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  • Fernando Galvão

Como acabar com a polêmica da execução da pena

O mais novo capítulo da polêmica que se arrasta no Supremo Tribunal Federal sobre a possibilidade de execução das penas após decisão condenatória de segundo grau de jurisdição agita a comunidade jurídica e deixa o cidadão absolutamente perplexo.


Sem entrar no mérito das supremas decisões judiciais recentemente proferidas, afinal de contas as redes sociais já estão repletas de análises “jurídicas” sobre os últimos acontecimentos, penso que pode ser útil explicar de maneira simples as bases do problema e o que pode ser feito para acabar com a polêmica sobre o tema.


A referencia normativa mais importante é o inciso LVII do artigo 5º da Constituição da República. Tal dispositivo determina que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.


Vale observar que o inciso da Constituição não diz que “ninguém poderá ser preso” antes do trânsito em julgado e, por isso, os juízes determinam a prisão cautelar (que visa proteger a utilidade do processo) de mais de 40% da população carcerária brasileira. Conforme registra o último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (p. 08), em junho de 2016 existiam no país 292.450 presos sem condenação, o que representa 40,2 % da população carcerária[1]. Em tais casos as pessoas são recolhidas à prisão antes mesmo de uma decisão sobre a culpa.


O art. 283 do Código de Processo Penal, em consonância com a Constituição, determina que


“Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.”


O artigo 283 do Código de Processo Penal admite prisão cautelar e prisão em decorrência de condenação transitada em julgado. A sua conciliação com o inciso LVII do art. 5º da Constituição da República é manifesta.


A discussão que é travada no Supremo não se refere os casos de prisão cautelar, que repito são responsáveis por mais de 40% dos encarceramentos. Mas, aos casos em que, após decisão de segundo grau de jurisdição, inicia-se o cumprimento da pena imposta em condenação. Diante da possibilidade de cumprimento da decisão liminar proferida pelo Ministro Marco Aurélio, divulgou-se nos meios de comunicação que cerca de 169 mil presos estariam em tal situação jurídica.


O debate sobre a possibilidade do inicio do cumprimento da pena é enriquecido com muitos argumentos, sendo que alguns são meramente retóricos. Outros, apesar de bem intencionados, se afastam das premissas fundamentais da discussão.


E a premissa mais fundamental da questão é que a garantia estabelecida na Constituição e repetida no Código de Processo Penal se refere ao conceito de trânsito em julgado de uma decisão condenatória.


A Constituição da República não definiu o que seja “trânsito em julgado”. Tampouco o fez o Código de Processo Penal. A definição que confere concretude à garantia constitucional encontra-se no § 3º do art. 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – Decreto-Lei 4.657/42. Transcrevo o dispositivo para destaca-lo na reflexão:


§3º. Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso.


Com base em tal noção, os juristas que gostam de ser identificados pela denominação de “garantistas”[2], sustentam que para ser possível a execução da pena é necessário esgotar primeiro todos os recursos existentes na legislação processual penal. A interpretação dada pelos “garantistas” impede a execução da pena imposta em decisão condenatória até que o último recurso possível ao condenado seja julgado.


Considerando que o Direito não pode ser lido (interpretado) “em tiras” ou em trechos isolados, mas sistematicamente, também deve-se considerar o disposto no art. 5º, do art. 1.029 do Código de Processo Civil. Tal dispositivo, que nunca foi indicado como inconstitucional, diz que o recurso especial que é dirigido ao Superior Tribunal de Justiça e o recurso extraordinário que é dirigido ao Supremo Tribunal Federal podem ser ou não recebidos com efeito suspensivo. O efeito suspensivo de um recurso, como a própria denominação indica, suspende os efeitos da decisão contra qual o mesmo é apresentado. Se o recurso não é recebido com o efeito suspensivo, a decisão judicial produz os seus normais efeitos. No caso de um decisão que impõe o cumprimento de pena, os seus efeitos normais se traduzem no início do cumprimento da pena.


Como todos os dispositivos legais devem se harmonizar em um único sistema normativo, pode-se interpretar que a noção de trânsito em julgado estabelecida pelo sistema jurídico brasileiro é a seguinte:


§3º. Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso com efeito suspensivo.


Esta outra interpretação (que certamente será chamada de “punitivista”) confere efetividade ao dispositivo legal que, no sistema recursal, encerra a discussão sobre a culpa do condenado ao não admitir os recursos dirigidos aos tribunais superiores com o efeito suspensivo da decisão impugnada.


Como é notório, os recursos especial e extraordinário não possibilitam a rediscussão sobre o mérito da prova produzida em desfavor do condenado. Se a matéria alegada nos referidos recursos tiver o condão de influir no mérito da condenação (inadmissibilidade de uma prova, por exemplo) e houver plausibilidade na alegação, devem tais recursos ser recebidos em seu efeito suspensivo de modo a possibilitar a continuidade da discussão sobre a culpa do condenado.


Não se pode dizer que tal interpretação ofenda o direito fundamental de liberdade, pois no Estado democrático de direito a liberdade não é um direito absoluto e a sua proteção deve-se conciliar com a proteção deferida a outros direitos igualmente fundamentais.


E não se pode entender que exista apenas uma interpretação sobre quais sejam os limites adequados da proteção à liberdade individual. O artigo 628 do Código de Processo Civil português, por exemplo, determina que “a decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação”. No direito português, as decisões não precisam chegar até a Suprema Corte para que transitem em julgado. E ninguém afirma que o Direito Processual Penal português permite violações ao direito fundamental de liberdade.


Não se pode trabalhar com presunção de que as decisões judiciais são ilegais e inconstitucionais até que os tribunais superiores digam o contrário. Tal exagero, manifestamente sacrifica o direito fundamental das pessoas à segurança publica que o Estado deve igualmente garantir.


Mas, diante da situação conturbada em que nos encontramos, o que pode ser feito para acabar com a polêmica?


Entendo que a interpretação mais adequada dos dispositivos legais decorre da necessária harmonização entre o disposto no § 3º do art. 6º da LINDB e o disposto no § 5º do art. 1.029 do CPC, de modo a restringir a noção do trânsito em julgado ao julgamento dos recursos que são recebidos com efeito suspensivo.


De qualquer forma, é possível deixar esta questão mais clara na legislação. E basta que se façam pequenos ajustes para resolver a questão. O cerne da questão não se encontra nas disposições da Constituição da República, mas nas da legislação infraconstitucional. E, para resolver a polêmica, é necessário fazer uma poção política entre duas alternativas:


1) Se a opção política acolhida pelo parlamento brasileiro for a de impedir a execução da pena até que todos os recursos previstos na legislação sejam julgados, basta alterar o art. 1.029 da CPC para deixar claro que, no processo penal, tanto o recurso especial e quanto o recurso extraordinário sempre devem ser recebidos com efeito suspensivo da execução da decisão condenatória.


2) Se, por outro lado, a opção for permitir que a execução da pena se inicie após o duplo grau de jurisdição, bastaria alterar o § 3º do art. 6º da LINDB de modo que passe a constar que: chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso com efeito suspensivo.


Uma terceira alternativa ainda se apresenta, como solução intermediária que firma o trânsito em julgado após o exame do Superior Tribunal de Justiça. A justificativa mais consistente para tal solução enfrenta o obstáculo do conhecimento restrito que o recurso especial possui. Para conceber tal solução, bastaria alterar o art. 1.209 do CPC para atribuir efeito suspensivo ao recurso especial e alterar o § 3º do art. 6º da LINDB, como proposto no item 2) supra. A admissão do recurso especial obrigatoriamente suspenderia a execução da decisão condenatória.


De qualquer modo, pode-se facilmente constatar que, se há importante divergência da doutrina jurídica e na operação do direito sobre a interpretação de disposições normativas, o legislador deve assumir o seu papel e firmar a opção política que deve prevalecer. A omissão do parlamento, me parece, constitui a mais relevante causa para a instauração e manutenção desta situação conturbada. Espero que a nova legislatura possa resolver esta questão que possui relevante repercussão social.


Fernando A. N. Galvão da Rocha é Professor Associado da Faculdade de Direito da UFMG e Juiz Civil do Tribunal de Justiça Militar do Estado de Minas Gerais. É Pós-doutor e Doutor pelo programa de pós-graduação da Faculdade de Direito da UFMG.


NOTAS


[1] Disponível em http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorios-sinteticos/relatorio_2016_2211.pdf . Acesso em 20.12.2018.


[2] A denominação acaba por fomentar uma oposição maniqueísta entre os “garantistas” que se apropriam de uma imagem “progressista” e se colocam na defesa do “bem” e os “punitivistas” que são identificados como “retrógrados” defensores do “mal”. A Constituição da República, no entanto, estabelece tanto garantias individuais como comandos de intervenção punitiva que todos devemos observar.

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