazos prescricionais são contados de acordo com a regra do art. 125, apenas o principal efeito de sua superação, a extinção da punibilidade, é que sofre adiamento. Ora, a postergação não guarda menor sentido que a justifique, além de ensejar a inédita possibilidade de uma ‘quase-imprescritibilidade’. Basta imaginar a deserção cometida por um jovem tenente de 20 anos. Por quatro décadas permanecerá sujeito à persecução criminal. Melhor seria que tivesse praticado um crime sancionado com a pena de morte, pois ficará sujeito a um prazo prescricional 25% menor: 30 anos (art. 125, I)[10].


A crítica, correta, recebeu o endosso abalizado de Paulo Roberto de Freitas Silva[11].



Do não reconhecimento, pelo STF, da sua própria jurisprudência pacífica quanto ao recebimento da denúncia como marco interruptivo da prescrição.


Não existe dúvida quanto ao fato de que o recebimento da denúncia interrompe o curso da prescrição, que recomeça a contar dali para frente.


A doutrina especializada tem o mesmo entendimento: No magistério de Cícero Robson Coimbra Neves e Marcello Streifinger, “além das causas de suspensão da prescrição punitiva, o Código Castrense enumera casos em que essa prescrição se interrompe, especificamente nos incisos do § 5º do art. 125. Por esse dispositivo, a prescrição se interrompe pela instauração do processo inciso I) e pela sentença condenatória recorrível (inciso III). Com a interrupção, o prazo prescricional volta ao início[12]”; no mesmo sentido a lição de Rosseto, para quem “as causas de interruptivas obstam o prazo prescricional que estavam em curso e obrigam ao recomeço da contagem até se atingir a próxima causa interruptiva. As causas interruptivas ‘zeram’ a contagem, não levam em conta o período anterior à interrupção. As causas interruptivas são: I – instauração do processo, que é a data do recebimento da denúncia. O despacho do juiz auditor ou do juiz de direito que recebe a denúncia, interrompe o prazo prescricional[13]”; o festejado Nucci, desfecha: interromper a prescrição significa recomeçar, por inteiro, o prazo prescricional. Ex.: se após o decurso de 2 anos do lapso prescricional, de um total de 4 anos, houver a ocorrência de uma causa interruptiva, o prazo recomeça a correr integralmente (...) portanto, o oferecimento da denúncia é o início da ação penal, mas somente seu recebimento pelo juiz equivale ao ajuizamento da demanda[14]”.


Curiosamente, o próprio Supremo Tribunal Federal tem entendimento pacífico sobre a interrupção do curso da prescrição pelo recebimento da denúncia. Nesse sentido, vale trazer a lume, a decisão dada ao Habeas Corpus nº 84.606-8-SP[15], onde se discutiu, inclusive se o aditamento da denúncia configuraria ou não causa de interrupção, ficando assentado que “as causas que ensejam a interrupção estão descritas no art. 117 do Código Penal [art. 125, § 5º, do CPM], não sendo possível a ampliação do rol para nele fazer incluir o aditamento da denúncia”. Nesse sentido: HC 69.798-RJ, relator Min. Marco Aurélio, DJ de 19.2.93; e RHC 49.295-RS, relator o Min. Bilac Pinto, DJ de 10.11.71.


Da mesma forma, o STF, também no Habeas Corpus nº 109.635-Espírito Santo, onde a 2ª Turma, considerando que entre o recebimento da denúncia primitiva e a data do julgamento, já havia se passado mais de 8 anos [quando o prazo prescricional era de 4 anos], sem a prolação de sentença condenatória, declarou a prescrição da pretensão punitiva estatal[16].


Mas não é somente isso, no julgamento da Extradição nº 457-3 – Estados Unidos da América[17], o Pleno da Corte Suprema brasileira, julgando o pedido de extradição de americano domiciliado no Brasil à época, deferiu, em parte o pedido, ressalvando os crimes onde, pela semelhança da lei americana com a lei penal brasileira, estariam prescritos, fixando, na r. ementa, que “a pronúncia prevista no direito americano, decorrente de atividade do Júri de Instrução, tem contornos equivalentes à denúncia do direito brasileiro, já que consubstancia a admissibilidade da acusação, e envolve e também, crimes patrimoniais”.


O entendimento do STF no tocante à extradição quando ocorresse a hipótese de prescrição da ação penal em decorrência da interrupção do prazo pelo recebimento da denúncia, repetiu-se, também na Extradição nº 1.450 – DF, requerente o Governo da Argentina, onde a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, deferindo em parte a extradição requerida, reconhecendo a “Dupla tipicidade configurada”, assim como a “Dupla punibilidade”, em face do Direito argentino, onde existe a “Previsão de interrupção da prescrição pela citação”, que identifica “Correspondência à interrupção da prescrição pelo recebimento da denúncia, no direito brasileiro”. Desta forma, foi decretada a Extinção da punibilidade, de acordo com o direito brasileiro, em relação aos crimes apenados com pena máxima de até quatro anos de reclusão[18].


Ao não aceitar que o recebimento da denúncia interrompe o prazo prescricional, que recomeça a contar a partir daí, o Superior Tribunal Militar faz tábula rasa do entendimento da Corte Suprema [e o STF também ignorou sua posição pacífica], isto porque:


- O recebimento, pelo magistrado, da denúncia ofertada pelo Ministério Público, REALMENTE INTERROMPE O CURSO DA PRESCRIÇÃO, conforme previsto no art. 125, § 5º, do Código Penal Militar [art. 117, I, do Código Penal] e a copiosa jurisprudência do STF;


- Dizer que o prazo prescricional se interrompe, significa que ele voltará a correr a partir daquela data. Pelos termos do art. 125, § 5º, inciso I, do CPM, esta interrupção se dá pela instauração do processo.


- No vernáculo, “instauração” significa: o “ato de instaurar”, de “dar início a algo que não existia”; de “inauguração”.


- O processo, nos termos do art. 35, do Código de Processo Penal Militar, “inicia-se [instaura-se] com o recebimento da denúncia pelo juiz”. Este comando está repetido no art. 396, do CPPM: Art. 396. “O processo ordinário inicia-se com o recebimento da denúncia”.


Uma vez interrompido o prazo da prescrição pelo recebimento da denúncia, o novo prazo passa a ser contado pela regra geral, aquela do art. 125, inciso VI, do CPM, e a prescrição da ação penal pelo crime de deserção, irá acontecer em 04 (quatro) anos a partir do recebimento da inicial acusatória.

No caso do processo penal militar objeto do RHC 182.161, a prescrição da ação penal militar já ocorreu, ainda que por equívoco inescusável não tenha sido reconhecida pelo Superior Tribunal Militar e nem pela Corte Suprema.



O Regimento Interno do STF como obstaculizador do duplo grau de jurisdição


O julgamento do RHC 182.161 demonstrou, ainda, que a 1ª Turma do Pretório Excelso, com base em seu regimento interno, simplesmente obstaculizou o duplo grau de jurisdição.


É que o duplo grau de jurisdição, na lição sempre precisa de Renato Brasileiro de Lima, deve ser entendido como a possibilidade de um reexame integral (matéria de fato e de direito) da decisão do juízo a quo, a ser confiado a órgão jurisdicional diverso do que a proferiu e, em regra, de hierarquia superior na ordem judiciária, isso em razão de fundamentos seguros, como a falibilidade do magistrado e o inconformismo do jurisdicionado.


O festejador doutrinador prossegue lembrando que apesar de não estar assegurado de modo expresso na Constituição Federal, parte da doutrina entende que o direito ao duplo grau de jurisdição encontra-se inserido de maneira implícita na garantia do devido processo legal (CF, art. 5º, inciso LIV) e no direito à ampla defesa (CF, art. 5º, LV), com os recursos a ela inerentes, e isso sem contar a própria previsão constitucional que estabelece que os tribunais são dotados de competência originária e em grau de recurso seria uma demonstração evidente da constitucionalidade do duplo grau de jurisdição[19].


Ora, o ilustre Relator negou seguimento ao RHC 182.161, com fundamento no art. 21, § 1º, do RISTF, pelo que, pede-se vênia para a transcrição do dispositivo apontado:


Art. 21. São atribuições do Relator:

(omissis)

§ 1º § 1º Poderá o(a) Relator(a) negar seguimento a pedido ou recurso manifestamente inadmissível, improcedente ou contrário à jurisprudência dominante ou à súmula do Tribunal, deles não conhecer em caso de incompetência manifesta, encaminhando os autos ao órgão que repute competente, bem como cassar ou reformar, liminarmente, acórdão contrário à orientação firmada nos termos do art. 543-B do Código de Processo Civil. (Redação dada pela Emenda Regimental n. 21, de 30 de abril de 2007)


De plano se diga [e esta é uma presunção iuris tantum] que tal atribuição regimental concedida ao relator não possui amparo legal, muito menos constitucional.


E daí se infere que o retro citado dispositivo regimental (em rol fechado, taxativo) admite as seguintes hipóteses de negativa de seguimento do recurso, as quais serão demonstradas por serem incabíveis para fundamentar a r. decisão que negou seguimento ao RHC. Desnecessária qualquer consideração sobre incompetência manifesta:


a - Recurso manifestamente inadmissível: Parece não existir dúvida que o RHC é o recurso cabível, e, portanto, admissível, da decisão proferida em última instância pelo Superior Tribunal Militar - STM (CF, art. 102, II, ‘a’).


b - Recurso manifestamente improcedente: Além de caber a mesma fundamentação do parágrafo anterior, não há como olvidar que o próprio Presidente do STM, ao receber o recurso na instância ‘a quo’, considerou o feito regularmente instruído, determinando sua subida ao STF. Aliás, tecnicamente falando, a eventual improcedência do pedido somente pode ser declarada por ocasião do julgamento do recurso, o que ainda não ocorreu e pela não aceitação do recurso ordinário, não irá ocorrer.


c - Recurso contrário à jurisprudência dominante ou à súmula do Tribunal: aqui residiu o equívoco do i. Relator ao negar seguimento ao RHC e da 1ª Turma ao referendar a decisão. É que a tese esposada pelo paciente ainda não foi analisada pelo Supremo Tribunal Federal, não podendo, portanto, ser considerada incluída na jurisprudência dominante da Corte.



Das contradições e omissões que não foram sanadas pelos embargos declaratórios


O i. Relator do RHC 182.161, negando provimento aos embargos, o fez pela costumeira forma, genérica, não enfrentando os pontos alegados, limitando-se a assinalar, como sói acontecer, não assistir razão ao embargante, que se limitou a reiterar, de forma resumida, parcela os argumentos da impetração. Ressaltou, igualmente, que os embargos de declaração somente são cabíveis quando houver, no acórdão recorrido, ambiguidade, obscuridade, contradição ou omissão, e que as teses levantadas nos embargos declaratórios, quanto à existência de contradição, obscuridade ou omissão, não se sustentam. Para ele, na hipótese sub examine, todas as questões postas foram analisadas de forma clara, aplicando-se a jurisprudência desta Corte. Mas, com a devida vênia, não é o que se verificou, senão vejamos:


1ª contradição que não foi sanada


O ilustre Ministro Relator negou seguimento ao RHC 182.161, sob o fundamento de que, consoante assentado na fundamentação do Tribunal a quo “o paciente encontra-se na condição de trânsfuga, o que não se altera em face de já ter sido deflagrada a Ação Penal Militar em seu desfavor por Deserção, com o recebimento da Denúncia em 20/6/2014, sendo-lhe aplicável, portanto, no que diz respeito à prescrição, os ditames do art. 132 do CPM”.


Com o devido respeito, insistimos que a fundamentação restou equivocada, visto que todos os precedentes do Supremo Tribunal Federal que serviram de base para a decisão do Superior Tribunal Militar, e do i. Ministro Relator, e por extensão da 1ª Turma não se aplicam ao caso presente, conforme vem sendo demonstrado desde a interposição do RHC, ainda que até agora não tenha sido analisado o vagar que se lhe impunha.


Da 2ª contradição que não foi sanada


Independente da questão contraditória da aplicação do entendimento do Supremo Tribunal Federal, posta como fundamentação da r. decisão ora atacada, permanece uma outra contradição que não foi sanada no sentido de que, ao se negar seguimento ao RHC, a r. decisão da 1ª Turma do STF, com base no voto do ilustre Ministro Relator impediu o exercício do duplo grau de jurisdição em uma recurso de competência originária, com previsão constitucional, senão vejamos:


É que o Recurso Ordinário em Habeas Corpus, nos exatos termos do art. 102, inciso II, letra ‘a’, da Constituição Federal, demonstra que esta espécie recursal é COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO STF, com toda certeza não se trata de mero inconformismo recursal já que a decisão que impede o seguimento do RHC, à toda evidência afasta do paciente, seu legítimo e constitucional direito de ver sua irresignação julgada pela Corte Suprema.


Sabe-se que a Suprema Corte brasileira possui um número enorme de feitos, decorrência, com certeza de um modelo que necessita ser aprimorado. Mas não abreviado porque cada direito individual pretendido – por mais insignificante que pareça - merece a devida atenção.


Quando a Constituição Federal quis impor condições ao STF para o recebimento de recursos, o fez de forma expressa, v.g., como no recurso extraordinário, art. 102, inciso III, alíneas ‘a’ até ‘d’, acrescido de seu § 3º, pela necessidade de demonstração da repercussão geral das questões constitucionais discutidas, nos termos da lei, previsão que em relação ao recurso ordinário em habeas corpus, a Carta Magna não fez.



Da omissão, tanto da decisão objeto do RHC, como do i. Ministro Relator, acerca de questão sobre a qual deveria se manifestar, já que devidamente apresentada pelo paciente


Tanto a 1ª Turma, como o ilustre Ministro Relator, da mesma forma como fora feito no STM, não se manifestaram sobre a questão colocada pelo paciente no RHC 182.161, acerca da posição do STF sobre o fato incontestável de que o recebimento da denúncia interrompe o prazo prescricional, e dessa forma tem inegável repercussão na prescrição da ação penal militar.


Por fim, cabe destacar que o eminente Relator sequer enfrentou os pontos principais das argumentações suscitadas pelo paciente postas no RHC 182.161.


Com efeito, é possível verificar na decisão que negou seguimento ao RHC, que o e. Relator, simplesmente se reporta aos fundamentos expendidos, tanto no acórdão vergastado do Superior Tribunal Militar, como igualmente no parecer do Ministério Público Militar, utilizando-se do recurso da chamada fundamentação per relationem [também denominada motivação por referência ou por remissão mas que poderia mesmo ser chamada de fundamentação conveniente], de todo rechaçada pelo § 3º, do art. 1.021, do NCPC: “É vedado ao relator limitar-se à reprodução dos fundamentos da decisão agravada para julgar improcedente o agravo interno”.


Não se desconhece que a chamada “técnica da fundamentação per relationem” é reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal como legítima e compatível com o disposto no art. 93, IX, da Constituição Federal No entanto, o uso de tal motivação não se pode dar de modo apartado da análise do caso concreto, como verificado na decisão que negou seguimento ao RHC 182.161.



Conclusão


Enfim, não há como deixar de constatar que, ao negar seguimento ao RHC 182.161, a 1ª Turma do STF culminou por julgar contra o entendimento pacífico do próprio Supremo Tribunal Federal por 02 (duas) vezes, seja porque aplicou de forma equivocada a regra do art. 132, do Código Penal Militar, a qual, insistimos, não tem mais cabimento a partir da data em que o oficial foi denunciado e a inicial foi recebida – REAFIRME-SE, o processo de deserção de oficial é diverso daquele destinado às praças, e por isso, iniciado o processo prevalece a regra geral da prescrição, e não a regra específica do art. 132; seja porque é fato jurídico incontestável [e pacificado pelo STF] de que o recebimento da denúncia interrompe o prazo prescricional, e dessa forma tem inegável repercussão na prescrição da ação penal militar. Mas nada disso foi observado!


Claro, ao negar seguimento a um recurso ordinário previsto na própria Carta Magna, o Guardião da Constituição Federal culminou por impedir o exercício do duplo grau de jurisdição.


E agora durma-se com um barulho desses ...




NOTAS


[1] Obstaculizador é uma palavra derivada de obstaculizar, significando impor obstáculos, dificuldades, complicações.


[2] STF, 1ª Turma, RHC 182.161, relator Min. Luiz Fux.


[3] STM, Processo de Habeas Corpus nº 7001167-76.2019.7.00.0000, relator Min. Gen Ex Luis Carlos Gomes de Mattos.


[4] Prescrição no caso de deserção - Art. 132. No crime de deserção, embora decorrido o prazo da prescrição, esta só extingue a punibilidade quando o desertor atinge a idade de quarenta e cinco anos, e, se oficial, a de sessenta.


[5] “(...) Anota Antonio Millán Garrido, que, previsto originariamente na Lex Iulia Maiestatis, o transfugium, que cometia o militar que abandonava o Exército e se passava para o inimigo, foi assimilado ao delito de traição e castigado, inclusive em grau de tentativa, com a pena de morte. Do ponto de vista léxico, o termo “trânsfuga”, do latim trasnfuga, de transfugere (desertar, passar-se para o inimigo), na técnica do Direito Penal Militar assinala o soldado ou o militar, que, desertando das fileiras do exército de seu país, passa a servir o exército inimigo em tempo de guerra. Por esta razão, o trânsfuga não é somente o desertor, soldado que abandona sua bandeira, mas o traidor, porque desertando do serviço de sua pátria, vai servir ao inimigo”. Apud Deserção – um estudo minucioso sobre o crime militar por excelência, Obra coletiva, Curitiba: Juruá, 2016, p.77.


[6] No Supremo Tribunal Federal, vide: HC 79.432, 2ª T., Rel. Min. Nelson Jobim, j. em 14.09.1999 (soldado do Exército); HC 82.075, 2ª T., Rel. Min. Carlos Veloso, j. em 10.09.2002, unânime (soldado do Exército); HC 106.545, 1ª T., Relª. Minª. Carmen Lúcia, j. em 01.03.2011, unânime (soldado do Exército); HC 100.802, 2ª T., Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. em 24.05.2011, unânime (soldado do Exército); HC 104.231, 1ª T., Rel. Min. Marco Aurélio, j. em 08.09.2015, unânime (soldado do Exército); HC 116.364, 1ª T., Rel. Min. Dias Tóffoli, j. em 28.05.2013, unânime (soldado do Exército); HC 112.007, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 11.09.2012, unânime (soldado do Exército).


[7] Esse comando é repetido no art. 396, do Código de Processo Penal Militar: o processo ordinário e inicia com o recebimento da denúncia.


[8] CPPM, Art. 455. Apresentando-se ou sendo capturado o desertor, a autoridade militar fará a comunicação ao Juiz-Auditor, com a informação sobre a data e o lugar onde o mesmo se apresentou ou foi capturado, além de quaisquer outras circunstâncias concernentes ao fato. Em seguida, procederá o Juiz-Auditor ao sorteio e à convocação do Conselho Especial de Justiça, expedindo o mandado de citação do acusado, para ser processado e julgado. Nesse mandado, será transcrita a denúncia. (Redação dada pela Lei nº 8.236, de 20.9.1991)


[9] O malsinado art.132 do CPM/1969, foi outorgado na vigência do AI-5, fato que, por si só, dispensa maiores comentários. A idade de 60 anos para a extinção da punibilidade do oficial desertor, já existia no Código Penal Militar de 1.944 (DL 6.227, de 24.01.44), editado, por sua vez, sob a égide da Constituição nada democrática de 1937. A “Carta Polaca” aumentou em 10 anos a idade anterior que era de 50 anos no 1º Código Penal Militar (Decreto 18, de 07.03.1891, art. 5º).


[10] SARAIVA, Alexandre José de Barros Leal. Comentários à Parte Geral do Código Penal Militar, Fortaleza: ABC Editora, 2007, pp. 227-228.


[11] SILVA, Paulo Roberto de Freitas. A prescrição nos crimes militares, apud Prescrição Penal – Temas atuais e controvertidos, Coordenador Ney Fayet Júnior, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, pp.37-48.


[12] NEVES, Cícero Robson Coimbra; STREIFINGER, Marcello. Manual de Direito Penal Militar, 4ª edição, São Paulo: Saraiva, 2014, p. 674;


[13] ROSSETTO, Enio Luiz. Código Penal Militar Comentado, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 443.


[14] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Militar Comentado, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 210.


[15] STF, HC 84.606-8, 2ª Turma, relator Min. Carlos Velloso, julgado em 05.10.2004. Nesse julgamento, foi deferida a ordem porque entre a data do recebimento da denúncia e do julgamento do HC já havia decorrido o prazo prescricional previsto em abstrato.


[16] STF, 2ª Turma, Habeas Corpus nº 109.635 ESPÍRITO SANTO, relator Min. RICARDO LEWANDOWSKI, julgado em 30.10.2012, DJe de 21.11.2012, ordem concedida de ofício para declarar a extinção da punibilidade do paciente, pela ocorrência superveniente da prescrição da pretensão punitiva.


[17] STF, Pleno, Extradição 457-3-Estados Unidos da América, relator Min. Marco Aurélio, julgado em 10.12.1993.


[18] STF, 2ª Turma, Extradição 1.450 – Argentina, relator Min. Gilmar Mendes, julgado em 20.09.2016. deferida a extradição, em parte, decretando a extinção da punibilidade dos fatos que se encontravam prescritos.


[19] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal – volume único, 4ª edição, Salvador: Jus PODIVM, 2016, pp.1600-1601.



Jorge Cesar de Assis é Advogado inscrito na OAB-PR. Membro aposentado do Ministério Público Militar da União. Integrou o Ministério Público paranaense. Oficial da Reserva não Remunerada da Polícia Militar do Paraná. Membro correspondente da Academia Mineira de Direito Militar. Sócio Fundador da Associação Internacional das Justiças Militares. Coordenador da Biblioteca de Estudos de Direito Militar da Editora Juruá.

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