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  • José Osmar Coelho

(Im) Possibilidade de aplicação do art. 296 do CPPM à luz do sistema acusatório e a produção da prov

Introdução


Deflagrado um ilícito penal militar, surge para o Estado o jus puniendi, ou seja, o direito de punir por parte do Estado. Entretanto, para que esse direito estatal possa ser exercido é necessário que se passe por um processo, evitando-se ao máximo sanções injustas pela condenação de um inocente. Logo, o processo penal militar tem a finalidade de proteção do cidadão que passa a figurar na condição de réu e encontra-se na posição de hipossuficiência frente ao Estado. E, para que tenhamos um processo penal militar justo, é necessário que tenhamos acusação, defesa e juiz. E o respeito ao devido processo legal.


Portanto, a finalidade do processo penal é garantir a correta aplicação da lei penal, equilibrando a forte tensão entre a pretensão punitiva do aparelho estatal em constante confronto com os direitos de liberdade daquele contra quem vai cair a sanção penal. (Mattos Filho,219, p.29)


Sendo assim, é necessário definir qual o sistema trazido à baila pela Constituição e se a produção de prova por parte do juiz seria constitucional.



Sistema Inquisitório e Acusatório


A doutrina costuma definir os sistemas processuais em inquisitório e acusatório, sendo de extrema relevância entender cada um deles para que com isso seja definido qual o sistema adotado pela CF/88, e se foi recepcionado pela Constituição a possibilidade de o juiz produzir prova no processo de ofício.


O sistema inquisitório é um modelo que se afasta do processo equilibrado. É pacífico na doutrina que o sistema inquisitório concentra as funções de acusação, defesa e julgamento em uma única pessoa. Para o processo inquisitório o acusado não é um sujeito de direito e sim um mero objeto da persecução.


No sistema inquisitivo, há extrema concentração de poderes, podendo-se dizer que ao mesmo órgão ao qual incumbe a acusação, também incumbe o julgamento da questão. Às vezes, os exemplos históricos indicam que até a defesa era incumbência do mesmo órgão, aumentando, ainda mais, o poder concentrado. (Neves, 3 ed., 2018, p. 169)


A história mostra que o sistema inquisitório era adotado pelos governos totalitários, onde o processo servia como um instrumento à disposição do monarca, do governo, da Santa Inquisição, enfim, de quem detinha o poder e tinha a sua disposição o processo como forma de exercer esse poder, e não como instrumento a garantir o direito do acusado.


O processo militar foi novamente codificado quando o Decreto-Lei nª 925, de 2 de dezembro de 1938, baixou o novo Código da Justiça Militar, que vigorou até a expedição dos Decretos-Lei nª 1.002 e 1.003, ambos de 21 de outubro de 1969, o primeiro fazendo entrar em vigor o Código de Processo Penal Militar, e o segundo a Lei da Organização Judiciária Militar, e os dois em vigor também a partir de 1º de janeiro de 1970. (Univaldo Corrêa)


O atual Código de Processo Penal Militar foi editado e passou a vigorar sob a égide da Constituição de 1967. Logo, a própria CF era de um viés autoritário em razão do regime predominante à época.


As Constituições nem sempre se apresentam de maneira idêntica, seja no domínio do mesmo Estado, seja entre Estados distintos. Ora, as Constituições brasileiras de 1988 e 1967 não são iguais; basta ressaltar que enquanto a Constituição de 1988 tem origem democrática, a Constituição de 1967 teve procedência autoritária.[...].(Cunha Júnior, 11. Ed., 2017, p. 103)


Sendo esse o cenário da gênese do CPPM - em vigência até hoje. Nesse período o país encontrava-se no regime militar, fase em que o Executivo detinha imenso poder com a edição de Atos Institucionais - dentre eles o famigerado AI-5. Em meio as suas medidas autoritárias, salta aos olhos o fechamento do Congresso Nacional e a suspensão do habeas corpus.


O contexto predominante nessa época era o autoritarismo e a política da chamada segurança nacional, que visava combater inimigos internos ao regime, rotulados de subversivos. Instalado em 1964, o regime militar conservou o Congresso Nacional, mas dominava e controlava o Legislativo. Dessa forma, o Executivo encaminhou ao Congresso uma proposta de Constituição que foi aprovada pelos parlamentares e promulgada no dia 24 de janeiro de 1967. (Fonte: Agência Senado)


É claro, portanto, que o CPPM não se presta ao Estado Democrático de Direito, muito menos a garantir os direitos dos acusados, sendo na verdade um mero instrumento à disposição do poder estatal da época.


Já o sistema acusatório tem um viés democrático, estando muito bem definidas e devidamente separadas as funções de acusar, defender e julgar. Garantindo assim o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa. Além de um magistrado imparcial e equidistante da produção probatória.


Com a inauguração de um Estado Democrático de Direito, fruto do constitucionalismo, como já reportamos, fácil perceber que as características do sistema inquisitivo não mais poderiam sobreviver, pois se constituem em agressões extremas ao indivíduo. Em reação, surge o sistema acusatório, que encontra raízes na Grécia e em Roma, mas é efetivamente sedimentado na Inglaterra e na França, após a Revolução Francesa, em especial com a ideia de separação de poderes. (Neves, 3 ed., 2018, p. 170)


A essência do sistema acusatório é justamente garantir um processo igualitário e justo. E por essa razão se separam as funções, deixando-se o encargo probatório com as partes, devendo o magistrado ser imparcial e garantir o devido processo legal. E ao final, de forma imparcial, aplicar o direito ao caso concreto: seja dando razão ao estado no seu direito do jus puniendi, seja no direito do réu a sua liberdade.


O sistema acusatório é caracterizado, principalmente, pela existência do contraditório, bem como pela descentralização das funções de acusar, defender e julgar, cabendo, cada uma dessas funções, a pessoas distintas. Em tal sistema, para ser efetivado plenamente, deve-se excluir totalmente a iniciativa do magistrado de proceder, contentando-se o julgador para decidir com o alegado e provado pela acusação e pela defesa. (Mattos Filho,219, p.32)


Logo, não existe uma lógica temporal entre o sistema acusatório e inquisitório. Cada sistema é adotado conforme o grau de autoritarismo ou liberdade do governo: governos autoritários, sistemas inquisitórios; governos comprometidos com a democracia, sistema acusatório.


[...] é a separação de funções e, por decorrência, a gestão da prova na mão das partes e não do juiz (juiz-espectador), que cria as condições de possibilidade para que a imparcialidade se efetive. Somente no processo acusatório-democrático, em que o juiz se mantém afastado da esfera de atividade das partes, é que podemos ter a figura do juiz imparcial, fundante da própria estrutura processual. (Lopes Jr, 13 ed., 2016, p. 44)



Sistema Processual Penal Militar Brasileiro


É claro e tranquilo que as normas infraconstitucionais precisam se amoldar aos preceitos constitucionais. O Código de Processo Penal Militar é de raiz autoritária, originado em um período de exceção registrado na história nacional. Já a Constituição Federal de 1988 tem seu nascedouro na democracia. Em sendo assim, é necessário se fazer a análise do atual sistema vigente no Brasil à luz da CF/88 - e não ao contrário.


O sistema processual vigente no processo penal militar brasileiro, até mesmo por imposição constitucional, é o sistema acusatório, mais alinhado no assentimento majoritário da doutrina com o Estado Democrático de Direito. (NEVES, 3 ed., 2018, p. 171)


Na Constituição Cidadã de 1988, por mais que não haja menção explícita de que o sistema adotado seja o acusatório, dúvidas não existem acerca disto. Temos no art. 5º: inciso XXXVII, a proibição do tribunal de exceção; inciso XXXIX, o princípio da legalidade; inciso XLVI, a individualização da pena; inciso LIII, o juiz natural; inciso LIV, o devido processo legal; inciso LV, o contraditório e a ampla defesa. Além disso, deixa bem claro no art. 129, inciso I, que a acusação pública é privativa do Ministério Público.


Precisamos compreender que a Constituição de 1988 define um processo penal acusatório, fundado no contraditório, na ampla defesa, na imparcialidade do juiz e nas demais regras do devido processo penal. Diante dos inúmeros traços inquisitórios do processo penal brasileiro, é necessário fazer uma “filtragem constitucional” dos dispositivos incompatíveis com o princípio acusatório (como os arts. 156, 385 etc.), pois são “substancialmente inconstitucionais”. Assumido o problema estrutural do CPP, a luta passa a ser pela acoplagem constitucional e pela filtragem constitucional, expurgando de eficácia todos aqueles dispositivos que, alinhados ao núcleo inquisitório, são incompatíveis com a matriz constitucional acusatória. (Lopes Jr, 13 ed., 2016, p. 49)


Não restam dúvidas de que a Constituição Federal trouxe em seu espírito democrático o sistema acusatório, devendo os artigos do CPPM - código esse elaborado em um período autoritário da história pátria - passarem pela devida filtragem constitucional, sob pena da CF ser uma mera utopia.



Conclusão


Com a vigência da Constituição Cidadã, o trecho do art. 296 do CPPM que permite a produção de prova de ofício pelo juiz não sobrevive ao filtro constitucional, em razão da CF/88 ter adotado o sistema acusatório e aquele dispositivo infraconstitucional ser essencialmente inquisitório, causando prejuízo assim a imparcialidade que se espera do magistrado no processo penal militar constitucional.


Caso o magistrado tenha dúvida, foi porque a acusação não se incumbiu do ônus da prova ou a defesa conseguiu trazer ao bojo do processo a dúvida razoável. E quando isso acontece, o próprio CPPM em seu art. 439, alínea ‘e’, impõe a sentença absolutória, não cabendo ao magistrado sair de seu posto de julgador imparcial em busca da prova.


Claro está que o art. 296 do CPPM, no trecho em que permite a produção de prova pelo juiz, não foi recepcionado pela Constituição. E caso aconteça de o magistrado ir atrás da prova - e use essa prova como elemento de convicção -, estaremos diante de uma prova ilícita por afronta ao sistema constitucional acusatório e por ferir assim, dentre muitas garantias constitucionais, a imparcialidade.



Referências Bibliográficas


CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. 11.ed.. Salvador: JusPODIVM, 2017.


http://www.amajme-sc.com.br/livro/1-Univaldo-Correa.pdf


https://www12.senado.leg.br/noticias/glossario-legislativo/constituicoes-brasileiras


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del1002.htm

LOPES JR., Aury, Direito processual penal-13 ed., 2016: Saraiva

NEVES, Cícero Robson Coimbra. Manual de direito processual penal militar. 3 ed.: São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

MATTOS FILHO, J. Mauricio C. Nulidade no processo penal: restrições à ampla defesa em matéria sumulada nas cortes superiores brasileiras. Belo Horizonte: D´Plácido, 2019.


José Osmar Coelho é especialista em Direito Militar pela Universidade Cruzeiro do Sul, especialista em Ciências Criminais pela Universidade Cândido Mendes, Professor de Pós Graduação de Direito Penal e Processo Penal Militar, membro fundador do Instituto baiano de direito militar.

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