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  • Ronaldo João Roth

Participação por omissão e a responsabilidade penal nos crimes militares

Generalidades


A responsabilidade penal sempre irá ocorrer após a violação da lei penal, quando configurada a infração penal.


Assim, a responsabilidade penal será sempre individual e deverá ocorrer tanto no delito unissubjetivo como no delito plurissubjetivo. No primeiro, pode existir o concurso eventual de agentes, seja mediante a coautoria ou a participação. No segundo, há o concurso necessário de agentes, quando dois ou mais deles podem praticar o mesmo delito, por concurso.


O título do tema abordado traz a discussão os efeitos da omissão por parte dos militares, daí ter ensejo a seguinte indagação: diante de um crime comum, ou diante de um crime militar, o militar tem o dever de agir?


O Código de Processo Penal Comum (CPP) estabelece a obrigação aos policiais agirem, para efetuar a prisão, em flagrante delito, contra quem pratique o crime comum (art. 302), e dessa forma impõe um dever aos policiais civis e federais e aos militares estaduais, ainda mais porque estes estão englobados na norma constitucional da segurança pública (art. 144).


Surge, assim, a seguinte indagação, ao militar federal (Marinha, Exército e Aeronáutica) cabe o dever de agir diante de um crime comum? Sustentam que não Ione de Souza Cruz e Claudio Amin Miguel[1], justificando a resposta em face da norma do § 5º do art. 144 da Lei Maior que dispôs da preservação da ordem pública aos militares estaduais.


Ocorre que as Forças Armadas passaram a atuar, legalmente, no contexto da Garantia da Lei e da Ordem Pública (GLO), que, por meio da Lei Complementar nº 97/99, conferiu aos integrantes das Forças Armadas o poder de polícia, não só para suas missões constitucionais, mas também para as atribuições legais subsidiárias, de forma que poderão atuar, por meio de ações preventivas e repressivas, na faixa de fronteira terrestre, no mar e nas águas interiores, independentemente da posse, da propriedade, da finalidade ou de qualquer gravame que sobre ela recaia, contra delitos transfronteiriços e ambientais, isoladamente ou em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, executando, dentre outras, as ações de patrulhamento, revista de pessoas, de veículos terrestres, de embarcações e de aeronaves, bem como efetuar prisões em flagrante delito.[2]


Em consequência, a atuação dos integrantes das Forças Armadas, seja em área de fronteira, seja em área do território nacional, em que seja empregada regularmente aquele efetivo no contexto da GLO, cabe-lhes, legalmente, o dever jurídico de agir diante do crime comum, também.


Por sua vez, o Código de Processo Penal Militar (CPPM) estabelece que os militares (federais e estaduais) deverão efetuar a prisão em flagrante delito daquele que pratique crime militar (art. 242), dever esse que, em consequência, excluem os policiais civis e federais, até em harmonia do que dispõe a norma do § 4º do art. 144 da Constituição Federal (CF) de 1988.


Feitas essas considerações, preliminares, trazermos à colação, também, a norma do art. 66, inciso I, da Lei de Contravenções Penais (LCP), que impõe nos crimes de ação penal pública incondicionada o dever de comunicação desse crime à autoridade competente quando houve conhecimento desse fato no exercício da função pública.


Surge, então, aos militares, federais ou estaduais, uma obrigação de agir (ato de ofício) e essa omissão, seja na comunicação do crime de ação penal pública, seja no dever de efetuar a prisão do infrator implicará em crime funcional, podendo responder, conforme o caso, pelo delito de prevaricação, ou pelo delito de condescendência criminosa, ou pela contravenção penal mencionada.


Há ensejo, assim, a distinção entre conivência negativa e da participação por omissão, decorrente do estudo do concurso de pessoas. Pela primeira, o sujeito sem ter dever jurídico de agir, omite-se diante da perpetração de um crime por terceiro, de forma que não há consequência penal pela omissão da participação, a não ser que se configure crime autônomo[3]. Pela segunda, o sujeito tem dever jurídico de agir diante da prática de crime por terceiro, para evitar o crime, incorrendo, se podia agir, no delito que não evitou ocorrer.


A respeito do crimem silente ou da conivência negativa, lecionam Guilherme de Souza Nucci[4] e Anibal Bruno[5], respectivamente:


Conivência: trata-se da participação por omissão, quando o agente não tem o dever de evitar o resultado, nem tampouco aderiu à vontade criminosa do autor. Não é punível pela lei brasileira. É o chamado concurso absolutamente negativo.


Uma atitude totalmente negativa, como a simples presença no ato de consumação ou a não denúncia à autoridade pública de um fato delituoso de que se tem conhecimento não pode constituir participação punível. É chamada conivência.


De se anotar que a participação, seja ela por ação ou omissão, sempre deve ocorrer no iter criminis.


Não se pode afastar a incidência do delito de omissão de socorro (art. 135 do CP), quando exista o dever se solidariedade àquela pessoa que se encontre necessitando de socorro[6].


O crime omissivo é aquele que “o agente não faz o que pode e deve fazer, que lhe é juridicamente ordenado.”[7] Ele divide-se em omissivo próprio e omissivo impróprio. No primeiro, há uma desobediência a uma norma mandamental, que determina a prática de uma conduta, mas que não é realizada pelo agente. Há, como diz Cezar Bitencourt Rodrigues, “a omissão de um dever de agir imposto normativamente.”[8]. No segundo, o agente, além da obrigação de agir, tem de evitar o resultado delituoso.


O tema abordado no título deste artigo, portanto, encontra-se situado dentre os crimes omissivos impróprios e terá repercussão no concurso de agentes.



Desenvolvimento


A participação pode ocorrer por ação ou por omissão. Nesta, há exigências específicas para sua caracterização como “uma conduta inativa voluntária, quando ao agente cabia, na circunstância, o dever jurídico de agir, e ele atua com a vontade consciente de cooperar no fato”[9], e ainda a possibilidade de agir.


Estabelece o CPM no concurso de agente a teoria monista, de forma que “Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas.” (art. 53), e como causa do crime, tanto “a ação como a omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido” (art. 29).


A participação criminal por omissão, portanto, é a situação daquele que, aderindo a conduta criminosa de outrem, e tendo o dever jurídico de agir, omite-se diante de uma infração penal que deveria e podia evitar. Nas palavras de Jorge Cesar de Assis, para o garantidor, “se não agir para evitar o resultado, poderá ser responsável por este, a título de dolo ou culpa”[10].


No entanto, Nelson Hungria[11] destaca que:


Não basta a eficácia causal (sob o prisma lógico-jurídico) da omissão: é necessário, também aqui, o vínculo psicológico que faz inserir a vontade individual na vontade coletiva. Assim, o policial que, faltando com o dever específico, assiste inerte, mas por mera covardia, à prática de um assalto à mão armada, incorre em falta disciplinar, mas não lhe pode ser imputada participação no crime.


Em consequência, é própria dos crimes comissivos por omissão, também chamados de omissivos impróprios, os quais são aqueles delitos em que o sujeito responde pelo resultado previsto em um tipo comissivo pelo fato de ter se omitido em evitá-lo, tendo o dever de fazê-lo.[12]


Esse dever jurídico é imposto àquele que se denomina o garantidor do bem jurídico tutelado, seja por determinação legal, contratual ou pelo risco causado anteriormente (art. 29, § 2º, do CP).


Assim, toma relevo a apreciação do dever de agir por parte do policial militar e do bombeiro militar, e dos militares federais, englobados na norma do § 2º do artigo 29 do CPM, e que corresponde à norma equivalente do § 2º do art. 13 do CP, para os quais “a omissão parece ser mais relevante”[13].


Enquanto nos crimes comissivos há uma norma proibitiva da conduta no preceito primário do tipo, como por exemplo, não matar decorrente do tipo penal de homicídio doloso: matar alguém; nos crimes comissivos por omissão, existe outra norma (chamada de norma de dever de segundo grau), a qual é dirigida a um determinado número de pessoas denominadas garante, que impõe o dever de agir para evitar o crime, se podia faze-lo.[14] Conforme lição de Fernando Galvão, “O tipo penal de crime omissivo impróprio emerge da combinação entre a norma mandamental, que se fundamenta em especial dever de agir, e a norma proibitiva.”[15]


Nessa linha, a lição de Guilherme de Souza Nucci[16]:


Para que alguém responda por um delito omissivo impróprio é preciso que tenha o dever de agir, imposto por lei, deixando de atuar, dolosa ou culposamente, auxiliando na produção do resultado. Exemplo: um policial acompanha a prática de um roubo, deixando de interferir na atividade criminosa, propositadamente, porque a vítima é seu inimigo. Responderá por roubo, na modalidade comissiva por omissão.


Cita, ainda, o renomado autor[17] que a participação por omissão pode ocorrer desde que o omitente tenha o dever de evitar o resultado, e exemplifica mencionando o bombeiro que se omite deliberadamente de combater o fogo, e deverá responder pelo crime de incêndio.


Como já decidiu o STJ: “No crime comisso por omissão, tem-se a evitação que equivale sem ser sinônimo, à causação dos crimes comissivos (HC 7153, 5ª T., Rel. Min. Jane Silva, DJ 13/10/1998).


O crime comissivo por omissão ocorre quando há omissão relevante por parte do agente, de forma que não há de se cogitar do delito de prevaricação, se por exemplo, o agente é um policial militar ou um bombeiro militar, mas a omissão é a causa do resultado delituoso, como bem abordam a questão os renomados autores: Cícero Robson Coimbra Neves e Marcello Streifinger[18].


Afastando a incidência do delito de prevaricação, quando existe o dever de agir, Sérgio Cedano leciona que “o policial militar presente ao desenvolvimento do processo causal (fase de execução e consumação do crime) incorrerá nas penas deste crime, quando deixa de tomar providências necessárias”[19].


Oportuna é a advertência do jurista Jorge Cesar de Assis[20] em relação à conivência, quando o omitente tem o dever jurídico de agir:


se o conivente tem o dever jurídico de agir, como o ‘policial militar que, em serviço, admite acompanhar um civil e, impassível, o assiste aprisionar e conduzir a vítima para lugar ermo, a fim de obrigá-la a confessar o furto de um caíque, é coautor do delito de constrangimento ilegal, capitulado no art. 22, § 1º, do CP Militar, respondendo, também, por coautoria das lesões praticadas no mesmo civil’.


Por outro lado, se, no caso concreto, a conduta do omitente for irrelevante, poderá ele responder pelo delito de prevaricação.


Note-se que a participação por omissão, para se caracterizar, deve ocorrer no iter criminis, no entanto, a conivência, para os militares, pode ocorrer depois de consumado o crime, quando o agente tem ciência do fato e nada faz. Nesse caso, a responsabilidade penal também existe, seja a título da contravenção penal de comunicação do crime a autoridade competente (art. 66 da LCP), seja por condescendência criminosa (art. 322 do CPM), se o fato envolver um subordinado, seja por prevaricação (art. 319 do CPM).


Note-se que o militar que devendo praticar ato de ofício, deixa de praticá-lo ou retardá-lo, por comodismo, que é considerado um interesse pessoal, certamente responderá pelo delito de prevaricação. Nessa linha, se o policial militar deixa de prender aquele que surpreende em flagrante delito, por preguiça, desleixo ou desídia “agem por interesse pessoal de comodismo apto a caracterizar o crime de prevaricação”.[21] Essa posição também é adotada por Alberto Silva Franco et ali[22] ao lecionar que: “o interesse pessoal pode ser de natureza material (patrimonial) ou moral. Este último pode ser identificado até mesmo no caso em que o funcionário trai o seu dever por comodismo, ou para cair nas graças de alguém.” (grifos nossos).


Portanto, se um policial militar presencia outro policial militar ou qualquer pessoa praticar, contra terceiro, lesões corporais, ou um estupro, seu dever é agir para evitar o crime, caso contrário essa omissão será relevante e causa do crime que ele também irá responder. Da mesma forma, um bombeiro militar, diante de um incêndio, tem o dever legal de salvar as pessoas que se encontrem num prédio em chamas, e caso essas vítimas sofram lesão corporal ou homicídio, responderá aquele pela omissão, pois tinha o dever de evitar o resultado delituoso, mas não pelo delito de omissão de socorro (art. 135 do CP) e sim pelo crime culposo decorrente. Nessa linha, Cezar Roberto Bitencourt.[23]


Sobre a participação por omissão, a lição de Anibal Bruno[24]:


Igualmente, haverá participação, se ao que assiste inativo cabe o dever jurídico de intervir para obstar à prática do crime, como é o caso dos agentes de segurança pública. Há, então, participação no crime, por omissão, se com a atitude material do agente concorre o elemento psíquico da participação.


Importante para a caracterização do crime comissivo por omissão é que o omitente tenha o poder de agir no caso concreto para evitar o resultado delituoso.


Como lecionam Cícero Robson Coimbra Neves e Marcello Streifinger[25], existe, na participação por omissão, um nexo normativo que caracteriza o nexo de causalidade entre a conduta negativa do omitente e o resultado delituoso, que não evitou, como causa de uma série de crimes comissivos praticados por meio de conduta omissiva.


Nessa linha, Jorge Cessar de Assis, ao se referir ao garantidor ou garante do § 2º do art. 29 do CPM, leciona: “Como não se pode afirmar que a omissão produza um resultado, pela razão de que ‘o nada causa nada’, o legislador penal militar estabeleceu no § 2º do art. 29, que a relação de causalidade nos crimes omissivos impróprios é normativa.”[26] Ocorre, nas palavras de Francisco Dirceu de Barros, o nexo de evitação.[27]


Há, em verdade, como leciona Damásio Evangelista de Jesus, ao comentar a norma do art. 13, § 2º, do CP, a adoção pelo caput da teoria naturalística, enquanto no § 2º adotou o Código a doutrina normativa.[28] A conduta do omitente, que tem o dever de agir, no crime comissivo por omissão, caracteriza uma tipicidade por extensão pelas normas mencionadas.


Assim, se o omitente, que tem o dever de agir, diante de um crime perpetrado, não age, pratica o delito que deveria evitar, e não o de prevaricação, pois a omissão, como causa, se foi relevante, há participação por omissão do crime perpetrado. Aliás, com a maestria de sempre Cícero Robson Coimbra Neves e Marcello Streifinger[29] lecionam que:


Alinhados ao sistema de segurança pública, estruturado no art. 144 da Lei Maior, os policiais militares têm, inerente ao cargo de militares dos Estados, portanto, em razão da própria lei, o dever jurídico de agir, configurando-se guardiões dos bens jurídicos-penais dos cidadãos. Vale dizer, a omissão do policial militar poderá, em várias circunstâncias, significar a autoria, com base na omissão penalmente relevante, de crime comissivo, e não simplesmente prevaricação, comprovando-se o sentimento pessoal.


Note-se que a participação por omissão, adotada tanto no Código Penal Militar (art. 29, § 2º) e no Código Penal (art. 13, § 2º), é um importante instituto para a adequação típica penal daquele que tem o dever, como garante, de agir e evitar o crime, como ocorre com os policiais militares.


Na lição de Damásio E. de Jesus[30],


a causalidade não é formulada em face de uma relação entre a omissão e o resultado, mas entre este e a conduta que o sujeito estava juridicamente obrigado a realizar e omitiu. Ele responde pelo resultado não porque o causou com a omissão, mas porque não o impediu realizando a conduta a que estava obrigado.


Essa também é lição de Nelson Hungria: “Na participação por omissão, basta, sob o prisma causal, que se não tenha impedido o crime faltando a um dever jurídico. Se este inexiste, a abstenção não é participação, salvo se foi prometida livremente, como condição de êxito da ação criminosa.”[31] Ou na lição de Miguel Reale Junior, um dado naturalístico, sujeito a um enfoque normativo (Parte Geral do Código Penal – Nova Interpretação, p. 43), citado por Guilherme de Souza Nucci.[32]


O STF já decidiu que a causalidade nos crimes comissivos por omissão não é fática, mas sim jurídica (RHC 63.428/SC - RTJ, 116/177-178).


Questão importante, e pouco aprofundada na doutrina, é se saber se a participação por omissão alcança somente crimes de resultado (materiais) ou também crimes de atividade (formais e de conduta)[33]? Em relação aos primeiros, também chamados de matérias ou causais são aqueles que apresentam um resultado naturalístico; sem sua ocorrência o delito é apenas uma tentativa. Ex.: furto, lesão corporal, roubo, etc. No que tange aos segundos, são aqueles que se contentam com a ação humana esgotando a descrição típica, havendo ou não resultado naturalístico. São chamados de formais ou de mera conduta. [34] Ex.: prevaricação, concussão, nos primeiros; dirigir embriagado, portar arma ilegalmente.


Pois bem, em trabalho acadêmico, Cícero Robson Coimbra Neves[35], defendeu a possibilidade daquele instituto de adequação de responsabilidade penal alcançar qualquer crime, posição esta que concordamos.


Em síntese, Coimbra Neves, ao enfrentar a divergência de tratamento do caput do art. 29 do CPM (teoria naturalista) com a norma do § 2º (teoria normativa), sustenta sim ser possível a participação por omissão em crimes formais e de mera conduta, citando como exemplo, nos primeiros a concussão (art. 305 do CPM e art. 316 do CP) citando o seguinte exemplo: “o militar que anuncia ao seu superior hierárquico que fará a exigência indevida, e este, sabendo do intento criminoso, apenas assiste à prática do verbo nuclear por seu subordinado.” E para fortalecer o seu raciocínio, citou a lição de Jescheck:


A jurisprudência e a doutrina aceitam de comum acordo que a maioria dos delitos de comissão a cujo tipo pertence um resultado de lesão ou de perigo, podem ser também cometidos por meio da não evitação de ditos resultados na medida em que exista um dever jurídico de intervir. Mas, todavia, se encontra a opinião de que também nos delitos de simples atividade entra em consideração uma comissão omissiva.[36]


Essa posição vem esposada pelo renomado autor em coautoria com Marcello Streifinger[37], assim se posicionando: Uma série de crimes comissivos, no entanto, podem ser cometidos por meio de conduta omissiva, levando a um resultado típico. São os chamados omissivos impróprios, ou comissivos por omissão, para os quais a averiguação do nexo de causalidade é conveniente.


Ora, se é a própria Lei que estabelece e equipara que a causa do crime à ação à omissão, cabendo nesta última a adoção da teoria normativa do descumprimento do mandamento da Lei, ao contrário daquela que adota a teoria naturalista (crime de resultado), vemos sim possível que possa ocorrer a participação por omissão em todos os delitos, de resultado ou de atividade, dependendo, em cada caso, da prudente análise pormenorizada pelo Juiz para o seu reconhecimento.


Diante dessa distinção de tratamento, e como diz Damásio E. de Jesus: contradição[38], sobre o crime comissivo por omissão, no CP (art. 13 e § 2º) e no CPM (art. 29 e § 2º), bem a calhar é a observação de Heleno Claudio Fragoso no “Anteprojeto do CP de 1969, que, segundo ele, não considerou que a equiparação normativa da omissão à ação não se coaduna com a teoria da condição negativa, que foi acolhida no caput da disposição. Ou a omissão é causa, como condição negativa do resultado, ou só é relevante como causa nas hipóteses em que o agente tem o dever jurídico de impedir o resultado.”[39], de forma que essa questão dá sustentação à incidência da omissão relevante aos delitos de atividade, bem como aos delitos de resultado.


Veja que é possível, até, a ocorrência de um crime omissivo impróprio culposo, como leciona Francisco Dirceu Barros.[40]


Para coroar o entendimento da participação por omissão nos crimes de atividade e não só de resultado, Fernando Galvão[41] leciona que os crimes comissivos por omissão são aplicáveis a todos os delitos, indistintamente, pois, o nexo de causalidade é normativo (criado pela norma), bem como o resultado, e pontifica:


Segundo o tratamento que o Código Penal em vigor conferiu aos crimes comissivos por omissão, é possível que a imputação objetiva refira-se a qualquer das figuras típicas previstas na legislação nacional. Não há qualquer limitação às possibilidades de aplicação do dever especial de agir, como ocorre, por exemplo, para a responsabilidade advinda da produção de resultado lesivo por inobservância os deveres objetivos de cuidado (art. 18, parágrafo único). A omissão penalmente relevante pode verificar-se em crimes materiais, formais e de mera conduta. Como exemplo de crime de mera conduta comissivo por omissão tem-se o tráfico de drogas (previsto no art. 33 da Lei nº 11.343/2006), caracterizado na conduta omissiva do policial que, deliberadamente, omite-se quanto a reprimir o comércio de droga feito em sua presença por traficante, quando devia e podia fazê-lo.


A título de exemplo, se um policial militar, por meio de ligação telefônica negocia um crime (concussão, corrupção passiva, extorsão, tráfico de entorpecente etc.), conluiado com outro policial militar a seu lado, que a tudo presencia e escuta, e esta comunicação telefônica está interceptada por autorização judicial, sem que os interlocutores tenham conhecimento, configurada está a prova da responsabilidade penal do omitente que, tendo conhecimento do crime perpetrado aderiu à conduta do seu colega, e nada faz para evitar o resultado delituoso que se está realizando. Portanto, razoavelmente será alcançado pela norma de extensão da prática do crime, pela participação por omissão (art. 53 c.c. art. 29, § 2º, do CPM)[42], e responsabilizado conjuntamente com o autor do delito.


Note-se que o legislador, em raras vezes, prevê no próprio tipo penal a participação por omissão como ocorre no crime de tortura (art. 1º, § 2º, da Lei 9.455/97) e no delito de amotinamento de presos (art. 182 do CPM). No primeiro delito, dispõe a Lei que, na tortura, “Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.”, norma essa que atende ao comando constitucional de que, nesse crime, responderão “os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem” (art. 5º, inc. XLIII). No segundo delito, a norma penal dirige-se ao Oficial que “estando presente, não usa os meios ao seu alcance para debelar o amotinamento ou evitar-lhe as conseqüências.” (Parágrafo único do art. 182 do CPM). Quando o tipo penal não dispuser de tal norma, incidirá a norma genérica da Parte Geral do CPM (§ 2º do art. 29) ou do CP (§ 2º do art. 13), conforme a natureza do crime, se militar, ou se comum, respectivamente.



Conclusão


A participação por omissão envolve a omissão relevante que recai sobre sujeitos especificados do artigo 29, § 2º, do CPM, e que corresponde ao art. 13, § 2º, do CP.


Nos crimes comissivos por omissão não existe um nexo causal físico, no entanto, para fins de responsabilização criminal a lei considera a existência de um elo entre o omitente e o resultado naturalístico sempre que existir o dever jurídico de agir, para que o responsável possa responder pelo evento delituoso. É o nexo de evitação.


Tanto o Código Penal como o Código Penal Militar tratam do crime comisso por omissão e, diante da mesma norma definida no texto legal, trata de normas hibridas, sendo que no caput (art. 13 CP e art. 29 CPM) há uma orientação naturalística para o resultado, equiparando a ação e a omissão, todavia, no correspondente § 2º, dota o dispositivo penal da omissão relevante, cuja orientação é normativa, desde que o omitente não evite o resultado que podia e devia fazê-lo, enfeixando esta para aqueles considerados legalmente garantidores, ou garantes.


Esse hibridismo legislativo de tratamento à questão da omissão relevante em relação à ação (art. 29, e § 2º, do CPM), leva-nos a aplicação da lição de Kelsen que afirma que a causalidade material pertence ao mundo do ser, regido pelo princípio da causalidade; no mundo axiológico (dever-ser) vige o princípio da imputação[43], como seria o caso dos crimes omissivos por omissão ou omissivos impróprios.


Os delitos comissivos por omissão devem ser condicionados à produção de um resultado, todavia, conforme demonstrado, não se afasta a incidência da participação por omissão nos crimes cujo resultado seja apenas normativo, como ocorre com o crime formal nem de mera conduta.


A valoração da conduta penal diante da omissão relevante fica a cargo do Magistrado que deverá verificar, dentre os sujeitos ativos especificados como garante, ou seja, aquele que devia e podia agir no caso concreto para evitar o resultado delituoso.






NOTAS


[1] CRUZ, Ione de Souza. MIGUEL, Cláudio Amin. Elementos de Direito Penal Militar. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 63.


[2] ROTH, Ronaldo João. Segurança Militar no Estado Federal, inserto no livro “O Federalista Atual”, coordenado por Dircêo Torrecillas Ramos, Belo Horizonte: Arraes, 2013, pp. 377/383.


[3] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – Parte Geral. São Paulo; Saraiva, 2016, Vol.1, p. 367.


[4] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado, São Paulo: RT, 2010, p. 302.


[5] BRUNO, Anibal. Direito Penal - I Parte Geral. Tomo 2. Rio de Janeiro: Forense, 2 ed., 1959, p. 278.


[6] JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal – Parte Geral – Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 279.


[7] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral – Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2008, 1ª ed., p. 235.


[8] BITENCOURT, Cezar Roberto, ib idem.


[9] BRUNO, Anibal. Direito Penal - I Parte Geral. Tomo 2. Rio de Janeiro: Forense, 2 ed., 1959, p. 278.


[10] ASSIS, Jorge Cesar. Comentários ao Código Penal Militar. Juruá: Curitiba, 2017, 9ª ed., p. 176.


[11] HUNGRIA. Nelson. DOTTI, Rene Ariel. Comentário ao Código Penal – Vol. 1, Tomo 2. Rio de Janeiro: GZ, 2016, 7ª ed., p.309.


[12] JUNQUEIRA, Gustavo. VANZOLINI, Patrícia. Manual de Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 233.


[13] ASSIS, Jorge Cesar. Comentários ao Código Penal Militar. Juruá: Curitiba, 2017, 9ª ed., p. 176.


[14] JUNQUEIRA, Gustavo. VANZOLINI, Patrícia. Ib idem.


[15] GALVÃO, Fernando. Direito Penal – Parte Geral. Belo Horizonte: Del Rey. 2009, 3ª ed., p.233.


[16] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Militar Comentado. São Paulo: RT, 2013, p. 61.


[17] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. São Paulo: RT, 2006, 6ª ed., p. 273.


[18]NEVES, Cícero Robson Coimbra. STREIFINGER, Marcello. Manual de Direito Penal Militar. São Paulo: Saraiva, pp. 236/237.


[19] CEDANO, Sérgio. A relevância penal da omissão e o crime de prevaricação. Florianópolis: Revista Direito Militar – AMAJME, 2002, nº 38, nov./dez., p. 38.


[20] ASSIS, Jorge Cesar. Comentários ao Código Penal Militar. Juruá: Curitiba, 2017, 9ª ed., p. 276.


[21] CORRÊA, Bruno Gaspar de Oliveira. O comodismo e o especial fim de agir do crime de prevaricação. Teresina: Revista Jus Navigandi, 2006, capturado em 20.11.19 no Link: https://jus.com.br/artigos/8962/o-comodismo-e-o-especial-fim-de-agir-do-crime-de-prevaricacao


[22] FRANCO, Alberto Silva et alii. Código Penal e sua Interpretação – Doutrina e Jurisprudência – Coordenado por Alberto Silva Franco e Rui Stocco. São Paulo: RT, 2007, 8ª ed., p. 1483.


[23] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2008, 12ª ed., p. 239, que assim se manifesta: “Isso ocorre, por exemplo, naqueles casos tão debatidos, quase sempre chamados pela mídia de omissão de socorro, em que médicos negam-se a atender determinado paciente em perigo de vida, e que em virtude dessa omissão vem a morrer. O crime que praticam, na verdade, não é omissão de socorro, mas homicídio, ainda que culposo, porque o médico tem essa especial função de garantir a não-superveniência de um resultado letal, e esse dever lhe é imposto por lei.


[24] BRUNO, Anibal. Direito Penal - I Parte Geral. Tomo 2. Op. cit., pp. 278/279.


[25]NEVES, Cícero Robson Coimbra. STREIFINGER, Marcello. Op. cit. pp. 236/237.


[26] ASSIS, Jorge Cesar. Comentários ao Código Penal Militar. Juruá: Curitiba, 2017, 9ª ed., p. 175.


[27] BARROS, Francisco Dirceu. Tratado doutrinário de Direito Penal. Leme/SP: JHMIZUNO, 2018, p. 206.


[28] JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal – Parte Geral – Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2010, 31ª ed., p. 292.


[29] NEVES, Cícero Robson Coimbra. STREIFINGER, Marcello. Op. cit., p. 237.


[30] JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. Op. cit., p. 291.


[31] HUNGRIA. Nelson. DOTTI, Rene Ariel. Comentário ao Código Penal – Vol. 1, Tomo 2. Rio de Janeiro: GZ, 2016, 7ª ed., p.308.


[32] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. São Paulo: RT, 2007, p. 213.


[33] NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit. p. 197.


[34] NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., pp. 171/172. Complementa o autor: Embora controversa, há quem estabeleça diferença entre crimes de atividade, vislumbrando situações diversas quanto aos formais e aos de mera conduta. Os formais seriam os crimes de atividade que comportariam a ocorrência de um resultado naturalístico, embora não exista essa exigência (reportamo-nos ao exemplo da prevaricação). Os de mera conduta seriam os delitos de atividade que não comportariam um resultado naturalístico, contentando-se unicamente em punir a conduta do agente (ex.: algumas formas de violação de domicílio e violação de correspondência).


[35] NEVES, Cícero Robson Coimbra. Omissão do garantidor em face da conduta delitiva de terceiro: concurso, autoria colateral ou fato penalmente irrelevante?, Dissertação do Mestrado na PUC/SP, 2008, p. 102/104, capturado no link:

https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/7917/1/Cicero%20Robson%20Coimbra%20Neves.pdf


36 NEVES, Cícero Robson Coimbra. Op. cit, p. 104 (apud Tratado de Derecho Penal - Parte Geral -, cit. p. 649).


[37] NEVES, Cícero Robson Coimbra. STREIFINGER, Marcello. Op. cit., pp. 236/237.


[38] JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. Op. cit., p. 292.


[39] JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. Op. cit., Ib idem.


[40] BARROS, Francisco Dirceu. Op. cit. p. 206.


[41] GALVÃO, Fernando. Direito Penal – Parte Geral. Belo Horizonte: Del Rey. 2009, 3ª ed., pp.233/234.


[42] Tais situações foram processadas e julgadas no Processo-crime nº 87.357/18, da 1ª Auditoria Militar da JME/SP, o qual, devido a sua complexidade, com 53 réus e 73 volumes de autos de IPM, 82 mil horas de horas de interceptação telefônica, e denúncia com 537 laudas, cindiu o referido processo em 42 (quarenta e dois) outros processos-crimes, conforme decisão confirmada pelo TJM/SP no Reexame Necessário nº 160/19 – Rel. Juiz Paulo Adib Casseb – J. 12.03.19.


[43] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 211.


O artigo foi originariamente publicado na Revista Direito Militar – AMAJME -, 2019, nº 138, pp. 9/18.


Ronaldo João Roth é Juiz de Direito da Justiça Militar do Estado de São Paulo, Mestre em Direito, Coordenador e Professor no Curso de Pós-Graduação de Direito Militar da EPD e Professor de Direito Penal na APMBB.

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