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  • Fernando José Armando Ribeiro eGabriela de Sousa

A Constituição democrática e o “princípio” da supremacia do interesse público

1 Introdução


Parte considerável da doutrina brasileira que se ocupa do Direito Público, Constitucional ou Administrativo, comunga do entendimento de que a supremacia do interesse Público sobre o privado configura não apenas um paradigma norteador das ações da Administração Pública, mas um princípio vigente em nosso Ordenamento Jurídico que vincula os cidadãos, o Judiciário e até mesmo o Legislativo.


Para a mencionada corrente doutrinária, a supremacia do interesse público serve como fundamento jurídico para que os órgãos públicos legitimem suas ações em desfavor do particular, apoiados na razão de que tais perdas e restrições à esfera privada dar-se-iam em prol de um interesse coletivo considerado mais importante que necessita ser priorizado.


Esta noção, que se articula a partir de uma hierarquização entre esfera pública e privada, em detrimento da última, sem dúvida recebe influência do paradigma do Estado Social (Welfare State) (CARVALHO FILHO, 2005, p. 19), que permitiu ações ofensivas aos direitos e garantias fundamentais individuais em favor de um suposto interesse público de dimensões superlativas. Além disto, ao fazer remissão a um interesse coletivo, a doutrina favorável ao suposto princípio da supremacia do interesse público, liga-se também, ainda que por vezes de forma irrefletida, às concepções Comunitaristas de bases aristotélicas. Isto se dá, notadamente, em função da acepção de que uma eticidade homogênea deve ser protegida e elevada à condição de elemento determinante do telos social (CRUZ, 2004, p. 155-157), ainda que, para tanto, os direitos individuais tenham de ser ponderados. Isto a leva, a uma ligação com a Jurisprudência de Valores, que entende ser possível o estabelecimento de vetores axiológicos como componentes dos preceitos jurídicos, que se tornam, desta forma, passíveis de graduação (CRUZ, 2004, p. 158).


Contudo, de acordo com os novos parâmetros de racionalidade exigidos no paradigma do Estado Democrático de Direito, e instituídos normativamente pela Constituição brasileira de 1988, faz-se imperioso verificar se estas bases paradigmáticas (Comunitarismo aristotélico, Jurisprudência de Valores e Welfare State) da supremacia do interesse público, adéquam-se ou não a um modelo constitucional democrático, na medida em que operam a partir do pressuposto de homogeneidade social, ou de um bem comum compartilhado por todos.


Ao buscar uma resposta ao problema proposto, isto é, o da adequabilidade do Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Privado tendo em conta o sistema jurídico democrático, é necessário identificar o real significado e possíveis sentidos do termo interesse público (no sentido de se identificar a condição semântica do termo, i.é, a qual objeto a expressão se refere, como também suas raízes teóricas), e se de fato ele se contrapõe ao interesse privado. A partir daí, passa-se a verificar se, em se tratando de campos diferentes, haveria de fato uma estrutura relacional entre as esferas pública e privada hierarquicamente estabelecida que deva implicar na sua sobreposição.


Além disto, neste empreendimento que visa identificar se o dito princípio da supremacia do interesse público sobre o privado é um fundamento apto a fomentar a legitimidade das ações estatais (decisões judiciais e administrativas, atividade legisladora, e atividade executiva) em face ao paradigma do Estado Democrático de Direito, será revisitada a doutrina tradicional clássica publicista e os conceitos com que a mesma opera. A partir de uma nova visão (democrática) que vem se construindo do Direito, e que coloca como seu elemento constitutivo a discursividade procedimentalista – a qual pressupõe que as normas devem ser elaboradas e dimensionadas numa perspectiva intersubjetiva, considerando o interesse de todos os afetados (e assim respeitando o pluralismo característico das sociedades modernas ou pós-convencionais) – os próprios destinatários da norma assumem, concomitantemente, o papel de legisladores, através de procedimentos discursivos que geram não apenas normas de expectativa de comportamento, com também a expectativa de sua correção (HABERMAS, 2004).



2. A supremacia do interesse público


2.1 O conceito de interesse público na doutrina clássica


O significado da expressão Interesse Público, encontra distintas definições na doutrina clássica. Di Pietro (2006, p. 83) associa o termo à ideia de bem comum e de bem-estar coletivo, donde se depreende uma posição nitidamente comunitarista:


Com efeito, já em fins do século XIX começaram a surgir reações contra o individualismo jurídico, como decorrência das profundas transformações ocorridas nas ordens econômica, social e política, provocadas pelos próprios resultados funestos daquele individualismo exacerbado. O Estado teve de abandonar a sua posição passiva e começar a atuar no âmbito da atividade exclusivamente privada. O Direito deixou de ser apenas instrumento de garantia dos direitos do indivíduo e passou a ser visto como meio para consecução da justiça social, do bem comum, do bem-estar coletivo. Em nome do primado do interesse público, inúmeras transformações ocorreram: houve uma ampliação das atividades assumidas pelo Estado para atender às necessidades coletivas, com a conseqüente ampliação do próprio conceito de serviço público. O mesmo ocorreu com o poder de polícia do Estado, que deixou de impor obrigações apenas negativas (não fazer) visando resguardar a ordem pública, e passou a abranger, além da ordem pública, também a ordem econômica e social.


Melhor esclarecendo, a posição comunitarista presente no discurso de Di Pietro revela-se na afirmação de que ao Estado competiu deixar o papel de simples protetor de direitos individuais, para assumir uma postura ativa e intervencionista, visando alcançar o bem comum (ponto a que voltaremos no tópico 2.2).


A questão que se coloca, pois, é do que trataria o chamando “bem comum” compreendido como objetivo a ser perseguido pelo Estado, estabelecendo modos de agir teleológicos.


Celso Antônio Bandeira de Mello (2003, p. 59) afirma que “a estrutura do conceito de interesse público responde a uma categoria lógico-jurídica, que reclama tal identificação”. Deste modo, só será reconhecido como dotado da qualidade de interesse público aquilo que o ordenamento normativo identificar como tal. Portanto, para Mello, o bem comum deve estar jurídico-positivamente previsto.


Contudo, resta aberto o candente problema: qual o critério adotará o legislador para identificar aquilo que, normativamente, deva adquirir a qualidade de interesse público?


Novamente, Mello (2003, p. 56) esclarece que se trata de um equívoco supor que o interesse público consubstancia-se naquilo que se identifica com o interesse do Estado, pois que o denominado interesse público é, na verdade, o plexo dos interesses dos indivíduos enquanto partícipes da Sociedade. Portanto, o interesse público corresponde à dimensão pública dos interesses individuais.


Com isto Mello (2003, p. 55) pretende esclarecer também que o Estado, ou melhor, a legalidade pela qual ele opera não constitui a “mera estruturação formal de um aparelho burocrático tendo em vista balizar, de fora, mediante lei, sua composição orgânica e seus esquemas de atuação. O que se pretendeu e se pretende, a toda evidência, foi e é, sobretudo, estabelecer em prol de todos os membros do corpo social uma proteção e uma garantia.” Portanto, assim, resta compreendido que o Estado não tem fim em si mesmo, que suas regras não são voltadas apenas para a sua manutenção. Deste modo, torna-se possível compreender que, de fato, a supremacia do interesse público não é sinônima da supremacia do interesse do Estado.


Todavia, para Mello, não se nega com isto que a entidade estatal tenha interesses próprios, a fim de garantir a própria manutenção ou até mesmo o lucro, quando se lança na iniciativa privada - Empresas Públicas (CARVALHO FILHO, 2005, p. 380) -, por exemplo. Afinal, enquanto pessoa jurídica que convive em concorrência com todos os demais sujeitos de direito, o Estado também possui interesses que lhe são típicos e que não se confundem com o chamado interesse público. A partir disto, Mello (2003, p. 57) destaca uma distinção já difundida na doutrina publicista italiana: os interesses públicos, propriamente ditos, enquanto uma faceta dos interesses individuais que são estendidos até a dimensão coletiva, são denominados interesses primários do Estado; já os interesses do Estado, que não se confundem com o interesse público, mas que são interesses típicos de uma pessoa jurídica que convive no mundo com outras pessoas e instituições, são denominados interesses secundários:


É que, além de subjetivar estes interesses o Estado, tal como os demais particulares, é também ele uma pessoa jurídica, que, pois, existe e convive no universo jurídico em concorrência com todos os demais sujeitos de direito. Assim, independentemente do fato de ser, por definição, encarregado dos interesses públicos, o Estado pode ter, tanto quanto as demais pessoas, interesses que lhe são particulares, individuais, e que, tal como os interesses delas, concebidas em suas meras individualidades, se encarnam no Estado enquanto pessoa. Estes últimos não são interesses públicos, mas interesses individuais do Estado, similares, pois (sob o prisma extrajurídico), ao interesses de qualquer outro sujeito.


Com isto, “põe-se a nu a circunstância de que não existe coincidência necessária entre interesse público e interesse do Estado e demais pessoas de Direito Público” (MELLO, 2003, p. 56). Contudo, Mello (2003, p. 57) afirma que, na persecução de seus interesses (secundários) o Estado não pode agir de modo a se chocar com os interesses públicos. Nisto residiria uma limitação típica do agir estatal que o diferenciaria do agir das entidades não estatais:


[...] o Estado pode ter, tanto quanto as demais pessoas, interesses que lhe são particulares, individuais, e que, tal como os interesses delas, concebidas em suas meras individualidades, se encarnam no Estado enquanto pessoa. Estes últimos não são interesses públicos, mas interesses individuais do Estado, similares, pois (sob prisma extrajurídico), ao interesses de qualquer outro sujeito. Similares, mas não iguais. Isto porque a generalidade de tais sujeitos pode defender estes interesses individuais, ao passo que o Estado, concebido que é para a realização de interesses públicos (situação, pois, inteiramente diversa da dos particulares) só poderá defender seus próprios interesses privados quando, sobre não se chocarem com os interesses públicos, propriamente ditos, coincidam com a realização deles.


Diante desta compreensão do célebre administrativista, levanta-se a questão se, de fato, no paradigma democrático tal como instituído pela Carta de 1988, isto é, em que os cidadãos devem ser vistos como legisladores, seria admissível a separação entre vontade pública e interesse Estatal, quando este último deve sempre ser visto como expressão da vontade dos próprios governados. Ao buscarmos uma resposta a tal questão, é necessário compreender adequadamente o que seja a Democracia procedimentalista, aqui defendida.



2.1.1 Revisitando a separação entre interesse estatal e vontade pública a partir da teoria discursiva da democracia


A teoria procedimentalista da Democracia e do Direito estabelece que são válidas as normas jurídicas emanadas de um procedimento discursivo que as institucionaliza, e no qual encontra espaço o assentimento de todos os membros de uma ordem jurídica:


[...] parto da circunstância de que o princípio da democracia destina-se a amarrar um procedimento de normatização legítima do direito. Ele significa, com efeito, que somente podem pretender validade legítima as leis jurídicas capazes de encontrar o assentimento de todos os parceiros do direito, num processo jurídico de normatização discursiva. O princípio da democracia explica, noutros termos, o sentido performativo da prática de autodeterminação de membros do direito que se reconhecem mutuamente como membros iguais e livres de uma associação estabelecida livremente. (HABERMAS, 2003a, p. 145)



Habermas (2003a, p. 143) esclarece que o mencionado princípio da Democracia (De) é uma especificação do princípio do discurso (D), que estabelece um critério de validação para as normas de ação em geral. Esta especificação é necessária na medida em que as normas jurídicas são institucionalizadas através de um processo de positivação, ao passo que as normas de ação em geral não passam por este crivo. Contudo, a legitimação das normas jurídicas se faz com base no mesmo critério presente em (D) – a legitimação pela discursividade inclusiva.


(D) é assim apresentando por Habermas (2003a, p. 142): “D: são válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais.”


Portanto, o que determina a validade tanto das normas jurídicas, como das normas de ação em geral, é o fato de que elas são produzidas através de um procedimento discursivo no qual todos os envolvidos (possíveis atingidos) participam por meio da apresentação de razões. A norma que não possua esta característica não detém o caráter de norma jurídica em face da democracia.


Ao compreender o Direito como um sistema cujo sentido e conteúdo repousam na própria vontade dos destinatários, i.é, ao tomar os cidadãos como autores e destinatários das leis, ao mesmo tempo em que tomamos o Estado como uma entidade criada e organizada em uma dimensão jurídico-normativa, seremos levados a ver que o próprio Estado, enquanto criação normativa, deve coincidir com a vontade dos cidadãos legisladores.


Deste modo, se admitirmos ser possível que o Estado possua interesses distintos daqueles pertinentes aos cidadãos, assume-se que, em algum momento, a vontade do cidadão deixou de ser determinante da identidade estatal. Isto implica num rompimento com o modelo democrático procedimental, já que a teoria procedimentalista não comporta uma normatividade (e o Estado é normatividade e só age dentro dela) cujo conteúdo não coincida com a vontade dos cidadãos, que são os titulares do interesse público.


Além disto, outro desenvolvimento teórico empreendido por Habermas é bastante importante para compreendermos o que é a Democracia procedimental, e como nela se articulam o Estado e a vontade pública. Trata-se da “complexa amarração” entre autonomia pública e privada, a partir da qual a superação de antigas dualidades pode ser efetivada. Quais sejam:

a) de que o Estado existiria em função da proteção reclamada pelos direitos individuais;

b) de que o interesse do Estado poderia não coincidir com o interesse público (e isto deve ser explicado levando em conta as considerações acima sobre a teoria procedimentalista do Direito e da Democracia);

c) e, finalmente, de que o interesse público poderia gozar de primazia em relação ao interesse individual.


Neste sentido, primeiramente compete destacar que duas correntes têm dividido o entendimento da filosofia política no que concerne ao tema da relação entre comunidade política soberana e proteção aos direitos fundamentais. Uma delas, a Liberal, defende que os direitos humanos fundamentais delimitam, de antemão, a formação política da vontade, ou seja, o espaço de liberdade da legislação. Neste sentido, o Estado, enquanto expressão de uma ordem democrática e sua lei só pode atuar e se estabelecer respeitando os limites já anteriormente traçados pelos direitos fundamentais.


A outra corrente, chamada de Republicana, entende que os direitos de participação política dos cidadãos vêm postos antes mesmo do estabelecimento dos direitos individuais, que são frutos da própria vontade ilimitada dos cidadãos reunidos. Assim, o poder Estatal não poderia se voltar contra os direitos humanos, vez que eles são o reflexo do ethos da forma de vida política comum:


A compreensão moderna de democracia distingue-se da clássica por se relacionar com um tipo de direito dotado de três características principais, a saber: o direito moderno é positivo, congente e estruturado individualisticamente. Ele resulta de normas produzidas por um legislador e sancionadas pelo Estado, tendo como alvo a garantia de liberdades subjetivas. De acordo com uma interpretação liberal, a autodeterminação democrática dos cidadãos somente se realiza através do médium desse direito, que assegura estruturalmente as liberdades, porém de tal sorte que a idéia de uma “dominação das leis” (rule of law), que se concretiza historicamente na idéia dos direitos humanos e da soberania popular, passa a ser vista como uma segunda fonte de legitimação. Isso levanta a questão sobre a relação entre princípio democrático e o Estado de Direito. Na visão clássica, as leis da república são a expressão da vontade limitada dos cidadãos reunidos. Não importa o modo como o ethos da forma de vida política comum se espelha nas leis: esse ethos não constitui uma limitação, na medida que obtém validade através do processo de formação da vontade dos cidadãos, ao passo que o princípio do exercício do poder no Estado de direito parece colocar limites à autodeterminação soberana do povo, pois o “poder das leis” exige que a formação democrática da vontade não se coloque contra os direitos humanos positivados na forma de direitos de direitos fundamentais. Ora, na história da filosofia política, as duas fontes de legitimação do Estado democrático de direito surgem, concorrendo uma contra a outra. O liberalismo e o republicanismo discutem, entre si, para saber qual das seguintes liberdades deve ter prioridade: a “liberdade dos modernos” ou a “liberdade dos antigos”? O que deve vir antes: os direitos subjetivos de liberdade dos cidadãos da sociedade econômica moderna ou os direitos de participação política dos cidadãos democráticos? (HABERMAS, 2003b, p. 154)


Para Habermas (2003b, p. 155-156), Kant e Rousseau são nomes que expressam as raízes destas duas concepções. Mas, para o filósofo alemão, nem uma delas oferece uma teoria democraticamente adequada sobre a relação entre autonomia pública e privada dos cidadãos. Enquanto a perspectiva liberal subordinaria o direito à moral (que legitima, de fora, os direitos fundamentais), o republicanismo estabeleceu que a racionalidade da vontade do povo reside no processo democrático que elabora leis gerais e abstratas que podem, inclusive, expressar-se como normas arbitrárias ou até mesmo violadoras das normas fundamentais (HABERMAS, 2003b, p. 154):


[...] ou as leis, inclusive a lei fundamental, são legítimas quando coincidem com os direitos humanos, independentemente da origem e do fundamento de sua legitimidade, e, neste caso, o legislador democrático poderia decidir soberanamente, sem se preocupar com os prejuízos que daí adviriam para o princípio da soberania do povo; ou as leis, inclusive a Lei Fundamental, são legítimas quando surgem da formação democrática da vontade. E, neste caso, o legislador democrático poderia criar uma constituição arbitrária, que iria ferir a própria Lei Fundamental, o que constituiria um prejuízo para a idéia do Estado de direito.



Assim, com o Liberalismo retiraríamos a legitimidade das mãos dos cidadãos legisladores e colocaríamos a validade dos direitos humanos num plano transcendental, cabendo ao Estado apenas positivar e cumprir algo que já se estabelece e imperativamente se convalida de fora. Já com o republicanismo acabaríamos admitindo que os direitos individuais são apenas expressão de um ethos, fruto da vontade de um povo, estabelecendo as bases de legitimidade da democracia num certo relativismo cultural.


Para Habermas, a adequada relação entre autonomia pública e autonomia privada só pode ser compreendida, na perspectiva democrática, se ambas as esferas forem tomadas como co-originárias Essa co-originariedade se explica tanto pela interdependência (complementariedade) entre os dois conceitos (autonomia pública e privada), i.é, a realização de um depende da realização do outro, como também pelo fato de que um sequer é possível sem o outro:


Por isso, consideramos os dois princípios como sendo, de certa forma, co-originários, ou seja, um não é possível sem o outro. Além disso, a intuição da “co-originariedade” também pode ser expressa de outra maneira, a saber, como uma relação complementar entre autonomia privada e pública. Ambos os conceitos são interdependentes, uma vez que se encontram numa relação de implicação material. Para fazerem um uso de sua autonomia pública, garantida através de direitos políticos, os cidadãos têm que ser suficientemente independentes na configuração de sua vida privada, assegurada simetricamente. Porém, os “cidadãos da socidade” () só podem gozar simetricamente sua autonomia privada, se, enquanto cidadãos do Estado (), fizerem uso adequado de sua autonomia política – uma vez que as liberdades de ação subjetivas, igualmente distribuídas, têm para eles o “mesmo valor”. (HABERMAS, 2003b, p. 155)


A partir desta compreensão, desfaz-se um equívoco muito difundido entre os liberais: o de que ao Estado é dado apenas realizar e respeitar os direitos humanos, que transcendem a própria existência estatal. Ou seja, os direitos fundamentais não são estabelecidos no Estado, junto ao Estado e pelo Estado (de forma co-originária). Eles dizem respeito a normas para além do direito coercitivo, e o legislador nada tem de fazer além da positivação dos mesmos, que independem do ordenamento jurídico.


De fato, se os direitos fundamentais constituem uma limitação para a atuação da autonomia pública dos cidadãos políticos (por exemplo, os cidadãos não podem, legitimamente e racionalmente, decretar um regime de escravidão), ao mesmo tempo eles (os direitos humanos) só existem enquanto diretos legítimos porque podem se encontrar com a vontade de seus destinatários, que os promovem por meio de um procedimento democrático.


Com isto, a suposição de que “são os direitos fundamentais, de certa maneira fundados na noção de dignidade da pessoa humana, que justificam a existência do Estado e suas diversas formas de atuação” (SCHIER, 2003), como se não houvesse uma reciprocidade necessária nesta relação, sendo somente o Estado justificado pelos direitos humanos, se desmancha. Ao assumirmos a co-originariedade, como implicação material mútua, na qualidade de condição necessária para a existência tanto da autonomia pública como da autonomia privada, não mais se sustenta que somente os direito humanos sejam justificadores e legitimadores do Estado. A própria legitimidade dos direitos humanos depende da autonomia pública, que tem no Estado uma de suas expressões.


Assim, entendido o Estado como uma das expressões da autonomia pública, que consiste em direitos políticos que têm os cidadãos de participar do processo democrático, determinando as regras válidas para o seguimento social (numa perspectiva procedimentalista de democracia), então, de maneira alguma, o Estado pode ter interesses que não coincidam com o interesse público. Afinal o Estado, na democracia, deve ser espelho da vontade presente nos cidadãos publicamente autônomos. Não pode haver uma vontade Estatal concebida para além dos seus cidadãos, sob pena de se alvejar a democracia procedimentalista. Não pode haver nenhum interesse público que não seja construído discursivamente pelos legisladores/destinatários das normas de ação.


Além disto, ao entendermos o interesse público como o reflexo da própria vontade dos cidadãos, que usufruem de sua autonomia pública, lembramo-nos uma vez mais, que a autonomia pública reclama simetria em relação à autonomia privada para poder existir. Assim, se admitirmos que a autonomia pública, sobre a qual reside o interesse público, goza de primazia em relação ao interesse privado (que reside na autonomia privada), tanto permitiremos ofensas aos direitos individuais como incorreremos no risco do esfacelamento da própria autonomia pública dos cidadãos, já que ela somente é possível se “os cidadãos forem suficientemente independentes na configuração de sua vida privada” (HABERMAS, 2003b, p. 155).


A relação dialética entre autonomia pública e privada só se torna clara por meio da possibilidade de institucionalização do status de um cidadão como esse, democrático e dotado de competências para o estabelecimento do Direito, e isso, somente com o auxílio do direito coercitivo. No entanto, porque esse direito se direciona a pessoas que, sem direitos civis subjetivos, não podem assumir de forma alguma o status de pessoas juridicamente aptas, as autonomias privada e pública dos cidadãos pressupõem-se reciprocamente. Como já mencionamos, os dois elementos já estão entrelaçados no conceito do direito positivo e coercivo: não haverá direito algum, se não houver liberdades subjetivas de ação que possam ser juridicamente demandadas e que garantam a autonomia privada de pessoas em particular juridicamente aptas; e tão pouco haverá direito legítimo, se não houver o estabelecimento comum e democrático do Direito por parte de cidadãos legitimados para participar desse processo como cidadãos livres e iguais. Quando esclarecemos de tal maneira o projeto do Direito, é fácil notar que a substância normativa dos direitos à liberdade já está contida no instrumento que é ao mesmo tempo necessário à institucionalização jurídica do uso público da razão por parte de cidadãos soberanos. (HABERMAS, 2007, p. 91)


Depois de tudo o que foi exposto, ainda resta uma consideração importante feita por Mello (2003, p. 52). Trata-se do fato de que o interesse público não deve ser confundindo com os interesses individuais. Isso nos alerta para o fato de que, na democracia plural, o pluralismo de modelos de vida conduz a diferentes concepções do que é o bem e do que é a felicidade. O interesse público é uma faceta dos interesses dos indivíduos, enquanto cidadãos dotados de autonomia pública e que participam do processo democrático procedimental através do qual se determina o que deve ser perseguido e executado pelo Estado. Contudo, isto não deve apagar o fato de que os cidadãos também existem como indivíduos, que buscam a realização de desejos e preferências tipicamente seus. O que leva a necessidade de repensar a existência de um “bem comum”, produto de uma eticidade, a ser perseguido por todos, como um telos norteador das ações estatais.


A partir disto não se quer demonstrar que não existem interesses publicamente partilhados, pois isto não seria possível. Mas apenas que tais interesses são construídos pela autonomia pública dos cidadãos, que podem participar discursivamente do processo democrático. Destarte, não há um bem comum dado pela eticidade convencional, ao qual o Estado pode recorrer sem se preocupar com a vontade dos governados e com os direitos dos indivíduos.



2.2 A Supremacia do Interesse Público vista como princípio vigente do Ordenamento Jurídico brasileiro


Di Pietro narra a passagem histórica onde o interesse público passou a gozar, na mentalidade político-jurídica, de primazia em relação ao interesse privado. Tal feito teria surgido na fundação de um modelo de Estado Social paternalista e intervencionista, que surge como oposição ao modelo de Estado Liberal anteriormente vigente e caracterizado por uma intervenção mínima nas liberdades e vontades privadas. Enquanto o Estado liberal preocupou-se em dirigir sua proteção para uma esfera restrita, associada aos direitos privados como a propriedade e a vida, deixando que as relações de mercado determinassem suas próprias regras, guiando-se pela máxima “laissez-faire, laissez-passer”, o Estado Social assumiu a verdadeira figura paternalista do provedor convencional e, assim, dirigiu toda a sua potencialidade para regular a vida dos cidadãos e de suas atividades, indo muito além da simples garantia de direitos individuais mínimos. Pautado na idéia de materialização de direitos em oposição a um excessivo abstracionismo na mentalidade jurídica do liberalismo político/econômico, o Estado Social adotou o paradigma comunistarista como fundamento de suas ações e posições:


Com efeito, já em fins do século XIX começaram a surgir reações contra o individualismo jurídico, como decorrência das profundas transformações ocorridas nas ordens econômica, social e política, provocadas pelos próprios resultados funestos daquele individualismo exarcebado. O Estado teve de abandonar a sua posição passiva e começar a atuar no âmbito da atividade exclusivamente privada.

O Direito deixou de ser apenas instrumento de garantia dos direitos do indivíduo e passou a ser visto como meio para consecução da justiça social, do bem comum, do bem-estar coletivo.

Em nome do primado do interesse público, inúmeras transformações ocorreram: houve uma ampliação das atividades assumidas pelo Estado para atender às necessidades coletivas, com a conseqüente ampliação do próprio conceito de serviço público. O mesmo ocorreu com o poder de polícia do Estado, que deixou de impor obrigações apenas negativas (não fazer) visando resguardar a ordem pública, e passou a abranger, além da ordem pública, também a ordem econômica e social. (DI PIETRO, 2006, p. 83)


Adotar a matriz comunitarista como paradigma é justamente o que conduz a compreensão de que a coletividade e a idéia de bem comum são mais importantes do que os projetos de vida particulares dos indivíduos, considerados isoladamente, tanto porque a própria identidade individual depende da eticidade social para se firmar, como também porque a maneira de promover o bem-estar social implica, para esta visão, promover o bem-estar do maior número de indivíduos possível – uma ótica nitidamente utilitarista.


Além disto, o comunitarismo reclama uma homogeneidade ética da sociedade, que deve se dedicar, de uma maneira geral, à persecução do bem comum:


No contexto de uma delimitação teórica encontra-se a obra de Etzioni (1996), que procurou construir o movimento comunitarista como uma teoria autônoma. Em sua busca por uma “Plataforma Comunistarista”, Etzioni examinou as bases de uma sociedade comunitária, ao estabelecer os elementos de uma sociologia da virtude. Para este autor, a procura social de um senso de origem, determinada pelas raízes culturais e valores homogêneos de uma comunidade, era essencial contra o mal da atualidade: a “solidão das massas”. [...] Dessa forma o comunitarismo rejeita a visão liberal de um pluralismo universalista, calcado em visões particulares sobre “vida digna” e adota uma concepção cultural de uma coletividade em particular. (CRUZ, 2004, p. 153-154).


Melhor esclarecendo, para compreender adequadamente a perspectiva comunitarista, é preciso antes dimensionar o sentido do vocábulo “ética”, segundo esta matriz de pensamento. E isto pode ser efetuado se recorrermos a uma distinção com a qual trabalha Habermas, entre Moral, Ética e Pragmática:


A moral, como tal, é talhada para o tratamento objetivo e imparcial de problemas práticos compartilhados sob o aspecto do que é igualmente correto para todos; a ética só se ocupa de processos individuais ou coletivos de busca de identidade e constituição do sentido da vida; a pragmática, em contrapartida, cobre os aspectos da persecução racional-final de propósitos e interesses racionais, p. ex., totalmente calculados. (NIQUET, 2003, p. 59)


Deste modo, o termo “ética” deve ser relacionado à tradição aristotélica e ao problema do que é bom para nós. Portanto ele está ligado a formas concretas de vida (modelos virtuosos destinados à imitação)[1] que dizem o que deve ser buscado (teleologia). Com isto, tal matriz teórica afeta um dos elementos mais marcantes da era moderna – o pluralismo de identidades; uma vez que ela pressupõe o compartilhamento de padrões comuns de felicidade e do que é bom, como condição de promoção do bem-estar coletivo.


Uma norma que se pretenda democrática não pode repousar a sua legitimidade em padrões destinados à imitação ou que nos dizem o que é bom para nós e para o indivíduo, pois deste modo ela deixaria de ser inclusiva para ser excludente. Portanto, a implementação do princípio democrático no mundo moderno deve fazer prejudicada a idéia de um bem comum que funcione como orientador do telos estatal. Os indivíduos assumiram a responsabilidade por suas próprias vidas, não podendo jamais ser excluídas suas visões de mundo e diferentes perspectivas.


Acerca deste processo de desengate entre a consciência individual e a tradição convencional não problematizada, no processo de validação das normas de expectativa de ação, Moura e Ribeiro (2007, p. 5768-5770) fazem o seguinte esclarecimento, fortes naquilo que Habermas define como racionalização do mundo da vida:


Para melhor esclarecer, o conceito de Mundo da Vida, utilizado por Habermas, funciona como um pano de fundo, recipiente de convicções não tematizadas e repassadas pela tradição, a partir do qual é possibilitado o entendimento sobre algo no mundo (OLIVEIRA, 2001, p. 334) [...]. De tal maneira, o que Habermas denomina de racionalização do Mundo da Vida, consiste numa das implicações possíveis decorrente do fato de que, ele, o mundo vivido, enquanto a priori historicamente gestado, está sujeito a falhas que provocam alterações no processo de interação social (OLIVEIRA, 2001, p. 337). Neste caso, a falha ocorre com a problematização de um saber que, anteriormente, era pré-reflexivo, mas que se desfaz ou se reconfigura com a sua tematização (racionalização do saber não tematizado) [...]. Por outro lado, a ocorrência da racionalização do Mundo da Vida que, como dito, ocorre com a falha na reprodução cultural que conduz à perda de sentido e assim provoca crises de legitimação social e de orientação pessoal (OLIVEIRA, 2001, p. 337), conduz à vantagem de que, tanto mais se diferenciam os componentes estruturais do Mundo da Vida (sociedade (ordens legítimas), cultura e estruturas da personalidade (HABERMAS, 1990, p. 96)), ou os processos que contribuem para a sua conservação, também cada vez mais “conexões interativas se realizam sob condições de um entendimento racionalmente motivado, isto é, de um consenso, que, em última instância, se apóia na autoridade do melhor argumento.” (OLIVEIRA, 2001, p. 337). E disto se pode concluir que a renovação das tradições passa a depender do espírito crítico e renovador dos indivíduos, que rompem com a eticidade totalizadora irrefletida, pois suas “estruturas cognitivas adquiridas nos processos de socialização se independizam dos conteúdos do saber cultural, com as quais elas estavam integradas no ‘pensamento concreto’” (OLIVEIRA, 2001, p. 338). Portanto, a racionalização do Mundo Vivido modifica a forma de legitimação dos proferimentos (inclusive os normativos) que não podem mais manter inabaláveis suas ligações com o senso comum não problematizado, pois que com o desligamento entre legitimidade e tradição, o que passa a conferir validez aos enunciados é a sua formação discursivo-racional que os configuram como pretensões de validez criticáveis. O recebimento da tradição é agora atualizado mediante o uso da reflexão crítica: o sujeito passa a decidir, conscientemente, sobre quais os conteúdos pretende dar continuidade e com os quais deseja romper (HABERMAS, 1998, p. 162) [...].


Aí reside justamente o problema do comunitarismo, ao querer recobrar a validade de uma eticidade a ser compartilhada por todos, capaz de nos determinar o que é o bem comum. Tal vertente teórica trabalha a partir do pressuposto de que o pluralismo moderno não produz nada além de crises de legitimação através da perda de sentidos e de orientação pessoal. E para resgatar a promoção do bem-estar coletivo o primeiro passo seria tornar possível a identificação do que seja este bem comum. Assim, passa ele a ser identificado como aquele bem que corresponde, supostamente, ao interesse ou ao desejo da coletividade (embora com o risco de que seja o Estado que venha a falar no lugar desta coletividade, que pode deixar de participar dos processos decisórios/ executivos).


Portanto, para o comunitarismo, o bem comum, como aquele que expressa o que é bom para a coletividade, possui maior importância do que os projetos de vida individuais.


Ao ser transformado em paradigma político-jurídico-social, o comunitarismo promove a supremacia do interesse público (que se liga diretamente a idéia de bem comum) à condição de princípio jurídico vigente em nosso ordenamento. A partir daí, nossos julgadores devem aplicar a lei orientados por esta visão paradigmática. Assim, em casos de suposta colisão entre o interesse individual e o interesse público, com vistas a defender o bem comum, a balança deveria sempre pender para o último.


Este entendimento fere, conforme aqui demonstrado, a complexa relação entre autonomia pública e privada, pois desestabiliza a condição de simetria exigida por ambas. Por isto mesmo, a adoção de um princípio que atribui maior peso a qualquer desses vetores (autonomia pública e autonomia privada) acaba por colocar inevitavelmente em risco tanto os direitos políticos como os direitos individuais



3 Conclusão


São muitos os julgados e entendimentos doutrinários que nos revelam que os juristas brasileiros ainda reputam haver um princípio implícito em nosso ordenamento jurídico que nos indica que o interesse público goza de supremacia em relação ao interesse privado. Tal posicionamento reflete a doutrina clássica publicista que, como abordado neste trabalho, é majoritária na sustentação do entendimento segundo o qual os interesses e vontades dos indivíduos devem ser tomados como de menor relevância em relação aos chamados “interesses públicos.”


Para esclarecer que o mencionado princípio da supremacia do interesse público não se revela em oposição aos interesses individuais, a doutrina nacional tem desenvolvido sua estruturação teórica no sentido de demonstrar que o interesse público constitui uma dimensão específica do interesse privado, de modo que tais conceitos não podem ser tomados como noções antagônicas. A partir disto, tem sido dito que o interesse público é uma faceta dos interesses individuais, e que, embora não se confunda com os anseios privados de um indivíduo específico, coincide com os interesses e necessidades deste mesmo indivíduo na sua qualidade de cidadão de uma sociedade politicamente estruturada.


Esta concepção de que o interesse público corresponde aos interesses dos indivíduos enquanto cidadãos de uma sociedade política leva à outra constatação: os interesses públicos são aqueles que pertencem aos indivíduos em geral, em sua qualidade de cidadãos políticos, e não a um indivíduo isoladamente considerado. Portando, até mesmo por uma questão matemática, os interesses públicos devem ser promovidos, inclusive quando, para tanto, os interesses individuais tiverem de passar por alguma restrição. É que o bem-estar coletivo possuiria extensão e relevância maiores do que os interesses privados.


Todavia, como procuramos demonstrar neste trabalho, tal posição merece ser revisitada à luz dos princípios constitucionais conformadores do Estado Democrático de Direito. Assim é que chegamos ao desenvolvimento das seguintes reflexões:


1. Num Estado Democrático de Direito, quem teria a legitimidade para apontar o que é de interesse público, quando se percebe que a própria doutrina tradicional chega a afirmar que o interesse público não se confunde com o interesse do Estado?


Numa perspectiva procedimental do Direito e da democracia, não pode haver interesse estatal que não corresponda aos interesses de seus cidadãos, uma vez que estes devem assumir a titularidade do poder. Isto implica que nenhum conteúdo pode ser tomado como de interesse público, se os titulares destes mesmos interesses não participarem, pela via procedimental, das deliberações do Estado;


2. Além disto, é preciso corrigir o equívoco da suposição de que o interesse público está relacionado com um bem comum que deve ser promovido mesmo ao custo do bem individual. É que, conforme demonstrado, a pluralidade de identidades e de padrões de modelo de vida e de felicidade não é uma mera opção dos indivíduos modernos, mas o resultado de um processo histórico que permitiu ao ser humano tornar-se autônomo, isto é, responsável por si mesmo e por seus projetos. A idéia do que é o bem ou do que é bom fica restrita à esfera da consciência individual, que não mais se vê obrigada a compartilhar irrefletidamente de modelos imperativamente assumidos da tradição.


Retomar a concepção de um bem comum à qual todos os indivíduos deveriam se vincular e perseguir não é medida que possa ser feita sem o emprego de arbítrio ou violência.


A separação entre ética (o que é bom), moral (o que é devido), Estado e Direito, enquanto fenômeno desencadeado pelas revoluções política e científica modernas, conduziu a denominada racionalização do mundo da vida.


Tal processo se caracteriza pelo fato de que a legitimação de modelos e a orientação de sentidos passam a depender da consciência crítica dos sujeitos, que agora podem refletir mais profundamente sobre os legados das gerações pretéritas, optando por sua continuidade ou ruptura;


3. Por fim, resta outra consideração importante. A suposição de que o interesse público goza de primazia em relação ao interesse privado constitui uma premissa que ameaça a própria estrutura democrática do Estado de Direito. Esta afirmação resta bem entendida quando retomamos a explicação desenvolvida por Habermas sobre a complexa “amarração” existente entre as autonomias pública e privada.


De fato, Habermas esclarece que não pode haver Estado Democrático de Direito se não for mantida a simetria reclamada pelas duas dimensões (esfera pública e esfera privada), uma vez que uma não é possível sem a outra. Os cidadãos precisam ser suficientemente livres na condução de suas vidas privadas para poderem gozar amplamente de suas autonomias públicas. Da mesma forma, a autonomia pública é condição constitutiva da autonomia privada, vez que esta não possui sua gênese em um elemento transcendente em relação ao Estado de Direito. Vale dizer, a autonomia privada, manifesta também pelos direitos individuais, não retira a sua legitimidade de fora do Estado.


Assim, a ponderação entre tais interesses traria um intrínseco prejuízo à simetria necessária às co-originárias autonomias pública e privada, podendo vir acarretar a desestruturação de ambas e do próprio Estado Democrático, que não é passível de efetivação sem a conjugação destas dimensões que lhe são intrínsecas.


Portanto, a conclusão a que chegamos neste estudo é a de que o suposto princípio da supremacia do Interesse Público sobre o Privado não se coaduna com o paradigma do Estado Democrático de Direito instituído pela Constituição brasileira de 1988. Ao contrário, ele ainda é vestígio de um Estado Social que não introjetou devidamente o princípio democrático, ou mesmo reminiscência de períodos remotos, nos quais os indivíduos ainda deviam seguir incondicionalmente orientados por preceitos autoritativos advindos de uma tradição.



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NOTA


[1] Neste sentido, um bom exemplo de modelo virtuoso baseado em ações historicamente efetivadas que se destinavam a observância de todos pode ser encontrado nos denominados Specula principum (espelhos dos príncipes) da época carolíngia. Tratava-se de um verdadeiro estilo literário destinado a enunciar as virtudes cristãs que o príncipe deveria possuir, bem como os vícios que deveria evitar para que, sendo ele um espelho para seus súditos, pudesse refletir a sua própria pureza em todo o seu povo (RIBEIRO, 2004, p. 146).




Fernando José Armando Ribeiro é Pós-doutor pela Universidade da Califórnia em Berkeley (EUA); Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor adjunto da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Juiz Civil do Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais


Gabriela de Sousa Moura é Mestre em Teoria do Direito Pela PUC MINAS. Bacharela em Direito pela Universidade FUMEC. Professora de Filosofia do Direito (IBMEC-MG), Direito Constitucional e Argumentação Jurídica (Faculdade Estácio de Belo Horizonte)


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